segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Out Fear


João levantou-se, tirou os tampões do ouvido que permitiam não ser acordado a todo instante graças ao seu sono leve e foi ao banheiro para molhar a cara. Ainda meio atordoado de sono, ignorou o fato de que seu quarto parecia maior e mais pomposo. Aliás, não se lembrava de dormir em uma suíte. Movido praticamente de forma automática, com a mente ainda grogue e sem raciocinar direito, tomou um banho. Sentia-se estranho desde que acordara, quase como se fosse outra pessoa, mas creditava isso ao sono da manhã e ignorara a sensação. Ao escovar os dentes e olhar no espelho pela primeira vez no dia, porém, levou um gigantesco susto e não conseguiu conter um grito de desespero. Sem qualquer explicação aparente, João havia se transformado em Temer. Ele mesmo, o presidente.

Quando certa manhã João acordou de sonhos intranquilos encontrou-se em seu banheiro metamorfoseado em um inseto monstruoso. O horror foi tamanho que o pobre João mal conseguiu conter o grito. Imagine você, caro leitor, façamos aqui um exercício de empatia – qualidade que tanto nos falta – transformado de uma hora para a outra sem quaisquer explicações ao melhor estilo Kafka logo no homem mais odiado da nação. Pobre João. Antes fosse uma barata gigante.

Mas nem tudo era dor e danação. Passado o horror e a surpresa iniciais, João, homem padrão que era, logo pensou nas vantagens que tal condição poderia trazer. E vantagens, para ele, atendiam pelo nome de Marcela. Ora, se estava preso por alguma razão nesse corpo odiado, por que não aproveitar ao menos a regalia de uma bela esposa? Era solitário, nunca havia se casado e há anos não se relacionava com alguma mulher. Essa era a oportunidade de finalmente tirar o atraso que seu antigo corpo sem dinheiro, poder ou beleza o sentenciara. João voltou para a cama e de fato Marcela dormia no outro canto. Com um sorriso malicioso no rosto, aproximou-se, passou as mãos suavemente nas pernas da primeira-dama e se agachou para dar-lhe um beijo, ao que foi recebido com... Um empurrão?! 

– De novo isso, Michel? Se você não consegue nem colocar o seu amigo de pé, por que vem me perturbar? 

Aquilo pegou João/Michel de surpresa. O que aquela mulher queria dizer com “não conseguir botar o seu amigo de pé”? Sem responder nada João correu para o banheiro, tirou a calça e descobriu o maior de todos os horrores: era broxa. A impotência já tomara conta daquele corpo envelhecido. O horror, o horror. Não bastava ser agora o próprio Michel Temer, era também um Michel Temer broxa. Dor e danação. Dor e danação em seu maior grau possível. Ainda atordoado, voltou para o quarto, onde Marcela já sentada continuava a falar: 

– Nós já tínhamos decidido que não faríamos mais isso, por que você continua insistindo? Por mais conveniente que seja nosso casamento, se você continuar com isso teremos que nos separar. Já imaginou o escândalo? Não seria interessante para você, né, Michel, poderia inclusive expor seus podres. Então para com essa merda e volte a se masturbar com a faixa presidencial. 

João ficara surpreso, aquela mulher não tinha nada de recatada e do lar. Ela era o demônio. 

– O que foi – continuou – acha que eu não sei o que você faz no banheiro até tarde? 

– Eu... 

– O que você está esperando, Michel? O dinheiro não vai se roubar sozinho, você sabe. Tem uma longa jornada de “trabalho” pela frente hoje, “querido”. 

João conseguia sentir apenas um ódio intenso por aquela Lady Macbeth e pela forma de escárnio com a qual ela se dirigia a ele. Pela primeira vez sentira alguma pena de Temer. Talvez o homem não fosse assim tão mal. Mas esse pensamento logo foi substituído pela raiva e melancolia de estar trancado em um corpo impotente. Bom, ao menos ainda era o homem mais poderoso do país. Ainda assim, por alguma razão que a razão lhe fugia, mesmo sendo supostamente o homem mais poderoso do Brasil, não conseguia impor suas vontades a ela e uma misteriosa força o compelia a obedecer. 

O velho e bom clichê do sonho seria uma saída muito simples para essa história e João não é estúpido, logo percebeu que aquela situação, por mais bisonha que fosse, era real. Como qualquer bom brasileiro médio, acostumado a consumir desenfreadamente qualquer coisa empurrada goela abaixo pela TV, João possuía perspicácia e conhecimento em filmes B de Hollywood para saber que trocas de corpo sem explicação são extremamente comuns e acontecem quase todos os dias por aí. Então não, esta bizarra troca de corpos não possui explicação, já que esse nunca foi o objetivo desse conto. Quão pretensiosamente kafkiano da parte do narrador. 

Sem explicação, sem lógica e sem sentido, João era agora o presidente. E devia agir como tal, até entender o que acontecera e o que podia ser feito a respeito. Isso se algo pudesse ser feito a respeito. A situação era absurda, mas – peço perdão aqui pelo uso dessa frase lugar-comum mas não encontrei nenhuma que se adequasse melhor – devia dançar conforme a música. Só que não fazia a menor ideia de como se portar ou do que deveria fazer como presidente. Era um humilde porteiro que de repente, do nada, se viu como presidente do Brasil. Como reagir, como proceder? Era óbvio que ninguém acreditaria se dissesse que não era o presidente, então precisaria agir o mais próximo da forma como Michel agiria. 

Tão logo pôs os pés no Palácio do Planalto, nosso ilustríssimo João, devidamente travestido de presidente, foi recebido por duas figuras nefastas. Tratava-se, como não poderia deixar de ser, de sua querida e útil assessoria. E note que aqui me refiro usando o pronome “sua” já considerando João como o presidente em exercício nesse país conturbado, já que tecnicamente a assessoria era de Michel Temer. Só que, porém, entretanto e todavia, desafiando as leis metafísicas, João ERA agora Michel Temer. E, portanto, os assessores eram “seus”. Se é que alguém pode ser de alguém, ou, mais ainda, se algo pode ser de alguém já que não existe alguém com autoridade o suficiente para definir isso, mas aí se pensarmos muito nisso entraremos ainda mais na metafísica e problematizar não é a ideia dessa pequena crônica. Aliás, seria essa pequena anedota uma crônica ou um conto? Ainda não estudei literatura comparada o suficiente para descobrir, deixo a decisão para o leitor acadêmico que esteja lendo nesse momento, se é que há um. Para facilitar a leitura, então, usarei pronomes possessivos e afins já tratando João como o presidente, dado que seria extremamente inconveniente – e acredito que você concordará comigo – tratar o personagem como sendo o porteiro João e não o presidente João/Michel Temer, que, para os efeitos, todos acreditam que seja. 

– Senhor Temer, o senhor por acaso já se esqueceu do combinado? 

O mais difícil de se tornar quem se tornara, para João, era fingir entender o que lhe diziam. Mas era o que esperavam dele, não podia recuar, qualquer outra opção soaria absurda. Acreditava fielmente que um homem deveria se posicionar sempre de forma resoluta e demonstrar dominância, mesmo que em seu interior o medo o dominasse. Já ficou claro que João era um tanto quanto conservador e machista, como grande parte dos brasileiros médios, o que explica essa sua filosofia de vida. Dessa forma, tentou transmitir confiança embora tenha falhado e acabou por soar inevitavelmente débil ao responder seus assessores: - Eu... Não... – sendo prontamente interrompido sem que sequer conseguisse dar prosseguimento à mensagem, não que houvesse algo a ser dito já que João/Temer estava puramente confuso e desnorteado. Normalmente não é muito delicado interromper pessoas, mas caso o seu interlocutor tenha misteriosamente trocado de corpo com o presidente e encontre-se completamente desamparado, não há problema em ser mal educado. A interrupção foi bastante proveitosa - pois como o leitor bem sabe e já peço novamente perdão por me aproveitar de um lugar-comum, mas vocês sabem quão difícil é superar vícios de linguagem – há males que vem para o bem. 

– Senhor, nós havíamos dito explicitamente que não era para comentar a reforma previdenciária em público sob o risco de falar besteira e assim por em perigo o seu acordo com os demais deputados e senadores. Não percebe o que fez ao dar aquela declaração ontem? O país só fala disso. Toninho me ligou hoje dizendo que era para cancelarmos as concessões à sua empreiteira já que o governo parece caminhar para mais uma crise e precisamos de qualquer forma evitar mais um escândalo. 

– Eu... 

– Por favor, não conceda entrevistas, coletivas ou qualquer coisa do tipo pelos próximos dias. Procure evitar repórteres, mas se questionado limite-se a dizer que a reforma é imprescindível para o país retornar seu crescimento. Dito isso é nosso dever afirmar que Toninho junto de alguns outros deputados e senadores estão bastante irritados e demandam uma audiência hoje. Como sei que jogar Damas consigo mesmo não ocupa muito do seu tempo e, portanto, estará livre, a marquei para as 13 horas. Claro que estaremos com o senhor para auxilia-lo e impedi-lo de falar besteiras. 

– Eu... 

– Enquanto o horário da reunião não chega o senhor pode manter-se ocupado jogando Damas em seu gabinete, como de praxe. Nós cuidaremos das atividades presidenciais, para a sua e a nossa segurança. 

Com um sorriso sarcástico e cruel, o assessor deixou João enfim sozinho. Como os leitores podem imaginar, nosso protagonista encontrava-se sem reação, praticamente em choque. Pelo visto a impotência que circundava a figura de Temer não era apenas física. João sabia que o presidente nunca fora onipotente ou mesmo uma unanimidade, mas a fragilidade com que presenciou o cargo o surpreendeu. Temer não passava, então, de uma simples marionete, um boneco sem vontade própria que agia como protagonista apenas para manter as aparências quando, na realidade, existia algo muito mais poderoso, muito maior por trás. Ventríloquos que ditavam o destino do Brasil, que poético. 

Recolhendo-se a sua insignificância, João pôde então ter um momento de sossego. A sós, enfim, refletiu sobre sua atual condição. A vida como ‘golpista’ não era, afinal, de todo mal. Apesar de broxa, de ser odiado por toda uma nação e de ser um presidente decorativo, ainda possuía suas regalias. Sempre poderia chorar em Paris. Entre aproveitar o resto da vida no Distrito Vermelho em Amsterdam ou trabalhar incessantemente e ter que negociar com seu patrão para ter quaisquer enormes privilégios como férias, a resposta era óbvia. Ser o Temer não era tão ruim assim. Claro, não tinha amigos, amor verdadeiro e ainda era impotente. Mas de que importava essas coisas? Ao menos agora tinha dinheiro. E, com dinheiro no bolso, até o ódio alheio se torna irrelevante. Nunca mais haveria de acordar as 5h da manhã para se atrasar por 10 minutos no condomínio e ter de ouvir que era um preguiçoso. Nunca mais teria que trabalhar por doze horas sem receber hora extra. Nunca mais teria que almoçar rapidamente sob o perigo de ser descontado o tempo do seu salário. Quem disse que o dinheiro não traz felicidade nunca foi pobre. 

Considerando numa balança, não havia perdido muito, a vida como João não era assim tão boa. Claro, sentiria falta de seu pênis não impotente e de seus amigos do bar. Mas fazer o quê? O golpe do destino foi certeiro. Haveria de recomeçar a vida, o que, com alguns vários milhões em uma conta na Suíça, não é assim tão difícil. 

Enquanto isso, no outro lado desse país continental, uma história semelhantemente diferente se desenrolava. Pois quando Michel Temer acordou de sonhos intranquilos viu-se metamorfoseado em um trabalhador. Mas essa é uma história para outra ocasião.

Sergio Schargel



Sergio Schargel é carioca, fruto de uma mistura cubana com polonesa. Formado em Jornalismo e Publicidade pela PUC-Rio, atualmente aplica para um mestrado em literatura e sonha em criar carreira na área como pesquisador, professor e/ou escritor. Mantém uma página no Facebook onde posta fotografias, poemas e outras peças artísticas: https://www.facebook.com/sergio.schargel/.

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