No livro publicado pelo MAM de São Paulo em 2013 em vista da exposição Maria Martins: metamorfoses constam dois ensaios de Verônica Stigger e Raul Antelo sobre as obras da artista. Embora os autores abordem uma gama de obras distintas, ambas reflexões giram em torno do título da exposição: metamorfose. Ao falar de escultura, a ideia de mudar de forma tem quase a força de um pleonasmo visto que, em última instância, escultores são os artistas que se debruçam sobre a matéria bruta, atuam sobre ela e fazem-na linguagem poética. O que me foi interessante nos textos em questão e motivou este trabalho e écfrase são as relações exteriores à obra de Maria Martins que Stigger e Antelo convocam em seus ensaios.
Quando Stigger reflete sobre o conjunto de esculturas amazônicas, lembra que Euclides da Cunha, padrinho de Maria Martins, descreveu a Amazônia como “a terra que ainda está crescendo”, em que “sua fisionomia altera-se diante do espectador imóvel”. Diz Stigger que “Martins estava em sintonia com todo um pensamento brasileiro moderno (não só modernista) da forma como formação incessante”
(grifo meu). A constância no movimento e fluidez atribuídos à misteriosa floresta amazônica por alguns intelectuais foi mais um fator que contribuiu para que os modernistas daquela época reconsiderassem seus trabalhos com a forma clássica. Em Cobra grande (1943), Uirapuru (1944), Iacy (1943), Boto (1942) e Yemanjá (1943), Maria Martins reúne figuras chaves da cultura dos povos amazônicos e constroi esculturas onde tais figuras são embaladas por cipós (ou galhos, ou raízes), envolvendo-os como parte de um movimento natural. Nesse sentido de forma como formação incessante, é impossível não pensar em Macunaíma, de Mário de Andrade (1928), que de fato se transforma fisicamente ao longo de toda a história; e também no Cobra norato, de Raul Bopp (1931), que narra, em trinta e três poemas de verso livre, as aventuras da figura mitológica homônima pelas terras amazônicas. Este último, numa descrição extremamente metafórica, sinestésica e divertida, reaviva os elementos da paisagem (plantas, riachos e animais) através de sua linguagem. O movimento modernista brasileiro, trabalhando por um ideal nacionalista, aproxima os elementos polarizados natureza e cultura ao invocar essas novas formas, infringindo sobre um pensamento ocidental, colonial e logocêntrico.
Já no segundo texto, para Raul Antelo, subvertendo, quem sabe, a ideia de “espectador imóvel” de Euclides da Cunha, a metamorfose acontece de dentro pra fora. Antelo interpreta a obra O impossível, de Maria Martins (déc. 1940), ligando-a às interpretações de Bataille sobre o desejo e a poesia, em que reflete sobre a procura do artista pela representação poética da experiência única. Diz Antelo, ao abrir seu texto: “cabe pensar que essa escultura funciona, para a artista, como uma indagação sobre a finitude, ou se quisermos, como um modo de conceber a experiência após a finitude, que é um dado central do moderno”. E sobre a poesia, parafraseando Bataille, diz que “querendo a identidade das coisas refletidas e da própria consciência que as refletiu, quer o impossível.”. Portanto, a cada obra que se finaliza, nasce novo desejo de fazer-se outra, e assim sucessivamente. É isto que há de fluido e metamórfico no próprio artista, e aqui se encaixa bem uma frase do texto de Verônica Stigger que, ao falar de Macunaíma, nota que “não é a terra que se acha em permanente elaboração, mas o próprio homem”. O artista tenta dar corpo à experiência exterior e à consciência interior a si, mas a linguagem poética de uma obra nunca dá conta desse movimento por completo, nunca o esgota. Lembro-me da entrevista de Maria Martins conduzida por Clarice Lispector, citada no texto de Stigger e que pude ler na íntegra, em que aparece esta frase de Maria: “[a] melhor lembrança é quando começo uma escultura. No meio fico um pouco desanimada, no fim nunca é o que eu queria, e fico com esperança na próxima.”. Assim vai se desenhando a ideia da poesia sempre referente ao desejo impossível de apreensão total de um objeto, exterior ou interior ao artista, mas também a insistência e retorno a tal procedimento. Antelo chega a O impossível, portanto, por este ângulo: a retratação do movimento do que é inalcançável, do desejo do desejo, que pode falar tanto do desejo erótico quanto do poético (e tem quem diga que são iguais).
Para finalizar este trabalho, gostaria de fazer alguns comentários sobre a écfrase. Em primeiro lugar vale ressaltar a questão formal. Depois de tantos pensamentos de Bataille sobre a poesia evocados por Antelo, me arrisquei a fazer um poema e dialogar com as reflexões as quais estava tendo contato. Para sua construção, não quis me ater a nenhum contrato métrico, justamente pela liberdade e espontaneidade concedidas pelo verso livre, já que estaria fazendo um poema a partir de sensibilidades ativadas por outra obra. O único detalhe é a formatação dos versos: quis alternar as margens as quais estão alinhados para produzir um efeito similar aos dentes/garras e fendas da obra de Martins. Além disso, tentei descrever e ao mesmo tempo refletir sobre o que me pareciam as figuras, a estranheza e fascínio provocados, tal como um monstro, tal como o erótico. Quis também falar sobre essa mobilidade, infinitude, fluidez impossível de capturar. Para isso, usei a palavra “gerúndio”, imaginando que seria uma boa imagem para caracterizar algo ainda em curso, já que estamos no âmbito da linguagem, dando a ideia de que a natureza do desejo é desejar, e portanto não existe objeto apreensível, mas sempre uma vontade “de morder”.
Paula Reis Vianna
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