Na química da natureza, a água traga e apaga o fogo. Na combustão
do teatro, na cena armada pela diretora Monique Gardenberg no
palco-corredor do Teatro Oficina, as águas míticas de “Senhora
dos afogados” trazem à tona e realimentam o fogo sagrado do
dionisíaco encenador José Celso Martinez Corrêa (1937–2023),
criador do Oficina e um dos mais relevantes arquitetos da cena
teatral brasileira em todos os tempos.
Em
cartaz no Oficina de sexta-feira à segunda-feira, na sede paulistana
do teatro projetado pela modernista arquiteta Lina Bo Bardi
(1914–1992), a encenação de “Senhora dos afogados” é a
primeira produção do Oficina após o encantamento de Zé Celso, há
dois anos, em decorrência de queimaduras sofridas em incêndio, numa
trapaça da sorte que corroborou a presença do fogo como elemento de
ascensão, crescimento e desaparecimento (físico) no destino do
artista.
Um
dos textos mais malditos da obra do dramaturgo carioca Nelson
Rodrigues (191–1980), “Senhora dos afogados” era um desejo,
quase obsessão, de Zé Celso. Escrita em 1947, mas somente liberada
pela censura em 1954, a tragédia mítica — assim classificada na
dramaturgia desse escritor que deu contornos modernos ao teatro
brasileiro em 1943 com a montagem de “Vestido de noiva” erguida
sob direção do polonês Ziembinski (1908 –1978) — simboliza no
Oficina uma interseção entre o estilo orgiástico das encenações
de Zé Celso e a arquitetura visual dos espetáculos de Monique
Gardenberg, diretora que se vale de recursos audiovisuais para criar
no palco imagens projetadas com forte aderência na mente do
espectador.
O
texto de Nelson está lá, íntegro, mas potencializado pela
convergência desses estilos e referências aparentemente díspares.
Na tela gigante colada numa das paredes, imagem das águas revoltas
de um mar banham a montagem e refletem a agitação existencial da
família Drummond, atormentada por mortes — todas relacionadas às
águas do mar que levam os corpos inertes ali jogados para a
eternidade — e desejos proibidos.
Não
por acaso, uma canção pouco lembrada de Roberto Carlos e Erasmo
Carlos (1941–2022), gravada por Wanderléa em 1969, reverbera na
cena, no registro original da “Ternurinha”, e se impõe na trilha
sonora pautada pela intensidade afinada com a alma das personagens.
Nessa trilha, cabem tanto um fado — “Nem às paredes confesso”
(1952), ouvido na voz referencial de Amália Rodrigues (1920–1999)
e Anabela — quanto uma valsa dilacerada de dor, “Súplica”
(1940), gravada por Orlando Silva (1915–1963) em período áureo.
Tudo
se afina com o texto em que, na trágica trama familiar de Nelson
Rodrigues, a ação opõe mãe (Dona Eduarda, personagem de Leona
Cavalli, atriz que vive momento de consagração com a autoridade de
ter sido revelada como a Ofélia de um já longínquo “Hamlet”
encenado por Zé Celso) e filha (Moema, vivida por Lara Tremouroux,
grande surpresa do elenco por manter a alta voltagem emocional do
espetáculo nas muitas cenas protagonizadas por Moema) em jogo de
amores, ódios e crimes que nem às paredes mãe, filha e demais
integrantes da família confessam.
Paira
na cena, com o olhar perdido e longe dos loucos, Dona Marianinha, a
matriarca interpretada com maestria por Regina Braga. Dona Marianinha
perdeu a sanidade por ação do filho, Misael, personagem de Marcelo
Drummond, peça também importante nesse jogo de lances arriscados e
passionais.
Na
ação dominada por mulheres, há também o fantasma da prostituta
assassinada na beira do cais, personagem de Sylvia Prado, e o luxuoso
coro das vizinhas interpretadas por Cristina Mutarelli, Giulia Gam,
Ligia Cortez e Michele Matalon. Com a acidez das línguas, as
vizinhas simbolizam em “Senhora dos afogados” uma representação
mais ferina do coro das tragédias gregas. Mas a tragédia acontece
no Brasil de hipocrisias e conservadorismo.
Imersa na plenitude emocional do elenco, a encenação do texto pelo
Teatro Oficina faz emergir o poder aliciante de um dramaturgo sem
papas na língua e que se revela ainda e sempre poderoso na cena
imagética de Monique Gardenberg, hábil ao reacender o fogo sagrado
de Fênix-Zé Celso sem apagar a própria carga autoral como diretora.
Mauro Ferreira
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