segunda-feira, 14 de julho de 2025

“Senhora dos afogados” realimenta no Teatro Oficina o fogo sagrado de Zé Celso 🔥🔥🔥

 
                                                         foto de Sérgio Fernandes


Na química da natureza, a água traga e apaga o fogo. Na combustão do teatro, na cena armada pela diretora Monique Gardenberg no palco-corredor do Teatro Oficina, as águas míticas de “Senhora dos afogados” trazem à tona e realimentam o fogo sagrado do dionisíaco encenador José Celso Martinez Corrêa (1937–2023), criador do Oficina e um dos mais relevantes arquitetos da cena teatral brasileira em todos os tempos.

Em cartaz no Oficina de sexta-feira à segunda-feira, na sede paulistana do teatro projetado pela modernista arquiteta Lina Bo Bardi (1914–1992), a encenação de “Senhora dos afogados” é a primeira produção do Oficina após o encantamento de Zé Celso, há dois anos, em decorrência de queimaduras sofridas em incêndio, numa trapaça da sorte que corroborou a presença do fogo como elemento de ascensão, crescimento e desaparecimento (físico) no destino do artista.

Um dos textos mais malditos da obra do dramaturgo carioca Nelson Rodrigues (191–1980), “Senhora dos afogados” era um desejo, quase obsessão, de Zé Celso. Escrita em 1947, mas somente liberada pela censura em 1954, a tragédia mítica — assim classificada na dramaturgia desse escritor que deu contornos modernos ao teatro brasileiro em 1943 com a montagem de “Vestido de noiva” erguida sob direção do polonês Ziembinski (1908 –1978) — simboliza no Oficina uma interseção entre o estilo orgiástico das encenações de Zé Celso e a arquitetura visual dos espetáculos de Monique Gardenberg, diretora que se vale de recursos audiovisuais para criar no palco imagens projetadas com forte aderência na mente do espectador.

O texto de Nelson está lá, íntegro, mas potencializado pela convergência desses estilos e referências aparentemente díspares. Na tela gigante colada numa das paredes, imagem das águas revoltas de um mar banham a montagem e refletem a agitação existencial da família Drummond, atormentada por mortes — todas relacionadas às águas do mar que levam os corpos inertes ali jogados para a eternidade — e desejos proibidos.

Não por acaso, uma canção pouco lembrada de Roberto Carlos e Erasmo Carlos (1941–2022), gravada por Wanderléa em 1969, reverbera na cena, no registro original da “Ternurinha”, e se impõe na trilha sonora pautada pela intensidade afinada com a alma das personagens. Nessa trilha, cabem tanto um fado — “Nem às paredes confesso” (1952), ouvido na voz referencial de Amália Rodrigues (1920–1999) e Anabela — quanto uma valsa dilacerada de dor, “Súplica” (1940), gravada por Orlando Silva (1915–1963) em período áureo.

Tudo se afina com o texto em que, na trágica trama familiar de Nelson Rodrigues, a ação opõe mãe (Dona Eduarda, personagem de Leona Cavalli, atriz que vive momento de consagração com a autoridade de ter sido revelada como a Ofélia de um já longínquo “Hamlet” encenado por Zé Celso) e filha (Moema, vivida por Lara Tremouroux, grande surpresa do elenco por manter a alta voltagem emocional do espetáculo nas muitas cenas protagonizadas por Moema) em jogo de amores, ódios e crimes que nem às paredes mãe, filha e demais integrantes da família confessam.

Paira na cena, com o olhar perdido e longe dos loucos, Dona Marianinha, a matriarca interpretada com maestria por Regina Braga. Dona Marianinha perdeu a sanidade por ação do filho, Misael, personagem de Marcelo Drummond, peça também importante nesse jogo de lances arriscados e passionais.

Na ação dominada por mulheres, há também o fantasma da prostituta assassinada na beira do cais, personagem de Sylvia Prado, e o luxuoso coro das vizinhas interpretadas por Cristina Mutarelli, Giulia Gam, Ligia Cortez e Michele Matalon. Com a acidez das línguas, as vizinhas simbolizam em “Senhora dos afogados” uma representação mais ferina do coro das tragédias gregas. Mas a tragédia acontece no Brasil de hipocrisias e conservadorismo.

Imersa na plenitude emocional do elenco, a encenação do texto pelo Teatro Oficina faz emergir o poder aliciante de um dramaturgo sem papas na língua e que se revela ainda e sempre poderoso na cena imagética de Monique Gardenberg, hábil ao reacender o fogo sagrado de Fênix-Zé Celso sem apagar a própria carga autoral como diretora.



Mauro Ferreira


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