segunda-feira, 7 de julho de 2025

“Prima Facie” expõe a equação imprecisa entre cumprir a lei e fazer justiça, por Mauro Ferreira

                                                                 foto de João Caldas Filho


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o centro do palco, no jogo cenográfico de cadeiras e mesas, uma cadeira se impõe, alocada bem ao alto, solene, soberana. A cadeira elevada na cena de Prima Facie representa a autoridade austera de um juiz, senhor da razão e das decisões sobre vidas alheias. É sobre a Justiça — ou melhor, sobre o desequilíbrio da balança imprecisa da Justiça — que a dramaturga e advogada australiana Suzie Miller discorre no texto que estreou em Sidney em 2019 e que, desde então, vem arrebatando plateias e conquistando láureas mundo afora, inclusive no Brasil.

A peça arrebatou plateias inglesas e norte-americanas em 2022. Em palcos nacionais,
Prima Facie se tornou um dos acontecimentos teatrais de 2024, impactando o público e alçando a atriz Débora Falabella ao topo do ranking das atrizes mais premiadas do ano passado. A ponto de o espetáculo continuar em cartaz com fôlego neste ano de 2025, no momento com sessões que vêm lotando o Teatro Clara Nunes, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), em temporada que se estenderá até o fim de julho.

Em cena, sob a direção de Yara de Novaes, Débora é Tessa, advogada implacável na defesa de homens acusados de agressões sexuais contra mulheres que Tessa, impiedosa, descredibiliza diante de um tribunal geralmente masculino com a frieza dos profissionais puro-sangue do Direito.

O
turning point da dramaturgia de Prima Facie acontece quando Tessa deixa de ser a advogada calculista e invencível para virar a mulher vítima de estupro que busca justiça no tribunal, lutando para condenar o colega de trabalho que forçou uma relação sexual, usando inclusive a força física, no desenlace trágico de uma noite de bebedeira.

Quando o jogo vira e os papéis se invertem, Tessa personifica a própria “Girl on fire” do título da música de Alicia Keys, que se impõe na trilha sonora do espetáculo. É quando Tessa passa a sentir na pele e na alma machucadas os efeitos cruéis da equação imprecisa entre cumprir a lei (usando todas as brechas dessa lei para inocentar homens culpados, como ela sempre fizera com alardeado orgulho) e fazer justiça.

Quando uma mulher é ouvida em tribunal como vítima de crime de natureza sexual, a balança da Justiça pende sempre para o lado dos homens. Porque o sistema é patriarcal. Porque uma mulher terá sempre que provar inocência mesmo quando é ela quem acusa um réu já previamente absolvido pelas convenções machistas.

Algo tem que mudar, reconhece Tessa, dando a moral da história de
Prima Facie, quando a advogada tornada vítima tem a certeza de que o jogo está perdido para uma mulher que busca reparação judicial após ter sofrido um estupro ou qualquer outro tipo de agressão sexual. E, sim, esse jogo está sempre perdido quando o réu tem dinheiro para contratar os advogados puro-sangue da raça a que um dia Tessa pertenceu.

A cenografia soturna e imponente de André Cortez acentua o papel opressor da Justiça. Tessa, que antes apequenava mulheres no tribunal para não “chegar em segundo” (eufemismo usado por ela para perder uma causa), agora sente o peso de se ver minimizada, esmagada, pelo sistema que usara com força. Mas a indignação de Tessa a engrandece aos olhos do espectador, cúmplice da dor da personagem interpretada com intensa veracidade por Débora Falabella sem qualquer ranço de melodrama ou sentimentalismo.

E é aí que
Prima Facie se agiganta como dramaturgia. Ao fim de um jogo bem armado, o texto escancara as cartas marcadas de uma Justiça feita para absolver homens e condenar mulheres que, recusando o discurso intimidador da vergonha, se encorajam e ousam apontar o dedo na cara de estupradores e abusadores. Mulheres em busca de Justiça. E, sim, algo precisa mudar com urgência no sistema judiciário para que a balança não penda descaradamente para o lado dos homens mais ricos e mais canalhas.


Mauro Ferreira



Ficha Técnica

Texto: Suzie Miler
Direção: Yara de Novaes
Tradução: Alexandre Tenório
Cenário: André Cortez
Figurino: Fabio Namatame
Iluminação: Wagner Antonio
Trilha Sonora: Morris
Consultoria jurídica: Maria Luiza Gomes e Mateus Monteiro
Assistentes de direção: Ivy Souza e Renan Ferreira
Coordenação administrativa: Coarte
Assessoria de Comunicação: Pedro Neves e Lucas Viriato / Clímax Conteúdo
Produção Executiva: Catarina Milani
Direção de Produção: Edson Fieschi e Luciano Borges
Realização: Borges & Fieschi Produções e Antes do Nome


PATROCÍNIO: @ILOVEPRIO



5 comentários:

Anônimo disse...

Que crítica maravilhosa

Anônimo disse...

Crítica perfeita

Anônimo disse...

Excelente texto e crítica incisiva

Anônimo disse...

Essa é a melhor peça que eu já vi

Anônimo disse...

Peça impecável