Sempre
tive facilidade para aprender línguas. Entrei na Escola Britânica
aos quatro anos, e aprendi inglês tão rapidamente que minha professora
perguntou aos meus pais: “quem é o estrangeiro na sua família?”
Entretanto, esta minha habilidade não ia além de mera proficiência:
eu não tentava entender o funcionamento das línguas, nem o porquê
das diferenças entre elas. Eu também possuía um desdém irracional
pelo espanhol, não gostando de sua sonoridade, e o considerando feio
comparado com o português (uma opinião nada
parcial, com certeza!). Tais sentimentos se estendiam ao Portunhol,
onde iam além de desgosto e viravam ódio, pois o considerava uma
corrupção do português.
Foi somente aos doze anos, quando comecei a estudar francês na escola, e fiquei fascinada por suas semelhanças e diferenças com o português, que eu mergulhei pela primeira vez na linguística, e me surpreendi ao aprender que quase todas as línguas europeias (e algumas asiáticas) possuíam uma origem comum, tendo evoluído a partir do Proto-Indo Europeu.
Também descobri o conceito do contínuo dialetal, que descreve um conjunto de dialetos falados numa área geográfica. Em tais contínuos, dois dialetos vizinhos são facilmente compreensíveis, como o português e o espanhol, enquanto dois extremos, como o português e o romeno, são de mais difícil compreensão. Existe até uma famosa expressão descrevendo a dificuldade de definir se duas línguas próximas são distintas ou dialetos de uma língua só, e como a política está bem envolvida neste processo: "Uma língua é um dialeto com um exército e marinha.”
Ao descobrir essas complexidades e entender que línguas são primeiramente um meio de comunicação, e que a gramática não é uma lei sagrada, passei a me sentir bem envergonhada a respeito de minhas opiniões infantis e ignorantes sobre o portunhol, que, como todas as línguas misturadas, serve como uma ponte entre dois povos. Ao ver este poema, lembrei dessas antigas emoções, e fiquei me perguntando como teria me sentido se o tivesse visto ainda possuindo aqueles preconceitos.
Quanto aos modos de compreensão, apesar de ser classificado como um poema, esta obra, assim como muitas outras presentes na revista “Artéria”, poderia ser classificada como um quadro/obra de arte visual. Afinal, a poesia visual é uma síntese destes dois meios, e esta obra foca mais no aspecto visual do que verbal, tendo como palavras completas apenas as duas versões do título.
O til/h pequeno brinca com a própria origem do eñe espanhol. Originalmente, o fonema /ɲ/ era representado pelo dígrafo “nn”, que representava um n longo em Latim. Já que pergaminho era um material bem escasso e caro na era medieval, escribas desenvolveram um sistema extenso de abreviações para certos dígrafos e palavras, que costumavam envolver ou colocar uma letra minúscula em cima de uma letra de tamanho normal, ou um acento, como o próprio til. Neste poema, o til/h faz referência a ambos os métodos. Ademais, o til/h parece o símbolo matemático “≉”, que significa “não é quase igual a”.
Há ainda uma estratégia de oralidade nesta obra: a brincadeira oral deste poema surge do fato de ambas as línguas pronunciarem o título da obra da mesma forma, apesar da grafia diferente: o eñe espanhol, e o dígrafo nh, que aqui representa o português. (Interessantemente, ele originalmente surgiu na lingua occitana, outra integrante da família românica, e mãe do trovadorismo.)
Além de representar o fenômeno do Portuñol/Portunhol de uma maneira concisa e memorável, o poema me fez pensar sobre como sua premissa, retratando as diferenças marcantes entre duas línguas irmãs, e como elas se misturam, poderia ser adaptada para outras línguas. Por exemplo, a língua russa tem pelo menos dois “portunhóis”: o Surzhyk (mistura com o ucraniano) e a Trasianka (mistura com o bielorrusso).
Além disso, também me lembrei do Galego, a língua mais próxima ao português, descrita por muitos que a encontram pela primeira vez como “portunhol oficial”, ou “brasileiros tentando falar espanhol”. Embora o poema não tenha qualquer ligação proposital com esta língua, outra coincidência interessantíssima é o fato de ela usar tanto o ñ (representando o mesmo som que em espanhol) e o dígrafo nh (representando o som /ŋ/, o “ng" do inglês.)
Rafaela Albernaz
Rafaela Albernaz é aluna do curso de Letras da PUC-Rio, onde se destaca pelo seu amplo conhecimento linguístico e interesse encantador pelo mundo das palavras!
Foi somente aos doze anos, quando comecei a estudar francês na escola, e fiquei fascinada por suas semelhanças e diferenças com o português, que eu mergulhei pela primeira vez na linguística, e me surpreendi ao aprender que quase todas as línguas europeias (e algumas asiáticas) possuíam uma origem comum, tendo evoluído a partir do Proto-Indo Europeu.
Também descobri o conceito do contínuo dialetal, que descreve um conjunto de dialetos falados numa área geográfica. Em tais contínuos, dois dialetos vizinhos são facilmente compreensíveis, como o português e o espanhol, enquanto dois extremos, como o português e o romeno, são de mais difícil compreensão. Existe até uma famosa expressão descrevendo a dificuldade de definir se duas línguas próximas são distintas ou dialetos de uma língua só, e como a política está bem envolvida neste processo: "Uma língua é um dialeto com um exército e marinha.”
Ao descobrir essas complexidades e entender que línguas são primeiramente um meio de comunicação, e que a gramática não é uma lei sagrada, passei a me sentir bem envergonhada a respeito de minhas opiniões infantis e ignorantes sobre o portunhol, que, como todas as línguas misturadas, serve como uma ponte entre dois povos. Ao ver este poema, lembrei dessas antigas emoções, e fiquei me perguntando como teria me sentido se o tivesse visto ainda possuindo aqueles preconceitos.
Quanto aos modos de compreensão, apesar de ser classificado como um poema, esta obra, assim como muitas outras presentes na revista “Artéria”, poderia ser classificada como um quadro/obra de arte visual. Afinal, a poesia visual é uma síntese destes dois meios, e esta obra foca mais no aspecto visual do que verbal, tendo como palavras completas apenas as duas versões do título.
O til/h pequeno brinca com a própria origem do eñe espanhol. Originalmente, o fonema /ɲ/ era representado pelo dígrafo “nn”, que representava um n longo em Latim. Já que pergaminho era um material bem escasso e caro na era medieval, escribas desenvolveram um sistema extenso de abreviações para certos dígrafos e palavras, que costumavam envolver ou colocar uma letra minúscula em cima de uma letra de tamanho normal, ou um acento, como o próprio til. Neste poema, o til/h faz referência a ambos os métodos. Ademais, o til/h parece o símbolo matemático “≉”, que significa “não é quase igual a”.
Há ainda uma estratégia de oralidade nesta obra: a brincadeira oral deste poema surge do fato de ambas as línguas pronunciarem o título da obra da mesma forma, apesar da grafia diferente: o eñe espanhol, e o dígrafo nh, que aqui representa o português. (Interessantemente, ele originalmente surgiu na lingua occitana, outra integrante da família românica, e mãe do trovadorismo.)
Além de representar o fenômeno do Portuñol/Portunhol de uma maneira concisa e memorável, o poema me fez pensar sobre como sua premissa, retratando as diferenças marcantes entre duas línguas irmãs, e como elas se misturam, poderia ser adaptada para outras línguas. Por exemplo, a língua russa tem pelo menos dois “portunhóis”: o Surzhyk (mistura com o ucraniano) e a Trasianka (mistura com o bielorrusso).
Além disso, também me lembrei do Galego, a língua mais próxima ao português, descrita por muitos que a encontram pela primeira vez como “portunhol oficial”, ou “brasileiros tentando falar espanhol”. Embora o poema não tenha qualquer ligação proposital com esta língua, outra coincidência interessantíssima é o fato de ela usar tanto o ñ (representando o mesmo som que em espanhol) e o dígrafo nh (representando o som /ŋ/, o “ng" do inglês.)
Rafaela Albernaz
Rafaela Albernaz é aluna do curso de Letras da PUC-Rio, onde se destaca pelo seu amplo conhecimento linguístico e interesse encantador pelo mundo das palavras!
2 comentários:
Amei seu texto Rafaela! Tenho um especial carinho por linguística provocado por uma grande amizade a um holandês que escrevia e falava português como um brasileiro muito letrado! Gostaria de ter estudado quando podia mas agora minha cabeça/mente me dá uns sustos, às vezes, que dificulta o aprendizado. Mas com ele (o holandês) criei o hábito de procurar as origens de palavras novas. Isto facilita muito para gravar o seu sentido e a sua grafia. Assim foi que comecei a estudar línguas para passar o tempo de “aposentada” . Com seu comentário do “portunhol” pude me inteirar mais sobre a linguística e aprender mais um pouquinho! Parabéns Rafaela pelo seu mergulho em águas que eu gostaria mas não consigo mais me aventurar! Um carinho!
Beatriz Junqueira Pedras
Rafaela "mordaz" Albernaz: denunciando como a política está bem envolvida neste processo linguístico: "Uma língua é um dialeto com um exército e marinha.” 👏👏👏
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