Nelson Rodrigues subiu no próprio conceito quando enfim entregou
para Fernanda Montenegro a peça prometida, “O beijo no asfalto”,
após oito meses de insistentes telefonemas da atriz para a redação
do jornal carioca “Última Hora”, no qual o escritor cumpria
expediente.
Quem conta esse episódio é a própria Fernanda no palco do Teatro Multiplan, onde a artista carioca fica em cartaz até este sábado, 26 de junho, com a leitura do texto “Nelson Rodrigues por ele mesmo”, antes de partir em turnê pelo Brasil. O espetáculo vem arrebatando multidões desde 2014, em apresentações alternadas com a peça em que a artista lê texto da escritora francesa Simone de Beauvoir (1908–1986), ícone do feminismo.
Essa passagem do texto “Nelson Rodrigues por ele mesmo” adquire humor involuntário, uma fina ironia, por ser contada pela própria atriz que protagonizou a ocorrência dramatúrgica. Escrita por Nelson em 1960, “O beijo no asfalto” chegou à cena em 1961 em marcante montagem dirigida por Gianni Ratto (1916–2005) para o Teatro do Sete, grupo integrado por Fernanda com Sergio Britto (1923–2011), Ítalo Rossi (1931–2011) e o companheiro de vida, palco e coxia Fernando Torres (1927–2008), entre outros dos grandes pioneiros do teatro brasileiro.
Quatro anos depois da estreia da peça “O beijo no asfalto”, Fernanda Montenegro cruzou novamente seu caminho profissional com o de Nelson Rodrigues ao estrelar, em 1965, o filme “A falecida”, dirigido pelo cineasta Leon Hirszman (1937–1987), a partir de outro texto para teatro escrito pelo dramaturgo com o rótulo de “tragédia carioca”.
Contudo, na leitura de “Nelson Rodrigues por ele mesmo”, essas interseções biográficas importam menos do que a habilidade extraordinária da atriz para captar todos os sentimentos do mundo impressos nas linhas e sublinhas do texto em que Nelson Falcão Rodrigues (23 de agosto de 1912–21 de dezembro de 1980) recorda trechos fundamentais da vida gerada no Recife (PE), mas vivida desde a infância no mesmo subúrbio carioca que pariu Arlete Pinheiro Esteves da Silva, nome de batismo de Fernanda Montenegro, nascida em 16 de outubro de 1929, há quase 96 anos.
Arlete virou Fernanda em cena, a partir de 1950. É com a técnica e a alma distintivas de uma atriz inigualável que Fernanda lê Nelson Mas ler é verbo insuficiente, impreciso, diante da imensidão da cena, do vasto mundo amplificado pelas palavras do dramaturgo na voz grave da atriz. Mesmo que o espectador desconheça por completo o universo da obra de Nelson Rodrigues, ele sairá do teatro com a percepção de que o escritor foi um espírito em desassossego, atormentado, entre outras coisas, pela “visão já conhecida” do assassinato do irmão Roberto Rodrigues (1906–1929), falecido com 23 anos de idade. Então, Nelson tinha apenas 17 anos.
A sombra da morte permeou a vida de Nelson, aquele cujo destino parecia ser exaltar o pecado na escrita. Fernanda diverte o público ao contar do tema da primeira redação escolar do futuro escritor (o adultério), comove a plateia ao mencionar os retiros do escritor em cidades como Campos do Jordão (SP) para tentar escapar da sanha assassina da tuberculose e surpreende os espectadores ao realçar a vaidade aflorada do dramaturgo a partir da aclamação unânime com a segunda peça, “Vestido de noiva”, marco da modernidade do teatro brasileiro na encenação de 1943 orquestrada sob direção de Ziembinski (1908–1978).
Todos esses acontecimentos parecem ganhar vida na voz, no corpo, nas inflexões e nos olhares de Fernanda Montenegro. Não é uma leitura o que se vê e ouve no palco, mas uma intepretação enriquecedora da obra escrita pela filha de Nelson, Sonia Rodrigues, e apresentada em 2012 com a reunião de declarações do dramaturgo em entrevistas.
A seleção de Fernanda Montenegro torna ainda mais fina a costura da obra. Há princípio, meio e fim na transposição de “Nelson Rodrigues por ele mesmo” para o palco. Há sobretudo o ritmo dado pela atriz, senhora dessa cena aliciante em que desvenda obsessões e delírios de Nelson Rodrigues, cujas angústias dores e lágrimas podem até gerar na plateia nervosos sorrisos de ironia, como sugerem os versos da ária “Vesti la giubba” (1892), tema da ópera italiana “Pagliacci” ouvido em cena como espécie de prólogo para tudo que será lido pela atriz.
No circo de ilusões e horrores da vida, Nelson Rodrigues nunca foi um palhaço, mas um escritor de alma atormentada e assumidamente reacionária que se redimiu pela obra magistral, pela revisão da postura política (a partir da prisão e tortura do filho Nelson Rodrigues Filho na década de 1970) e que, no resumo da ópera, deu o máximo de si mesmo, como sublinha ao fim Fernanda Montenegro, dama da cena, ao alimentar a eternidade do escritor na magia do palco.
Mauro Ferreira
Quem conta esse episódio é a própria Fernanda no palco do Teatro Multiplan, onde a artista carioca fica em cartaz até este sábado, 26 de junho, com a leitura do texto “Nelson Rodrigues por ele mesmo”, antes de partir em turnê pelo Brasil. O espetáculo vem arrebatando multidões desde 2014, em apresentações alternadas com a peça em que a artista lê texto da escritora francesa Simone de Beauvoir (1908–1986), ícone do feminismo.
Essa passagem do texto “Nelson Rodrigues por ele mesmo” adquire humor involuntário, uma fina ironia, por ser contada pela própria atriz que protagonizou a ocorrência dramatúrgica. Escrita por Nelson em 1960, “O beijo no asfalto” chegou à cena em 1961 em marcante montagem dirigida por Gianni Ratto (1916–2005) para o Teatro do Sete, grupo integrado por Fernanda com Sergio Britto (1923–2011), Ítalo Rossi (1931–2011) e o companheiro de vida, palco e coxia Fernando Torres (1927–2008), entre outros dos grandes pioneiros do teatro brasileiro.
Quatro anos depois da estreia da peça “O beijo no asfalto”, Fernanda Montenegro cruzou novamente seu caminho profissional com o de Nelson Rodrigues ao estrelar, em 1965, o filme “A falecida”, dirigido pelo cineasta Leon Hirszman (1937–1987), a partir de outro texto para teatro escrito pelo dramaturgo com o rótulo de “tragédia carioca”.
Contudo, na leitura de “Nelson Rodrigues por ele mesmo”, essas interseções biográficas importam menos do que a habilidade extraordinária da atriz para captar todos os sentimentos do mundo impressos nas linhas e sublinhas do texto em que Nelson Falcão Rodrigues (23 de agosto de 1912–21 de dezembro de 1980) recorda trechos fundamentais da vida gerada no Recife (PE), mas vivida desde a infância no mesmo subúrbio carioca que pariu Arlete Pinheiro Esteves da Silva, nome de batismo de Fernanda Montenegro, nascida em 16 de outubro de 1929, há quase 96 anos.
Arlete virou Fernanda em cena, a partir de 1950. É com a técnica e a alma distintivas de uma atriz inigualável que Fernanda lê Nelson Mas ler é verbo insuficiente, impreciso, diante da imensidão da cena, do vasto mundo amplificado pelas palavras do dramaturgo na voz grave da atriz. Mesmo que o espectador desconheça por completo o universo da obra de Nelson Rodrigues, ele sairá do teatro com a percepção de que o escritor foi um espírito em desassossego, atormentado, entre outras coisas, pela “visão já conhecida” do assassinato do irmão Roberto Rodrigues (1906–1929), falecido com 23 anos de idade. Então, Nelson tinha apenas 17 anos.
A sombra da morte permeou a vida de Nelson, aquele cujo destino parecia ser exaltar o pecado na escrita. Fernanda diverte o público ao contar do tema da primeira redação escolar do futuro escritor (o adultério), comove a plateia ao mencionar os retiros do escritor em cidades como Campos do Jordão (SP) para tentar escapar da sanha assassina da tuberculose e surpreende os espectadores ao realçar a vaidade aflorada do dramaturgo a partir da aclamação unânime com a segunda peça, “Vestido de noiva”, marco da modernidade do teatro brasileiro na encenação de 1943 orquestrada sob direção de Ziembinski (1908–1978).
Todos esses acontecimentos parecem ganhar vida na voz, no corpo, nas inflexões e nos olhares de Fernanda Montenegro. Não é uma leitura o que se vê e ouve no palco, mas uma intepretação enriquecedora da obra escrita pela filha de Nelson, Sonia Rodrigues, e apresentada em 2012 com a reunião de declarações do dramaturgo em entrevistas.
A seleção de Fernanda Montenegro torna ainda mais fina a costura da obra. Há princípio, meio e fim na transposição de “Nelson Rodrigues por ele mesmo” para o palco. Há sobretudo o ritmo dado pela atriz, senhora dessa cena aliciante em que desvenda obsessões e delírios de Nelson Rodrigues, cujas angústias dores e lágrimas podem até gerar na plateia nervosos sorrisos de ironia, como sugerem os versos da ária “Vesti la giubba” (1892), tema da ópera italiana “Pagliacci” ouvido em cena como espécie de prólogo para tudo que será lido pela atriz.
No circo de ilusões e horrores da vida, Nelson Rodrigues nunca foi um palhaço, mas um escritor de alma atormentada e assumidamente reacionária que se redimiu pela obra magistral, pela revisão da postura política (a partir da prisão e tortura do filho Nelson Rodrigues Filho na década de 1970) e que, no resumo da ópera, deu o máximo de si mesmo, como sublinha ao fim Fernanda Montenegro, dama da cena, ao alimentar a eternidade do escritor na magia do palco.
Mauro Ferreira
Um comentário:
No circo de ilusões e horrores da vida, nós muitas vezes vestimos a máscara de palhaços para dar aos outros a alegria que não temos.🤡🤡🤡🤡🤡🤡
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