terça-feira, 18 de novembro de 2025
Neguinho
Neguinho era branco, muito magro, baixinho, feio, narigudo, pé grande e pau pequeno. Detestava futebol, novela, praia, churrasco e pagode, ou seja, tudo em Neguinho era estranho. Gostava de cinema europeu que assistia desde criança na cabine de projeção do centro cultural onde o tio trabalhava. Na verdade, o tio dormia e ele tomava contada projeção.
Amava a escuridão da sala de projeção. Como não sabia ler, podia inventar as histórias que quisesse para aqueles filmes, o mesmo filme poderia ter enredos completamente diferentes e como a sala vivia vazia, muitas vezes, podia terminar o filme a hora que bem entendesse. Na tela podia viver outras vidas, ser alguém, ali era impossível viver sem ele. Neguinho era Deus.
Foda mesmo era quando tinha que voltar pra casa, geral tinha mania de falar que morar no morro era maneiro, maneiro é o caralho! Os vizinhos eram tudo um bando de filhos da puta! Só por que a caxanga dele era de telha, muitos ficavam esculachando. As outras casas eram de laje, tinham umas até com antena parabólica, mas de que adianta? Eles moravam na favela que nem ele! Era tudo um a mesma merda.
Do lado da casa dele era um terreiro de macumba que tinha batucada todo dia, do outro lado da rua uma igreja evangélica com direito à música ao vivo, mal tocada e mal cantada. De manhã cedo abria a birosca da Edna que só tocava e pagode. Pra completar, ainda tinha a oficina do Jô que tocava funk o dia todo. Aquela mistura de som alto deixava qualquer um maluco. Ainda mistura de som alto deixava qualquer um maluco. Ainda dizem que a favela agora é pacificada.
Teve um dia que tacaram um cano de ferro que quebrou a telha e caiu na cama, exatamente onde ele dormia. Já pensou se ele tivesse deitado na hora? Morria! Essas paradas são sinistras!
Os arrombados dos vizinhos ainda foram chamar a polícia! Os PMs vão fazer o quê?
— Tô lá em casa, tranquilão. Escuto bater na porta, me aparece o Abelha com os PMs dizendo que eu quebrei o vidro da janela da casa dele. Quebrei mesmo, mas falei que não quebrei. Ele não falou que ninguém viu ele tacando o ferro no meu telhado? Falei logo que ninguém tinha me visto jogando a pedra na janela. Até provar que berimbau não é gaita rolou o maior bate-boca e ficou tudo por isso mesmo. Tem dia que me vem uns pensamentos neuróticos, todo mundo me vê assim, magrinho, baixinho, mas eu sou ruim! Vai vendo!
Neguinho desceu o morro do Vidigal bolado e quando viu aquele monte de gente descendo pra pista pra fazer uma manifestação na rua do governador, foi junto, nem sabia o que era, mas foi.
Quando chegou lá o bagulho já estava doido, cheio de carro de polícia, rolava tiro, bomba, spray de pimenta. Neguinho tremia de excitação, nem sabia mais pra onde estava indo, aquilo tudo era lindo, se sentia o cão solto no meio do redemoinho, quebrava os vidros dos carros, das portas dos bancos, das lojas. Saqueava as mercadorias e não era para roubar, era só pra botar fogo e ver tudo arder. Nunca tinha visto uma fogueira tão linda.
As luzes do fogo e das câmeras de TV se misturavam e ele mostrava mais a cara, sorria, saiu no jornal com foto e tudo. Agora era o vândalo procurando: José Desidério da Silva.
Márcio Januário
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário