sábado, 28 de março de 2009

Ovulação, conto clássico de Camila Justino:

.
.
Segundo dia de ovulação
.
Ninguém dá um vintém para minha ovulação. O mundo não se importa porque todos estão com contas atrasadas para pagar, todos têm que se preparar para o verão malhando numa bicicleta que não sai do lugar sem perceber se o vento lá fora está soprando mais forte. Se a tempestade está chegando. Não querem saber se a reação química do meu corpo é magia divina, é dádiva da vida, assim tão cheia de complexidades simples. Tão puro-cheio. Não. De jeito maneira, o dia tem 24 horas, o ano, 365 dias e corre porque agora é agosto, depois é dezembro e existem filas pra enfrentar trânsito, ponte aérea, reunião, médico, dentista, buscar o filho na escola, ligar pro marido comprou o rabanete? E eu. Eu ovulando tentando captar uma borboleta voar, eu carrego a esperança dentro de mim. Eu acalmando meus óvulos inquietos. Eu tentando entrar nos olhos do guardador de carro, eu estou ovulando, percebe? Não. O importante é que o contrato milionário está para ser fechado. E o meu contrato em aberto só segue ao que não existe no papel, ao que não depende de ponteiro, de pontuação ou de qualquer assinatura. É o meu corpo se desenrolando no seu ritmo próprio. Calmamente e pulsante. Mas é besteira porque é preciso atender o telefone. Ligação de gente importante. Internacional, tá sabendo? Então fechado. Ah! E não esquece de avisar pra empregada arrumar aquela baderna, uma incompetente, não faz nada do jeito certo. Eu ovulando. As pessoas se cruzando na rua, no ônibus, no carro, o tempo passando, o dia chegando ao fim. É mais importante do que pensar que o mundo está quase no fim. As estrelas aparecem mas a janela deve ser fechada porque o tiro pode chegar pela culatra ou não, ele chega, não se sabe de onde. As portas trancadas. Os sonhos perdidos. As preocupações. Emergências devem causar insônia. Eu deixando de ovular. Amanhã tem que acordar cedo. E comprar rabanete.
.
.
Como se deu a ovulação
.
Acordei sonhando que meu ginecologista subia em cima de mim, eu cedia passivamente a cada movimento que ele insinuava. Depois de breviamente sóbria, um leve susto pairando: de onde tirei esse sonho? Depois de pôr o pé no assoalho frio, depois do banho, do pão, de bochechar colgate, de pentear o cabelo, e, logo em seguida, uma chacoalhada nos fios dando um ar natural, suuuper natural, e de passar o olho no jornal, as últimas notícias, as de sempre. Parti. Parti para a jornada com o carlton aceso e um friozinho na espinha. Meu destino era o Doutor S. Lá, tira a roupa, a vergonha fica, o nervoso da pinça torcendo meu útero, e raspa ali, olha dali e daqui, passa um cano, uma câmera passando por minha vagina, os dedos de Doutor S. Também passando, gesticulando. O que mais suporta minha vagina? Eu segurando o braço da Dona miriam. Ai, meu Deus. Nada de Doutor S. Subir em cima de mim com as mãos fortes. Eu só vejo os olhos azuis que adentravam minha vagina por cima do tecido também azul que cobria minha doce piriquita (assim Doutor S. chama). — minha filha, você está ovulando. Você está realmente ovulando. Olha a tela. Ele agora focava seus olhos na tela, embasbacado com minha ovulação, assim suponho. Uma bola enorme, uma bomba de chocolate piscando. Quanto aos exames, toneladas de papel e potinhos com isso e aquilo, eu já nem escutava o que Doutor S. falava. Não me importava. Porque eu estava ovulando. E para quem ovula o mundo é outro, é diferente. Carregava dentro de mim princípio de vida e agora eu entendia o que meus quadris estavam querendo dizer ao sair dali. Eu derramava um mel afiado que escorria dos meus óvulos que maduros cintilavam. Eu sentia meus óvulos pulsando, dando cambalhotas na trompa. Sim, eu estava ovulando. E cada passar de mãos nos cabelos era iniciativa da minha ovulação, cada passo minuciosamente calculado. Cada gesto fazendo minha pele arrepiar pelo vento que esbarrava, nos meus óvulos. a minha ovulação. E sorri para as crianças, para o senhor, para a moça, para a secretária, para o poste, para o carro, para as placas, para a calçada, o senhor das balas, balas açucaradas de caramelos, para a rua, quanta gente passando, quanto suor, quanta respiração ofegante. O mundo devia ser habitado por mulheres que ovulam permanentemente. Do celular mandei mensagens que deixassem subentendido o que meu corpo exalava. Não me importava se é segunda-feira, muito menos se são nove horas da manhã. Eu sabia e o mundo precisava saber. Eu estou ovulando e estou no cio.
.
Camila Justino
.

Nenhum comentário: