segunda-feira, 26 de maio de 2014

Luta contra a concentração


Não quero prestar atenção nela. Nem em nada do que ela diz. Muito menos em seus padrões exacerbados. Nem em toda sua filha da putagem. (Espero que não leia esse texto, enquanto passa o olho em minha mesa para ver se fiz, ou não, sua tarefa) Tampouco prestar atenção em Lourdinha que coloca em sua garrafa térmica o café que acabou de fazer.

Não quero prestar atenção nela. Não é nada pessoal, só gostaria de entrar em um mundo paralelo e imaginar aquele casal indie, que eu sou fã, tendo um dia bom, pelo simples fato de serem perfeitos um para o outro. Isso me faz imaginar como as pessoas reagiriam à minha morte. Apenas por realmente estar morrendo. Morrendo de tédio. Morrendo de vontade de sair da sala, descer as escadas, passar pela porta do SAA e ir em direção ao ponto de ônibus. Pegá-lo. E depois de dois pontos, solicitar parada (temos o melhor transporte coletivo do país) e aí, simplesmente parar. Parar e esperar (parece que só fazemos isso em uma vida); esperar até cessar o tráfico de carros em via de mão dupla. Caso contrário seria atropelada e aí sim, com a minha morte concreta, as pessoas iriam reagir como imaginei (ou não). Culpariam meus, pobres, fones de ouvido. Aceleraria a morte de D. Ana. Ao saber da minha morte, morreriam de desgosto. Iriam morar na praia com suas respectivas amantes. Eu morreria aos 16 anos sem esforço algum, sem ter concluído o ensino médio, sem ter encontrado um monsieur Duvivier para construirmos uma vida juntos, sem ter viajado para a Austrália, sem saber como se come com palitinhos japoneses, sem saber o nome dos palitinhos japoneses. Alguns diriam que morreu jovem e olhariam para o corpo estirado no asfalto com compaixão, outros fariam vistas grossas.

Ou talvez eu esperaria com êxito e não seria atropelada, nem morta,nem culpariam meus,pobres, fones de ouvido, nem aceleraria o processo natural de morte de D. Ana, nem morreriam de desgosto ao saberem de minha morte, nem mudariam para a praia com suas respectivas amantes. E nem eu morreria aos 16 anos sem esforço algum, talvez concluiria o ensino médio, talvez encontraria um monsieur Duvivier para construirmos uma vida juntos, talvez viajaria para a Austrália, talvez aprenderia como come-se com palitinhos japoneses, talvez saberia o nome dos palitinhos japoneses. Talvez eu não sairia da sala, não desceria as escadas,não passaria pela porta do SAA. Nem terminaria esse texto. Nem esconderia isso dela. Nem tentaria disfarçar sua tarefa não feita. Nem fingiria prestar atenção nela... Melhor eu prestar atenção nela! Tem mais alguns minutos.



Flavia Norberto é leitora-colaboradora do Plástico Bolha, e tem outros textos publicados aqui no blog!!

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