“Não, que o quê?— respondem.
Uê, morde por dentro
Uê, quem sabe desses meninos
Edimilson de Almeida Pereira
O escritor mineiro João Guimarães Rosa (27 de junho de 1908 – 19 de novembro de 1967) está entronizado no panteão dos imortais da literatura brasileira por livros como Sagarana (1946) e Grande sertão: veredas (1956), obras-primas referenciais pelo estilo inovador da prosa de Rosa.
Na cena de Pormenor de ausência, espetáculo que vem rodando o Brasil desde 2022 e que no momento está em cartaz no Teatro Vannucci, no Rio de Janeiro (RJ), em temporada às segundas e terças-feiras, Guimarães Rosa aparece humanizado na pele do ator paulistano Giuseppe Oristanio.
Sob direção de Ernesto Piccolo, o ator interpreta o escritor nos últimos anos de sua vida, em saga para se tornar um imortal da Academia Brasileira de Letras e, na luta por uma cadeira na ABL, o romancista se despe da aura sagrada e se mostra um homem picado pelo bichinho da vaidade. Se a obra já estava consolidada, a alma do escritor ainda estava insaciada, movida pelo desejo de uma imortalidade que os livros já haviam lhe garantido, mas que Rosa enxergava somente na vaga da ABL.
Com boa caracterização, Giuseppe Oristanio interpreta Guimarães Rosa na primeira pessoa, dando voz ao texto escrito por Lívia Baião a partir de pesquisa sobre a vida do escritor, o que deu à dramaturga acesso a cartas, documentos e textos de ficção do autor que debutou no universo literário em 1936 com um livro de poesia, Magma.
Em Pormenor de ausência, Guimarães Rosa é o narrador da própria história, de uma saga que mistura vaidade, obsessão e morte. Na encenação minimalista, calcada no texto e no ator, a luz e a música entram somente no fim da peça, para realçar um desfecho já notoriamente trágico.
Como se sempre pressentisse que a chegada à ABL fosse o ápice e o fim da saga existencial, Rosa de fato morreu três dias após tomar posse na cadeira de número 2 em 16 de novembro de 1967, em cerimônia pautada por elogios superlativos de apoiadores, como o jurista Afonso Arinos de Melo Franco (1905–1990).
Pormenor de ausência retrata um Guimarães Rosa às voltas com crenças religiosas, sérios problemas de saúde e dilemas comportamentais. A cena enfatiza que a grandeza da obra muitas vezes contrastou com a dimensão ordinária de uma alma humana como muitas, vítima das armadilhas do ego. É o homem que está em cena, com inseguranças e medos.
Essa humanização de Guimarães Rosa ao longo da hora de duração do monólogo contribui para dissolver qualquer aura mitológica da imagem do autor que desbravou as grandes veredas do sertão mineiro. A recorrente perspectiva da morte talvez seja a senha para o entendimento da obsessão do escritor pela imortalidade intelectual conferida com a entrada na Academia Brasileira de Letras.
Com um fardão posto em cena em uma das extremidades do palco, como a lembrar para o espectador da saga particular de Guimarães Rosa, Pormenor de ausência descontrói a imagem sertaneja, ruralista, que talvez ainda persista no imaginário de quem desconhece as múltiplas atividades desse escritor que também foi diplomata e médico. Mas que passou para a história como um escritor grandioso, visto em cena com as pequenezas comuns a toda a gente.
Mauro Ferreira
Comédia escrita pelo dramaturgo norte-americano Ken Levine com fidelidade às regras do playwriting, America's sexiest couple estreou em julho de 2022 nos Estados Unidos, pondo em cena temas como etarismo e abuso sexual, a partir do reencontro de um casal de atores em fase outonal de suas carreiras.
Três anos depois, o texto ganha a primeira montagem brasileira em adaptação fiel de Tadeu Aguiar, também diretor da encenação, que vem percorrendo capitais do Brasil ao longo de 2025. No momento, O casal mais sexy da América está em cartaz no Rio de Janeiro (RJ), no Teatro Clara Nunes, um dos palcos do Shopping da Gávea, espécie de Cinemark do teatro carioca.
O grande atrativo da peça é a presença de Vera Fischer no papel de Susan White, atriz veterana que fez muito sucesso nos anos 1990, ao estrelar série de TV com o ator Robert McAllister, personagem de Leonardo Franco. Três décadas depois, enquanto luta para se manter em cena, Susan reencontra casualmente Robert em um dos quartos do hotel onde estão hospedados para ir ao funeral de um colega da mesma série. O encontro traz à tona memórias dolorosas, em jogo de cena armado para provocar o riso do espectador, com direito a uma cena de sexo confeitada com o humor pastelão das comédias mais populares.
Com elenco completado por Vitor Thiré, bem aproveitado no papel de um jovem millennial que trabalha no hotel, O casal mais sexy da América se escora na presença magnética de Vera Fischer. Uma das referências de beleza feminina no Brasil, a atriz catarinense, ao longo de sua carreira, lutou para provar que tinha talento. Esse talento é comprovado na pele de Susan.
Vera Fischer festeja 74 anos neste mês de novembro, precisamente no dia 21, e enfrenta há anos o mesmo ocaso de Susan White no mercado do audiovisual. Outrora protagonista de novelas como Coração alado (1980) e Laços de família (2000), sem falar em séries como Desejo (1990), a atriz já não encontra espaço no mundo das novelas e séries. E volta e meia se queixa disso em entrevistas.
Dessa forma, a encenação de O casal mais sexy da América se alimenta de um jogo de espelhos entre atriz e personagem. É como se Vera se visse refletida em Susan. E, quando a personagem desabafa sobre os efeitos do etarismo na profissão, é quase inevitável que o espectador interprete as falas como queixas da própria Vera Fischer em curiosa interseção entre ficção e realidade.
Com montagem de contorno realista, O casal mais sexy da América sustenta a atenção do público como esse jogo de cena ancorado na presença luminosa da impagável estrela Vera Fischer.
Mauro Ferreira