quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Carnicidades


É Rio de Janeiro e tarde cai
no céu dourado que arde o grito
mudo sufoco pensamento sexo.

sigo ambulante e só
vejo a pedra talhada pela fome
em pleno êxtase do riso enganado e seco
prenhe de janelas ovos uivos vivos e mortos
na noite em que mora o silêncio feito de estrondos
consertos  comícios de cometas comércios.

Vago livre num voo breve
pairo desprovido desprevenido
desatino a língua escolhida pelo deus
que são tantos que são todos
todo mundo a cidade e a carne.


André Vinícius Pessôa

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Haicai de Verão


de infinitas lágrimas
e farelo de polvilho
são feitas as praias


Lucas Viriato

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Rua Debret


Há muito tempo,
eu diria milênios,
que não abraço o meu amor
como abracei aquele dia
na rua Debret, quando dentro
dos bolsos os ingressos do cinema
suspiravam pelo
que ali acontecia,
e dentro das bocas os beijos
Dançavam,
pasmos com tamanha alegria.


Hudson Pereira

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Cloe, de Carlos Andreas


Banhada por canais
concêntricos
sobrevoada por pipas
de cidade grande
as pessoas
não me reconhecem
nas ruas
com o
guepardo
na coleira,
mesmo
aqui entre
os pórticos
onde por acaso
me abriguei
da chuva


Carlos Andreas

domingo, 19 de outubro de 2025

Um poeminha de Alvaro Posselt


Essa tá no papo
A mosca pousou
na sopa do sapo


Alvaro Posselt

sábado, 18 de outubro de 2025

Via indireta


Às vezes não amo as rosas,
mas as mesas que as sustêm.

Mas me dirijo às flores
num engano que convém.


José Irmo Gonring

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Exemplos


Um mal exemplo
ainda sim serve de
Ex: emplo.


Márcio Kozlowski

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Marco Nanini é fiel a um teatro de ideias ao reencontrar Gerald Thomas em “Traidor”

Marco Nanini em Traidor | Foto de Matheus José Maria

Vinte anos após armar a cena com a reflexão política de Um circo de rins e fígados (2005), Marco Nanini continua em cartaz com o espetáculo em que reencontra Gerald Thomas, um dos encenadores mais potentes do teatro brasileiro. A reunião de ator e diretor acontece em Traidor. Em rotação pelo Brasil desde novembro de 2023, mês em que estreou em São Paulo (SP), o espetáculo aterrissa no Teatro Luiz Mendonça, no Recife (PE), para duas apresentações agendadas para 18 e 19 de outubro.

Traidor tem texto escrito por Gerald Thomas a partir de observações ácidas sob o fervente caldeirão em que está mergulhado o mundo contemporâneo. Na cena, marcada pela exuberante estética visual criada pelo diretor que se alterna entre Brasil e Nova York, Nanini personifica um ator que, às voltas com o mundo em ebulição da própria cabeça, reflete com certo ar nietzschiano sobre os (des)caminhos do Homem, enquanto permanece isolado em uma ilha, cercado de indagações existenciais.

“Se houvesse um cruzamento entre Kafka e Shakespeare, então esse seria Traidor, uma espécie de híbrido entre o Joseph K de O Processo e o Próspero de A Tempestade, cuja mente renascentista olha para o futuro da civilização, perdoa os detratores e os absolve", sintetiza o encenador.

Na encenação de Gerald Thomas, o mundo é um reino em desencanto, terreno fértil para o cultivo de questionamentos e reflexões existenciais de um ator que se sente estranho no ninho da era digital e das redes nem sempre sociais. Um ator que, no delírio da mente, mostra resiliência na defesa e manutenção da emoção. “A gente se emociona, sim”, repete o ator, em elo com o espetáculo de 2005, encerrado com frase similar.

O ator está só em cena. Nem a presença do coro masculino que encorpa a encenação ao transitar pelo palco dilui a sua solidão na dramaturgia fragmentada e intencionalmente desconexa de Gerald Thomas. Povoado por destroços, sinais da decomposição do mundo contemporâneo, o cenário entroniza o ator ao mesmo tempo em que o desnuda diante do público. O ator-rei está nu, incapaz de se vestir com a bestialidade cotidiana que o assombra como um fantasma.

Traidor se conecta com a obra do escritor tcheco Franz Kafka (1883 – 1924) porque põe em cena a angústia do homem moderno — no caso, um ator, mas poderia ser qualquer homem —  diante do absurdo da condição humana. Teatro do absurdo?  Sim: há muito de Samuel Beckett (1906 – 1989) na medida em que o texto não está lá para ser “entendido” como uma apostila ou uma cartilha da dramaturgia convencional, e sim para ser sentido como um turbilhão de sensações aflitivas que traduzem o descontrole da existência humana no caos apocalíptico do século XXI. Se o teatro por vezes soa absurdo, é porque a vida é absurda.

Totalmente entregue ao jogo cênico proposto por Gerald Thomas, Marco Nanini expõe em Traidor a fidelidade a um teatro de ideias em que música, iluminação, cenografia — todas exuberantes, como de hábito nos espetáculos de Gerald — enchem olhos e ouvidos sem atenuar o desconforto da mente do espectador.

Diante do apocalipse iminente, o dramaturgo aposta na colagem de cacos (em afinidade com o cenário em ruínas) e de ideias encadeadas com certo humor e sem lógica aparente no texto provocativo. Em Traidor, o trabalho de Marco Nanini está posto a serviço do teatro de Gerald Thomas. O que somente engrandece o ator no exercício inquieto do ofício.


Mauro Ferreira


quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Poeminha de Rodrigo de Souza Leão


cavo o meu espaço
cavando a sepultura
buraco nas alturas

Rodrigo de Souza Leão

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Rocinha


Olhar a favela
Assim tão bela
Dessa grande janela
Me mostra as sequelas
Expostas
À mostra
Os tais pormenores
Como num entalhe 
Falam por si só
Aonde a vida 
Aberta em ferida 
É de deus um milagre
Da bala perdida
Ou do pó
Bela favela
Favela bela
São becos, ruelas
Atalhos, vielas
Nascida dos passos 
De desbravadores
De amores e desamores
Dos que foram empurrados
Morro acima
Deletados
Marginalizados
Eu ouço o seu grito
Às vezes aflito
Às vezes tristão
Ou então
Eufórico
Estúpido
Melancólico
Na ânsia de só querer chamar atenção
Eu vejo a sua luta
Eu vejo a batalha
Na eterna permuta
De guerra e de paz
Na vida favelada
Que cresce aos centos
Ao longo do tempo
Frágil
Fugaz
Favela moleca
Favela sapeca
Malandreada
Morena ondulada
Bailando com a gente
De frente pro mar
Eu cresço a te observar


Kell

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Cacoete


todos os poemas
são inconfessáveis
mas pensando bem
não faz diferença
acho que ninguém
revira esta gaveta
à procura de pistas
de que importa um tropeço
na sapatilha ou o cacoete
daqueles que desviam
os olhos
dos olhos?


Alice Sant'Anna

domingo, 12 de outubro de 2025

Descaptura de um órgão


isso merece o medo
se você disser que não está com medo
está mentindo
é como descer uma montanha gigante
sem experiência alguma


Mauro Santa Cecília

sábado, 11 de outubro de 2025

espantalho vespertino


amarro meu pulsos num laço
à boca, coração de veado e uma fita
tapo minhas orelhas com mato

vendo meus olhos com trapo
esqueço meus pé no telhado
com suspiro, um segundo e acabo.


Ana Salek

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Mineiridade


Quando chego de Minas
trago sempre na boca um gosto de terra.
Chego aqui com o coração fechado,
Um trem esquisito no peito.
Meus olhos chegam divagando saudades,
meus pensamentos cheios de uais
e esta cidade aqui me machuca
me deixa maciça, cimento
e sem jeito.
Chegando de Minas, 
trago sempre nos bolsos
queijos, quiabos babentos
da calma mineira.
É duro, é triste
Ficar aqui
com tanta mineiridade no peito.


Conceição Evaristo

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Um poema de Carlos Orfeu


vejo (me)
imagem

vórtice
(dis-
farce)

trajado
de
vidro


Carlos Orfeu

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Cafeterias


Colombo
Gioconda
Starbucks
Cafeína
Esch Café
Manon
Casa Cavé
Argumento

(nobres endereços para sofrer em silêncio)


Hudson Pereira

terça-feira, 7 de outubro de 2025

O nada


Nada vi nada sei
Nada me interessa
Nada é normal
Nada é tão tudo que eu chego
A não ver nada
Nada dá medo
Nada é ver ouvir e calar

O nada é não se incomodar com nada
Pra viver nesse mundo de covardia é preciso
Muitas vezes você ser surdo

Portanto o nada não ouve, não vê
Não sabe de nada


Lindacy Fidelis

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Oração sem sujeito


Oh grande ácido acetil-salicílico,
em nome do paracetamol,
nos dê vinte miligramas de boa vontade.
Livrai-nos de todo omeprazol
e de toda receita de meia verdade,
e não nos deixeis cair no zolpidem.
Mandai todo voltaren pra farmácia que o pediu.
Benzetacil.
Amém.


Ẹgrium Tạdrel

domingo, 5 de outubro de 2025

Felina, de Noélia Ribeiro


you
beside me
inside me
behind me
hiding me
near me
hear me

you and me
you all me
me all


Noélia Ribeiro

sábado, 4 de outubro de 2025

a pedra tão longe


a pedra, tão longe
reluz e me introduz
segredos de monge


Marcela Sperandio

Um poema de Luana Carvalho


Todos  os dias me sujo de coisas eternas café preto
Vinho tinto shoyo sono horror saudade 
sombra chama chuva brita
parasitas labirintos
lestrigões 
livros discos organismos
hemisférios centenários água sorte
soro cores casas brancas com varandas 
variantes armaduras sonhos seivas céu você


Luana Carvalho

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

3x4, de André Vinícius Pessôa


Que tempo é esse?
Que medida da esperança deitada na grama?

Que é desse jardim das delícias?
Mil e uma noites com seus dias quentes?

Mergulhar no fado
atravessar a nado
criar o verso fátuo:
a tão pequena gota.

3x4
meu retrato
minha cara à tapa.

Mão no leme:
a hora é nua.

Saravá
a terra treme.

Minha tara
sua lua.


André Vinícius Pessôa

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

“O motociclista no globo da morte” expõe o estado-violência do ser humano

Monólogo escrito por Leonardo Netto e estrelado pelo ator Eduardo Moscovis, sob direção de Rodrigo Portella, impacta ao mostrar a ebulição da humanidade através da história de um homem comum diante da barbárie.


Eduardo Moscovis em O motociclista no globo da morte | Foto de divulgação

O poeta e dramaturgo Bertolt Brecht (1898 – 1956) já alertou que “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém reputa como violentas as margens que o comprimem”. No monólogo O motociclista no globo da morte, escrito por Leonardo Netto e encenado pelo ator Eduardo Moscovis sob direção minimalista de Rodrigo Portella, a violência espreita o espectador como um bicho acuado, pronto para atacar a qualquer momento. Só que o ataque, previsto desde o início do monólogo, é desferido ao fim de forma surpreendente e atinge o espectador como soco no estômago que chacoalha a mente e provoca a reflexão sobre um mundo em permanente estado de violência na vida cotidiana.

Na cena orquestrada por Rodrigo Portella, a violência é de início interior e tem a semente escondida na alma do personagem de Moscovis, Antônio, homem pacífico que vê o mundo implodir por força de circunstâncias trágicas provocadas por atos contínuos de misoginia e de crueldade com um animal. Nesse contexto, Antônio poderia até ser visto e saudado como herói, mas, como também lembrou o escritor e filósofo francês Jean Paul Sartre (1905 - 1980), toda e qualquer violência é sempre uma derrota.

Antônio sai derrotado do embate com outro Antônio, um ser humano como ele, um homônimo, um semelhante. Mas a sensação de derrota é geral ao fim da cena muda em que impera um incômodo silêncio. E até no silêncio ator e texto se agigantam no espetáculo em cartaz de quinta-feira a domingo no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro (RJ), até 26 de outubro.

O motociclista no globo da morte chega à cena com o mesmo impacto de Prima facie (2024), monólogo blockbuster da temporada anterior estrelado por Debora Falabella sobre a injustiça praticada pela Justiça contra mulheres vítimas de violência sexual. Há um elo entre os dois espetáculos porque Rita, personagem citada inúmeras vezes no texto de O motociclista no globo da morte, mas invisível aos olhos do espectador, também é vítima psicológica da espiral de violência misógina.

Mas é Antônio, o homem em tese pacífico vivido por Moscovis, que exterioriza e põe em prática uma violência que, afinal, reside e lateja dentro de todos os seres humanos, espectadores de videogames e de filmes sanguinários. Mesmo porque, nesse globo da morte chamado planeta Terra, já é difícil saber até que ponto a violência da vida real é potencializada pelos estímulos da violência da ficção.

Antônio derrapa e perde o controle no globo da morte. No momento do acidente, a iluminação de Ana Luzia de Simoni deixa o ator com menos luz na cena intencionalmente casual, reforçando a ideia, proposta pelo diretor Rodrigo Portella, de que Antônio é homem comum, ordinário, o que também se traduz visualmente pelo figurino de Gabriela Marra.

O espetáculo se impõe pela força do texto, da interpretação do ator (especialmente comovente na descrição do ato de violência) e da direção acertadamente crua. Todos os acessórios, como a trilha sonora de Muato, corroboram a sensação de que o sucedido com Antônio pode acontecer com qualquer um, a qualquer momento. E é essa consciência crescente ao longo do espetáculo que atiça a reflexão do espectador, capturado para olhar para dentro de si mesmo e detectar os polos potenciais de violência internalizada.

O motociclista no globo da morte reforça o dedo na ferida social. E a mente arde, ciente de que todo mundo pode ser Antônio se comprimido pelas margens estreitas da barbárie. Até porque, em última instância, como já sublinhou um líder budista da linhagem do dalai-lama, a violência interna ou externa é um sinal de desespero.


Mauro Ferreira

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Pranto


nada machuca tanto
(e gera mais espanto)
do que este curto corte
da fina folha em branco


Lucas Viriato