sexta-feira, 31 de maio de 2024
Entrevista: Mauro Ferreira — o crítico, a música e as palavras
quinta-feira, 30 de maio de 2024
Um poema de Ana Costa Ribeiro
guardava histórias como
guarda as contas
um colar
— amarradas num fio
de nylon, firme
e frágil —
que pendurado no pescoço
junto ao peito
está seguro
quem não arrebenta quando
está longe do
peito?
Ana Costa Ribeiro
quarta-feira, 29 de maio de 2024
um poema para Yemanjá
mãe, perdoa os crimes na Guanabara
os presos políticos atirados de helicópteros
e teus ministros confinados como livros
na estante dos navios negreiros
rainha, segura Olokum
para que a grande onda não arrebente
mas estende teu braço - osso espuma flor
para nos erguer e nos ajoelhar
Juliana Bernardo
terça-feira, 28 de maio de 2024
segunda-feira, 27 de maio de 2024
Exílio, de Heyk Pimenta
eu sou a raísa
eu sou o giovani e o joannes
eu sou caroll
eu sou o berimba
eu sou o victor e o bacana
o túlio
o sergio
eu sou a lucia
tomaz
ander
luciana
mariana
eu sou todos os exílios da década
minha mãe e meu pai
minha irmã
cada um a seu tempo
Heyk Pimenta
domingo, 26 de maio de 2024
Cantiga de amiga
Não não há, meu amor,
uma gota de sangue em cada poema
nas veias do poeta corre um fluido azul
de caneta-bic.
Não não há, meu amor,
uma gota de esperma em cada poema
o gozo do poeta, puro e líquido,
é negro nanquim.
Não não há, meu amor,
uma gota de tinta em cada poema
da pluma do poeta pinga, incolor,
um pensamento:
esse
aqui
Patrícia Lavelle
sábado, 25 de maio de 2024
serpentes e heras
o feijão catado
o feijão cozendo
o aroma verde as esperas
descascar castanhas
torrar comer oferecer
para as crianças velhas
o milho nas espigas
é quase bonito e é
nodoso o vapor do caju
o leite da vaca
ricota e nata
ao som dos latidos das eras
o açude sangrando
e o coração quarando
mergulho nas turvas cisternas
os porcos na lama
serão abatidos
cuidado há serpentes e heras
o cheiro do mato
é quase bonito e é nodoso
o vapor do caju
o feijão catado
o feijão cozendo
o aroma verde as esperas
Larissa Lins
sexta-feira, 24 de maio de 2024
Entrevista: Marilucia Corel — infância, leitura e o amor pela docência
por Lucas Barreri e Ana Caroline Araújo
1) Como a Literatura entrou em sua vida e como você se relaciona com ela hoje?
Meu primeiro contato com a Literatura ocorreu por intermédio das histórias infantis contadas pelo meu irmão. Amava ouvir, por exemplo, "Os Três Porquinhos", e ver meu irmão interpretando os personagens. Assim que comecei a ler, por ser curiosa, lia tudo o que podia. Por ter desenvolvido esse interesse, ganhei livros ainda criança - A Fada que Tinha Ideias, Girafinha Flor faz uma descoberta, uma coleção de histórias em quadrinhos da Disney (mais de 30 exemplares). Na escola, sempre passavam leituras bimestrais, e eu também pegava livros emprestados na biblioteca municipal localizada no Barreto (li praticamente toda a série Vaga-Lume) no período da adolescência. Diante disso, não posso negar que o amor pela leitura foi um dos fatores que me levaram a cursar Letras. Atualmente, pelos diversos afazeres, meu ritmo de leitura não é tão intenso, mas continuo amando e viajando pelas páginas de muitos livros.
2) Dom, inspiração, trabalho, achado: nasce-se poeta ou torna-se poeta?
Pergunta difícil, mas penso que é preciso nascer poeta. A questão é se o dom será desenvolvido ou não, e para isso é preciso trabalho e inspiração. Então, considero que há muitos poetas escondidos, pessoas que não tiveram a oportunidade de seguir e desenvolver seu talento e encantar o mundo com suas percepções.
3) Sendo um profissional da palavra, o seu olhar está sempre afiado, ou você consegue ser um “leitor amador”? Há um botão de liga/desliga?
Não sei se consigo ser uma leitora amadora, pois tenho meus autores e temas preferidos, mas não gosto de rotular livros. Talvez por amar literatura infantojuvenil, tenho a facilidade de ler de tudo um pouco. Isso não significa que não faço minhas críticas, mas como a leitura pra mim é uma forma de lazer também, então me permito sair de um livro considerado clássico e ler um texto de um autor mais recente, que não seja tão conhecido, e aproveitar da melhor maneira o que a obra está oferecendo.
4) Quais livros foram fundamentais para a sua formação? O que está lendo agora? O que indica como leitura para o momento atual?
A Bíblia é o livro fundamental na minha formação. Acrescento a essa prateleira A marca de uma lágrima, diversos livros da série Vaga-Lume, muitas histórias em quadrinhos e O Pequeno Príncipe. Meu foco de leitura atual está muito direcionado ao trabalho, então acabei de ler Arariboia – o indígena que mudou a História do Brasil e já iniciei a leitura de Rio antes do Rio – ambos de Rafael Freitas da Silva. Para o momento, sugiro a leitura de 1984, A Revolução dos Bichos, Robopocalipse, e as séries Maze Runner, Jogos Vorazes e Divergente.
5) A Literatura é, por vezes, considerada como escape da realidade e, outras, como forma de abrir nossos olhos para suas sutilezas. Como lida com essas percepções em sua própria escrita?
Por mais que se queira, a realidade nunca escapa de nós. São nossas experiências, vivências que fazem toda a diferença na hora de enxergarmos o mundo, na hora de nos expressarmos por meio das palavras. Então, quando escrevo, não consigo me desvencilhar do ontem nem do hoje, até porque essas vivências se tornam as lentes para olhar para o futuro.
6) O que te levou ao desejo de lecionar? Fale um pouco sobre essa trajetória.
Apesar de pertencer a uma família pobre, meus pais fizeram de tudo para que eu tivesse o melhor estudo possível. Sempre estudei em escola pública (com exceção da 6ª série – atual 7º ano) e nunca faltou nenhum material, principalmente livros. Já com meus 10 anos falava em ser professora, mas isso foi esquecido durante a adolescência. Terminei o ensino médio sabendo o que não queria, entretanto não havia definições sobre qual caminho profissional tomar.
Terminado o ensino médio, fiquei um ano sem estudar. Havia planejado descansar um pouco e ter tempo para pensar sobre o que fazer, e isso só pôde ser executado porque no início de 1994 meu pai faleceu e precisei lidar com o luto e ajudar um pouco a minha mãe nesse processo também. Foram tempos difíceis. No ano seguinte, iniciei minha primeira graduação: Teologia. Os anos difíceis poliram minhas ideias e minha fé. Durante o curso, me encantei pela língua grega e, ao findar esse curso, prestei vestibular para a UFF - Letras Português/Grego. O ‘ser professora’ voltou para a minha realidade e em 2003 fiz meu primeiro concurso.
7) Conte um pouco mais sobre a sua formação e seus novos projetos.
A especialização em Planejamento, Implementação e Gestão de EAD (UFF) me permitiu atuar como tutora em um curso semipresencial por alguns anos, o que foi uma experiência incrível. Por intermédio de uma colega tutora, fui convidada a participar da gravação de alguns episódios do programa de TV “Hora do Enem”, um projeto desenvolvido pelo MEC que disponibilizava análises de questões de todas as disciplinas e de diversos temas para redação.
Já são 19 anos nessa trajetória. Daqui a pouco, esse ciclo se encerrará e novos se iniciarão. Acabei de fazer um curso de Guia de Turismo e estou inscrita numa especialização sobre a História do Rio de Janeiro. O amor pela leitura não só me fez viajar pelo mundo do conhecimento, mas despertou meu interesse em visitar lugares e aprender sobre o outro também, e penso que minha sala de aula será transferida para locais sem paredes, afinal, conhecimento precisa ser compartilhado. Não que eu já não faça isso. Aprendi com meus professores ao longo da vida que visitar espaços marcam e transformam vidas. Experimentei isso com eles. Faço isso com meus alunos. Que alegria é levar uma turma a algum local que achavam não ser possível visitar e ver o brilho em seus olhos! É recompensador. Desejo continuar visitando mundos, aprendendo e compartilhando até que o tempo de minha história alcance seu ponto final.
Esta entrevista foi realizada como parte das atividades de práticas extensionistas realizadas junto aos alunos da graduação em Letras da PUC-Rio, sob a supervisão da professora Helena Martins e com a coordenação de Suzana Macedo e Lucas Viriato.
quinta-feira, 23 de maio de 2024
O ACROBATA, de Matilde Campilho
I am too late for the birth of birds
but have come just in time for the
opening of a red chocolate bar
Matilde Campilho
quarta-feira, 22 de maio de 2024
desencanto
tinta fresca
em cor vibrante
fragrância de livro novo
paixões que relampejam.
a folha verde em queda
é seca quando toca a grama.
o outono está sempre à espreita
para enferrujar
os amores do verão.
Gabriel Silveira
terça-feira, 21 de maio de 2024
Um poema de Larissa Lins
a totalidade de fatores interrelacionados desaparece
como a desintegração do antigo povo assírio
e já tem um bom tempo deste meu martírio
Larissa Lins
segunda-feira, 20 de maio de 2024
Oxigênio, de Marlene Reis
Sou o vento
transparente e suave
que beija tua face
e você não percebe.
Sou o oxigênio
que, sem mim,
Sou o calor
que sem mim,
você sente frio.
Minha cor
sou eu que defino.
Minha existência,
agora e sempre
Sou também
a ordem que pode
acabar com a anarquia
dos grandes momentos de lutas.
Pelas leis,
pelos direitos,
pela disciplina
Marlene Reis
domingo, 19 de maio de 2024
Pensagem
Árvore entre raios: arvora-se
um ruído. Tudo claro, lindo ido
A língua, mente, sente seu gosto:
tudo o que toca é verdade
O discurso da tarde e seu susto
se cola ao sentido, seu duplo aqui
onde repousa e se excita, visiva
sua clareza intensiva.
Rodrigo Garcia Lopes
sábado, 18 de maio de 2024
João Gilberto
Da última vez que nos vimos
você sentou na janela
porque o mar não era um hábito pra você
ah Salô
está fazendo
um calor danado
os mosquitos não dão trégua
a luz é infernal
ah Salô
cento e vinte dias
sem saber nada de você
ah Salô que calor
Flanklin Alves Dassie
sexta-feira, 17 de maio de 2024
Um soneto de Fabrício Corsaletti
neste Museu de Artes Decorativas
há todo um luxo antigo, aristocrata
meu sonho sempre foi ser um pirata
com mão certeira ainda que furtiva
dei um trago de Cannabis sativa
antes de entrar, o beque é uma fragata
que transforma os ruídos em sonata
e deixa a minha mente mais altiva
deuses, diabos, anjos, orixás
me deem de presente esse piano
decorado com temas pastoris
prometo fazer samba, fazer jazz
tocar melhor que um músico cubano
sem raiva, sem angústia, ser feliz
Fabrício Corsaletti
quinta-feira, 16 de maio de 2024
Serenata, de Masé Lemos
Morava à rua dos Inconfidentes, 645
bairro dos Funcionários
Ao alto ficava o corpo de bombeiros
Tinha muita raiva das sirenes
Quando passavam
gritava com elas
Masé Lemos
quarta-feira, 15 de maio de 2024
pista estreita
branca, branca, branca,
a mulher, leve como uma garça,
esgrime contra a neve.
entanto pistas estreitas,
corredores de antigos castelos,
ainda lhe aparam as asas...
até o sangue
Lasana Lukata
terça-feira, 14 de maio de 2024
Um poema de Larissa Lins
Sabe? Quase morri Todas as mulheres com que dormi, naquele dia em que acordei com seu telefonema me dizendo que não voltaria mais, todos os amigos que negligenciei, e joguei pela janela todas as suas roupas o telefonema da mamãe que não atendi, para não atear fogo na casa, nelas, em mim. e quando o vovô morreu eu não liguei. E quando finalmente eu me libertei daquilo tudo, As loucuras todas que já fiz chapado, do meu amor louco ali por você, quando a gente se viu naquele dia no parque, desprotegido, dirigindo embriagado, foi mais forte do que eu, eu precisava ser honesto em alguma coisa. você falando Daí liguei pra Mariana e eu não disse nem tchau. e ela chorou, Você falando, ela chorou de alegria eu me levantei e fui embora. porque eu propus o casamento, Você falando lá sozinho, ela chorou… e eu fui embora e não disse nem tchau. E um bebê? Seria a nossa salvação! Mas, perdão, Davi, por ter saído daquele jeito. Um bebê e tudo ia mudar! Você ainda é o único, juro, Davi, volte pra mim, Um bebezinho e tudo ia mudar… pro seu bebezinho dentro de mim agora. Voltei pra casa, era 7 da manhã. Agora, em tantas camas perdida por aí… Voltei pra casa, eu tava acabado. as coisas meio que saíram de controle, sabe? Voltei pra casa, a Mariana foi embora. Mas você é especial, você é o único, Davi, é você o pai, juro, Davi.
Mariana.
Larissa Lins
segunda-feira, 13 de maio de 2024
domingo, 12 de maio de 2024
LLANTO
nada hiere tanto
(y genera más espanto)
que ese corto corte
de la fina hoja en blanco
Lucas Viriato
sábado, 11 de maio de 2024
trecho de Orientes possíveis
Mayumi Aibe
sexta-feira, 10 de maio de 2024
Entrevista: Patricia Lavelle e o enigma do texto como ponto de partida
por Rafaela Albernaz, Danilo Brandão e Martha Marques
Esta entrevista foi realizada como parte das atividades de práticas extensionistas realizadas junto aos alunos da graduação em Letras da PUC-Rio, sob a supervisão da professora Helena Martins e com a coordenação de Suzana Macedo e Lucas Viriato.
quinta-feira, 9 de maio de 2024
Poderosa
o espelho só reflete o que quer
é o dono da imagem
alguma deformação em seu rosto
faz parte de minha engrenagem
mastigo todo o silêncio
e engulo o que me reflete
a escultura que nunca aparece
ou a madrasta da branca de neve
Rodrigo de Souza Leão
quarta-feira, 8 de maio de 2024
Antes que rompa o dia e fujam as sombras
todas as noites
com o advento das respostas que se descobrem em atraso
o sopro quente do tempo
me esquenta a nuca
junto com os feitos que não deviam ter sido
e os maus presságios
que não passaram
de covardia mitificada
todas as noites
a língua do tempo
me lambe o lóbulo da orelha
a direita
quando me deito para a janela
temendo as luzes rápidas no teto
a esquerda
quando me deito para o espelho
e não temo senão a mim
todas as noites
as mãos do tempo
correm nos meus peitos
estão secos e caídos para o lado
como um banquete deixado a apodrecer
pela falta da fome nas bocas
todas as noites o tempo enfia em minha boca a sua língua
antes que eu consiga recusar
balança a língua
atrás dos meus dentes
onde moram os choros engolidos
e as palavras perigosas
e no fundo da minha garganta
sente o ácido
do meu medo de morrer
misturado à amargura de estar viva
o tempo se esfrega
nas partes minhas
que são só minhas para esfregar
todas as noites
e a mim mantém desperta
para que não me esqueça
que todas as noites são noites a menos
todas as manhãs encontro em mim os restos do tempo
Milena Martins Moura
terça-feira, 7 de maio de 2024
Um poema de Larissa Lins
nos dias de semana
é quando nos achamos e
vagamos na cidade
o amor à tarde
sem beijos não há necessidade
na folga vespertina
depois do escritório
você é só rotina eu sou a diversão
o amor à tarde
sem beijos não há necessidade
o telefone toca toca
devolve casa convenção o berço incendiado
a tua realidade
o amor à tarde
sem beijos não há necessidade
é bonito o meu vestido?
as pernas inocentes entre
os manequins sem cabeça os teus nervos que me ardem
o amor à tarde
sem beijos não há necessidade
Larissa Lins
segunda-feira, 6 de maio de 2024
domingo, 5 de maio de 2024
em loop, a fala do soldado
vivo numa caixa preta
de 20 centímetros.
vejo o mundo por um visor,
no meio uma cruz
para mirar as coisas
prédios estradas objetos cachorros.
tudo que passa pelo quadro
vira alvo, então penso em algo
linear: você já reparou que algumas imagens
se repetem? de repente,
um cisco no olho.
“eu vivo numa caixa preta”,
disse. estamos sentados
lado a lado no trem
— em silêncio — os dois de calça verde
e camisa branca.
sei que não está tudo bem,
levanto o olhar tentando alcançar
o dele e ouço apenas a voz
de frente para o alvo.
vivo numa caixa preta, diz
e eu não sei como parar
a repetição.
Marília Garcia
sábado, 4 de maio de 2024
No país da Cobra Grande
Alarga as assas
Decola e vai
No convés de um navio
No bater do leva e traz
Saudade passa
Mas dói demais
No percurso de um rio
Cobra Grande é muito mais
Distância é banzo
Chora urucungo
Esse cantar parece manso
Mas o rebote vem com tudo
Desse mundo vasto mundo
O Brasil é o que me coube
Quero mais é navegar
Vou viajar com Raul Bopp
Lucas Viriato
sexta-feira, 3 de maio de 2024
Entrevista: Isabel Diegues — leitura, palavra e a delicada arte da edição
quinta-feira, 2 de maio de 2024
CADERNOS DE ROSA: uma lição benjaminiana sobre a arte da linguagem, de Marília Rothier Cardoso
(...) na contemplação filosófica, a idéia se libera, enquanto palavra, do âmago da realidade, reivindicando de novo seus direitos de nomeação. Em última análise, contudo, na origem dessa atitude não está Platão, e sim Adão, pai dos homens e pai da filosofia. A nomeação adamítica está tão longe de ser jogo e arbítrio, que somente nela se confirma a condição paradisíaca, que não precisava ainda lutar contra a dimensão significativa das palavras. W. Benjamin, Origem do drama barroco alemão. Meu duvidar é da realidade sensível, aparente – talvez só um escamoteio das percepções. Porém, procuro cumprir. (...) Acredito ainda em outras coisas, no boi, por exemplo, mamífero voador, não terrestre. Meu mestre foi, em certo sentido, o Tio Cândido.Era ele pequeno fazendeiro, suave trabalhador, capiau comum, aninhado em meios termos, acocorado. (...) Tinha fé – e uma mangueira.
(...) Tio Cândido olhava-a valentemente, visse Deus anu, vulto. A mangueira, e nós, circunseqüentes. Via ospeitos da Esfinge.Guimarães Rosa, Tutaméia.
O que determina o método peculiar do trabalho etnográfico de Guimarães Rosa (bem como sua contrapartida etnológica) é a busca bibliográfica paralela. As viagens pesquisa do escritor percorrem um roteiro traçado pela linguagem, que tanto se escreve nos livros – livros de percursos épicos e de viagens científicas – quanto se inscreve na memória. O arquivo do escritor compõe-se, assim, de cadernetas de campo e cadernos de notas de leitura, cada um dos quais desdobrando-se em pilhas de folhas (na maior parte datilografadas) de cópia, combinações, acréscimos e mudanças da matéria de cadernos e cadernetas. Nesses grupos de folhas datilografadas, chamados de “estudos para a obra”, registros e citações se alternam e produzem as expressões lingüísticas cunhadas pelo escritor e marcadas pela sigla m%. Dentre as cadernetas de campo, a única efetivamente conhecida (identificada pelo número 6) é aquela em que estão as observações correspondentes à última parte da viagem de maio de 1952, quando Rosa acompanhou a boiada, conduzida por Manuelzão, entre a fazenda da Sirga (onde passou alguns dias de adaptação e preparativos) e a fazenda de São Francisco, pouco adiante do Capão do Defunto, onde foi feita a reportagem de O Cruzeiro, que celebrizou a imagem do escritor a cavalo. As cadernetas da excursão de 1945 e da viagem de 1952, entremeadas com as citações e referências dos cadernos de notas, alimentaram vários conjuntos de “estudos para a obra”, reunidos sob o título de “Boiada”. Este é, certamente, o tratamento primeiro da tarefa de fabulação, que resultou nos livros de 1956 e nas coletâneas posteriores de contos curtos. É curioso observar, em contraponto, a pesquisa, empreendida por Benjamin, desde 1927, como exercício de historiografia dialético-messiânico-materialista do século XIX — atividade emblematizada no “trabalho das passagens” —, e o acervo rosiano de pesquisas, definido pela imagem da “boiada”. Entre o objeto urbano e o rural, destaca-se um traço de afinidade – o movimento, que fascina o pesquisador e orienta sua tarefa. O movimento econômico, que, em Paris, se concentra nas galerias do comércio elegante, definindo a ordem hegemônica do capitalismo, surge como atividade pecuária, na periferia. A ambigüidade do transeunte metropolitano, ora consumidor, ora flâneur, também se repete no cavaleiro sertanejo – vaqueiro controlado pelos interesses do proprietário ou jagunço resistente ao controle e à lei. É a tensão resultante do caráter incompleto ou aberto desse movimento dialético que marca a escolha e a associação (em geral, desconcertante) dos registros, desencadeando o rigor crítico dessa “constelação”.
No conjunto dos estudos da “Boiada”, ganham destaque as falas dos moradores das vilas e fazendas, especialmente aqueles que, lidando cotidianamente com os animais, sabem representar em imagem (ou “idéia”) iluminadora o nexo necessário entre o mundo concreto das coisas e o mecanismo mental da compreensão. (Mais que os vaqueiros, talvez sejam os bobos e os meio alucinados os que melhor revelam as operações do pensamento.) A importância desses produtores sertanejos do conhecimento é ressaltada pelo paralelismo entre suas falas e as citações dos clássicos e dos cientistas.
A escolha revolucionária do caminho místico para a produção do conhecimento — de um conhecimento, elaborado em contexto multicultural periférico, que se deseja alheio às hierarquias político-sociais — implica numa atitude de contemplação diante do objeto. Assim, o processo de engendramento narrativo de Guimarães Rosa envolve a multiplicação de inscrições das imagens verbais, que se repetem, do manuscrito da caderneta de campo para a primeira folha datilografada de estudo e desta para a segunda e, às vezes, para a terceira, sempre experimentando pequenas variações. É como que um ritual de traduções em constante busca de aperfeiçoamento. A contemplação do objeto concreto — com o objetivo de cumprir uma ordem, como a que foi dada ao Grivo, de demanda do “quem das coisas” — estende-se, no caso do escritor, à contemplação das formas lingüísticas em sua concretude de símbolo. Para bem seguir esse ritual contemplativo, o escritor parte da
Na caderneta 6 da viagem de 1952, lê-se: “No brejo: garças; o monjolinho, do tamanho do galo do campo, mas ‘tem muito é pernas’; tem o bico preto, comprido e o pescoço comprido, que fica pendendo e batendo, feito um monjolo. É chumbadinho de preto e branco. Anda aos casais. Faz: — Cuik, quick!...” 4 Aí se percebe um misto de descrição, explicação do nome corriqueiro e empenho em traduzir como que a auto-nomeação do pássaro. Para ajudar nessa tarefa atraente e impossível, páginas adiante, transcreve-se um glossário de termos ciganos: “capado — balinchõn / defunto — mulõn / espora — buzég”. Nas folhas de estudo, a outra etapa do rito tradutório, desdobra-se o trabalho de aproximação do verbo sagrado, através da transcrição de quadras e da tradução da fala dos bichos: “O touro (Tarzan) que chegou com as vacas e sentiu outros touros (boiadeiros) no curral, e desafiava: U – hu – han! U – hu – han — tossido, sem parar”. E, diante do desafio da traduzibilidade, quando à beira da revelação da poesia, o escritor impõe pequena marca pessoal à linguagem mágica da criação: “m%: o quirquincho ou quirquinxo de um tatu caçado (kirkincho = o tatu , Aymara).”
O bicho que tem no matoo melhor é pássaro-pretotodo vestido de lutoassim mesmo satisfeito.
Marília Rothier Cardoso