domingo, 30 de junho de 2024

cinturão, de Milena Martins Moura


tenho uma dobra vermelha na pele do rosto
como um corte

          entranha

você viu

a marca vermelha da cama no meu corpo
branco
onde dói o sol

você viu
os meus sinais em coleção
imitando a pose ereta de órion

ombro em rigel pé em betelgeuse

as partes proibidas à mostra
faz calor

e eu tenho sede

todos os tabus desnudados
         constelações

e eu ariadne corpo celeste
vindo jantar nos escombros

as pontas dos seus dedos mastigando os meus contornos

         entranha

todos os lábios
mordendo
a fraqueza da carne


Milena Martins Moura

sábado, 29 de junho de 2024

Lei do retorno


Minha mente anda tão perturbada,
Quanto meu coração,
Deixando o instinto me levar,
À loucura da sensação.

Agora,
Irei te ter no controle.
Após, fica por conta do destino.

Eu lírico,
Dia memorável,
Vontade imperdível,
Olhar sexy,
Toque leve,
Felicidade breve,
Vida fugaz,
Um dia iremos nos encontrar, novamente.


Monique Nix

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Tragicômico


o tempo passa
eu acho graça
vamos sorrir
nossa desgraça


Lucas Viriato

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Chuva

Nítida goteira
a me esvaziar
a concentração
Água, raios, trovão...
boxe no peito da noite altiva.
A luz em meu cérebro
Ilumina a certeza:
atrás da máscara da chuva
a via-láctea está viva.


Edison Veoca

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Tirando sangue da cantiga


não há quem não se zangue
ao olhar para esse mundo
vê-lo qual um bang bang
muda esse nome para imundo
parece suco de tang
mas o que do corpo escorre
é o vermelhão do sangue
que também tanto escorre
dentro da água e da mata
pois árvores e animais
também não podem ter a paz
pois o homem mata, desmata e se mata.
mundo imundo bang bang


Matheus José Mineiro

terça-feira, 25 de junho de 2024

Ponheta


poeta, amigo, que dizes
à noite na mesa em roda
qual livro que lês
qual vinho que bebes,
que belo detalhe
observais

no mínimo mini
pequeno menino que olha pra fora
do prédio com grades
que olha pro umbigo
e o canta tão belo

que ornas singelo
o detalhe irrisório
que ri tão gostoso
do verso de troça
que troca palavras com ares de graça

que entra de graça na roda da mesa
e fala tão calmo
de nada com nada.


Gabriel Silveira

segunda-feira, 24 de junho de 2024

ARQUIVOS EM CONFRONTO, Marília Rothier Cardoso


Nos meados do século XX, a teoria da literatura, empenhada em afastar-se dos fundamentos da tradição crítica, questionou o valor da intencionalidade autoral e passou a trabalhar com as noções de “texto” e “escritura”, cujo estatuto supunha a autonomia da linguagem, como lugar de produção do sentido. Foi um momento de estratégica violência afirmativa em que Roland Barthes, tendo anunciado a “morte do autor”, cuidou de definir o estatuto da textualidade. Ainda está bem presente a lembrança de suas palavras: “a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem (...) é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco e preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (BARTHES, 1988, p. 65).

Hoje, com décadas de exercício de interpretação textual, os conceitos propostos por Barthes e seus contemporâneos perderam a radicalidade. Não é o caso de recuperar- se a autoridade do escritor, mas tem-se procurado rastrear as marcas de seu corpo, inscritas no texto, como índice da inserção histórica do mesmo. Quando se atenta para essa dimensão, fica patente que os traços datados do trabalho da escritura transportam, em seu deslizamento pela página, o conjunto de saberes e valores coletivos da cultura. Assim, longe de apresentar-se neutro, o texto testemunha o conflito acirrado de forças históricas, presentes na sua construção e desdobradas nos acasos de sua divulgação.

Se, ainda nos anos sessenta, a lição de Bakhtin veio somar-se às considerações 
barthesianas, desenvolveram-se, nas décadas seguintes, de um lado, a chamada crítica genética, e, de outro, os estudos culturais. A primeira alargou os domínios da textualidade literária para abarcar as notas de leitura, os rascunhos, os manuscritos rasurados, a coleta de dados, a correspondência, os diários, enfim, tudo que restou, nas gavetas privadas do escritor, depois que sua obra tornou-se pública. O interesse por
esses arquivos levou ao destaque do processo da escritura e relativizou a importância da versão definitiva, trazendo, como conseqüência, um tipo de enfraquecimento dos cânones, pela desatualização do conceito de obra prima. Já os estudos culturais trouxeram a literatura – como as demais artes – para o amplo e complexo domínio da cultura, inserindo a tarefa interpretativa na rede interdisciplinar, que enfoca o objeto em todas as etapas de seu desenvolvimento, desde a construção, na oficina íntima do autor, até o mercado com suas regras, onde a obra se disponibiliza para a leitura e entra no circuito da recepção. Ao longo desse trajeto intrincado, consideram-se as trocas intertextuais, o intercâmbio entre as subjetividades, bem como a interferência das mais variadas atividades sociais nos movimentos artísticos.

A linha de pesquisa literária, que combina o conhecimento dos arquivos com a perspectiva cultural, tem procurado desenvolver uma vertente muito específica de crítica biográfica. Trata-se da tentativa de rastrear um trabalho de construção identitária, onde o processo de subjetivação acha-se imbricado no jogo intertextual produtor da escritura, ambos – processo e jogo – permeáveis, em diferentes graus, às forças sociais suas contemporâneas. Pretende-se, como resultado, o encaminhamento da interpretação do texto, nas várias dimensões de sua historicidade: o estágio de desenvolvimento da língua e do gosto estético, a trajetória de vida do escritor dentro de seu círculo social e a ordem da cultura, que engloba as demais, interferindo nas mesmas, à medida que vai-se deixando transformar por influência delas. Nessa linha é que se pretende considerar aspectos de dois arquivos de escritores, dos mais ricos dentre os acervos brasileiros – o de Guimarães Rosa e o de Pedro Nava. Vale registrar que, conforme a terminologia usada por Almuth Grésillon, os manuscritos de ambos classificam-se como “escritura de programa” (GRÉSILLON, 1994, p. 102). Um exame, mesmo apressado, dos arquivos de Rosa e Nava mostra que esses escritores jamais se lançavam à aventura de deixar que a mão deslizasse livre sobre o papel. Ao contrário, o enorme volume de documentos de trabalho arquivados atesta que seus escritos resultaram de laboriosa pesquisa, seguida de mais de uma etapa de organização e articulação do material, cuja versão redigida ainda sofreu numerosas rasuras e reelaborações.

As obras desses dois escritores legitimaram-se por fortunas críticas bem distintas, foram produzidas e publicadas em datas e circunstâncias diversas; no entanto, seus autores evocam traços equivalentes da educação mineira tradicional, tendo-se formado literariamente, com certeza, enquanto freqüentavam a mesma faculdade de medicina, na Belo Horizonte dos anos vinte. O conjunto de traços identitários, que singulariza seja a assinatura, seja o tecido textual de Guimarães Rosa (1908 – 1967) e de Pedro Nava (1903 – 1984) remete ao contexto histórico da modernização da sociedade brasileira, conforme o modelo ocidental capitalista, baseado na urbanização e industrialização. Como ponto de partida para esta leitura interpretativa de obra e arquivo, parece interessante observar o grau de proximidade ou distância que as notas, rascunhos, recortes e publicações guardam em relação àquele modelo.

A questão – qual o campo de pesquisas dos dois escritores? – serve de ponto de partida para o exame dos acervos. No Arquivo Guimarães Rosa, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, encontram-se cadernetas de viagem , cartas-questionários a parentes e amigos, cadernos de anotações de leitura, além de numerosos conjuntos (em cadernos ou folhas datilografadas) de “estudos para a obra”. Por seu turno, o Arquivo Pedro Nava, conservado no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação-Casa de Rui Barbosa, revela o processo de composição do texto das Memórias, através de documentos reunidos conforme três etapas: as numerosíssimas fichas de levantamento de dados, os “bonecos”, onde se esquematizam os capítulos, e os “originais” datilografados, com muitas rasuras, alguns acréscimos e, ainda, desenhos e figuras, colados à direita do texto. Nos dois casos, as demais seções do arquivo – correspondência, documentos pessoais, recortes e iconografia – têm muitos pontos de intersecção com os manuscritos diretamente responsáveis pela composição da obra. Quando se analisam os registros de pesquisa (de gabinete ou de campo), já se localiza uma diferença paradigmática entre o trabalho de Rosa e o de Nava. Este, voltado para o memorialismo, anota suas próprias lembranças e as respostas de companheiros de geração às suas perguntas. Seu fichário compõe-se, em sua maior parte, de recortes de jornais e revistas e de depoimentos da experiência individual de profissionais liberais, bem situados na hierarquia social das principais cidades brasileiras. Aquele, dedicado à restauração da narrativa épica, anota suas leituras dos relatos tradicionais clássicos e dos livros de viagens pelo Brasil, além de preencher cadernetas de campo, referentes às suas excursões pelo sertão. Seus informantes não são intelectuais mas, predominantemente, vaqueiros ou, pelo menos, fazendeiros e comerciantes, ligados ao mundo rural. Tais informantes transmitem uma experiência antes coletiva que particular.

Como ponto de partida para um comentário comparativo entre aspectos dos dois arquivos, vale lembrar as preciosas considerações de Jacques Derrida em seu esforço de reconceituação contemporânea de “arquivo”. O arquivo é o suplemento artificial da memória, a estratégia mental ou a providência prática de registro dos fatos, passíveis de se apagarem. Conforme a teoria freudiana, que fundamenta as reflexões de Derrida, a economia psíquica equilibra-se entre o “princípio do prazer” ou da preservação – a força dos arkhai – e a “pulsão destruidora”, a força do esquecimento. Daí o estatuto necessariamente fragmentário e lacunar de todo arquivo, que já supõe, como origem, a inevitável “amnésia” (DERRIDA, 2001, p. 22,23). Dedicando-se à escrita de sua vida, Nava interrompe freqüentemente o relato para tecer considerações sobre os mecanismos da memória; paralelamente, o acervo de seus documentos – organizado e doado por ele mesmo à Casa de Rui Barbosa -- pode ser considerado paradigmático da condição paradoxal do arquivo. Qualquer estudioso de Nava percebe, de imediato, a característica, ao mesmo tempo, excessiva e lacunar do acervo. O processo de composição dos seis volumes publicados das Memórias acha-se cuidadosamente documentado nas três etapas, acima referidas: fichário de notas, “boneco” e texto revisto (anterior à datilografia definitiva, encaminhada à editora). As notas são numeradas, em vermelho, de modo que é possível acompanhar sua inserção na feitura dos bonecos, que,
por sua vez, prefiguram a ordem da matéria na versão redigida. No entanto, o arquivo só guarda o registro completo dessas etapas nas seções referentes aos quatro últimos volumes. Como registra o próprio autor, grande parte do tarefa inicial de levantamento de dados e rascunho foi destruída, quando do término do trabalho de redação. Em uma das etiquetas classificadoras do material lê-se:

Fichas como as usadas na parte escrita sobre Torres Homem. Apenas o modelo pois foram inutilizadas milhares de outras fichas à medida que se escrevia, tal qual foi feito com as de Baú de ossos e Balão cativo, até que veio o conselho de Drummond: guardar tudo, jogar nada fora.(AMLB-FCRB)
 
As seções preservadas do arquivo – o conselho do poeta parece ter sido seguido à risca – apresentam-se,  como que por compensação, entulhadas de documentos. Muitas notas se repetem, cada tópico traz diversos desdobramentos, os capítulos, esquematizados compondo os bonecos, têm duas ou três versões, com pequenas diferenças e acréscimos. Mais sugestiva, contudo, é a evidência de que a escritura de Nava funcionou, predominantemente, como work in progress, impulsionada pelo desejo de englobar todas as lembranças -- as próprias e as alheias, as confirmadas e as discutíveis --, de modo que a busca não terminasse nunca e um volume pudesse, sempre, engendrar o seguinte. Quando se consultam as caixas enormes, onde estão guardados os “originais” dos volumes, e se observam, como fez Flora Süssekind, as caricaturas, mapas e recortes da “página ao lado” do texto (SÜSSEKIND, 1993, p. 253- 259), percebe-se que a etapa de pesquisa, que deveria restringir-se ao fichário, invade todas as demais, na tentativa persistente de resgatar o vivido da voragem do esquecimento. Se cada página de Nava paga tributo a Proust, é porque o brasileiro queria também explorar a possibilidade de desdobramento infinito do “acontecimento lembrado”, transformado, assim, numa "chave para tudo que veio antes e depois” (BENJAMIN, 1985, p. 37). Empenhando-se em conservar a herança da família, os presentes dos amigos, as impressões retidas na própria memória e até mesmo as aparições fantasmagóricas das noites insones, Pedro Nava tipifica, à maneira hiperbólica que lhe é peculiar, o “mal de arquivo”. O que o move é a paixão de registrar tudo, recuar às origens mais remotas -- tarefa fadada ao fracasso e, por isso mesmo, irresistivelmente sedutora. Se os leitores das Memórias deixam-se contaminar por essa febre, os estudiosos de seu arquivo são muito mais afetados por tal doença tão incômoda quanto produtiva.

Adquirido pelo IEB, em 1973, seis anos após a morte do escritor, o arquivo de 
Guimarães Rosa, embora contendo os originais das obras de juventude (inclusive os preciosos originais de Sezão que, revisto e amputado de alguns de seus contos, publicou-se com o título de Sagarana), concentra-se, tendo em  vista a documentação do processo escritural, no período de maturidade, quando o médico e diplomata se profissionaliza na carreira literária. Pelos meados dos anos quarenta, quando já havia contemplado os principais monumentos da Europa culta – e registrado, com croquis e descrições pormenorizadas, seus trajetos de turista e de visitante contumaz dos museus e galerias --, Guimarães Rosa começa a trabalhar, sistematicamente, encaminhando, em definitivo, sua obra na direção do resgate da tradição épica. Ana Luiza Martins Costa (COSTA, 2002), boa conhecedora do arquivo, enfoca paralelamente os dois rumos da pesquisa do escritor: o de leitura cuidadosa da epopéia antiga, registrada nos poemas eruditos (Ilíada, Odisséia, Divina comédia), e o de levantamento da narratologia sertaneja, tanto estudando os relatos de viajantes, quanto procedendo à busca etnográfica do saber oral dos vaqueiros de Minas, do Pantanal e da Bahia. Essas duas vertentes da preparação para os grandes livros de 1956, Corpo de baile e Grande sertão: veredas, responsáveis, também, pelos volumes de contos posteriores, acham-se representadas, no arquivo, sob a forma primeira de cadernetas de campo e de cadernos com notas de leitura. Correspondendo a uma segunda elaboração do material, encontram-se numerosos “estudos para a obra”, que consistem num exercício de passar a limpo as anotações, buscando, certamente, incorporá-las à memória pessoal e imprimindo nelas o selo estético da assinatura do autor. Esses estudos revelam um paciente manuseio reflexivo, pois estão marcados com lápis de cor, com classificação de assunto ou indicação do texto que devem compor. Alguns das cadernetas mereceram mais de uma reelaboração, como é o caso daquelas onde se registrou a viagem de 1952, quando Rosa seguiu, durante dez dias, a comitiva do vaqueiro Manuelzão, conduzindo um gado da fazenda da Sirga até a de São Francisco. Conforme a classificação do IEB, há quatro pastas (E-26, E-27, E-28, E-29), de retranscrições e comentários, sob o título “Boiada”. Trata-se de um dos elos mais importantes da gênese do Grande sertãotambém das sete novelas de Corpo de baile.

A descrição, acima, de parte dos documentos do acervo rosiano, mostra-os tão excessivos quanto os de Nava. Os dois escritores precisaram de uma montanha de papel e de inumeráveis horas do exercício físico de escrever como estratégia para a produção de seus textos. Nesse sentido, o arquivo desromantiza a criação, evidenciando uma atividade monótona e cansativa de repetição de frases (e também de desenhos, mapas e perfis, especialmente no caso de Nava), onde as interferências inventivas vão-se revelando, de detalhe em detalhe, e onde as dívidas com a memória cultural acham-se devidamente contabilizadas, nas longas listas de citações, pastiches de textos, apropriações de falas e cruzamentos de referências. O aspecto corriqueiro dos documentos composicionais, no entanto, preserva certo segredo da construção literária. Se, nos papéis de Nava, apesar de incompletos, tem-se a ilusão de acompanhar, passo a passo, os mecanismos da memória (espontânea e artificial) concretizando-se no relato escrito, não é possível rastrear a passagem entre os numerosos rascunhos de Rosa e a configuração da narrativa dada por pronta. O arquivo de Guimarães Rosa não contém nada que se aproxime dos “bonecos”. A trajetória do texto perde-se no mistério das lacunas imponderáveis, entre a profusão dos estudos e o rigor dos “originais”, revistos na versão publicada.

Em seu estudo mais recente, Pedro Nava: o risco da memória, Eneida Maria de Souza considera a produção naviana como memória de “um Brasil moderno”. Os antecedentes familiares -- reconstituídos a partir de documentos, como a contabilidade do alemão Halfeld, fundador de Juiz de Fora, onde se superpõem a história pública e a privada --, os anos de formação do autor-narrador e, nos dois últimos volumes (já narrados em terceira pessoa), o início da carreira profissional e o convívio com os companheiros de geração, recém-ingressos na política, toda a trajetória apresentada funciona como espelho onde a classe dirigente brasileira pode encarar-se, no momento decisivo em que seus intelectuais traçam os rumos para o processo de modernização. Se resenharmos o teor do conteúdo do arquivo, que respaldou a construção desse edifício literário, teremos indícios seguros das referências identitárias da geração burguesa, formada nos anos vinte, sob a égide das vanguardas. Tais referências é que explicam as escolhas do escritor em relação ao tipo de escrita escolhido e o ponto de vista adotado.

O dossiê arquivístico de Beira-mar, volume que registra o contato dos inquietos estudantes mineiros com os mentores do movimento modernista, é o espaço mais adequado para a caracterização do tipo de material selecionado e reunido pelo colecionador-autor. No fichário e no boneco desse quarto volume das Memórias, além das anotações e esquemas, dos recortes, desenhos e mapas, encontra-se outro tipo de documento, resgatado ou produzido por iniciativa do memorialista: questionários enviados por Nava a seus companheiros de geração (Drummond, Emílio Moura, Alberto Campos, entre outros) e respondidos pelos mesmos, depoimentos espontâneos de colegas (como o de Pedro Salles, contemporâneo na Faculdade de Medicina) e correspondência familiar da época de que trata o texto. Esses papéis vêm somar outras vozes à do memorialista, dando maior abrangência à visão autobiográfica da narrativa. Mas é preciso observar que as vozes conjuradas pelo escritor são sempre de iguais, isto é, de indivíduos de seu meio social, com valores e interesses equivalentes aos seus próprios, o que pluraliza as posições marcadas pelo relato, mas nunca o desloca do espaço restrito do mesmo. É claro que o memorialista não é ingênuo e, ao longo da pesquisa, busca complexificar sua perspectiva histórica, inserindo fragmentos do saber de outras classes, como os ditos populares colhidos alhures e croquis de personagens marginais, distribuídos entre suas notas. Entretanto, tal abertura do espectro social tem a função restrita de fornecer moldura ao retrato da “boa sociedade”, que se vai desenhando.

Se os depoentes e entrevistados são portadores de sobrenomes tradicionais, o cenário, onde os mesmos movimentam-se enquanto personagens e tornam-se objeto de pequenas biografias, é composto pelos quarteirões principais da cidade, com seus bares, livrarias, cinemas e até cabarés – mas freqüentados pelos filhos-família. No acervo correspondente à construção de Beira-mar, a maioria do material verbal e iconográfico concentra-se no “Bar do Ponto”, centro nervoso da capital mineira. As primeiras páginas do boneco, por exemplo, resultam da observação de postais dessa área de Belo Horizonte, postais reunidos ao longo das décadas para testemunhar as mudanças e respaldar, com a beleza das imagens dos anos vinte, a nostalgia do narrador. Pode-se perceber, assim, através da coleção de lembranças instrumentalizada pelo escritor, que a memória do Brasil moderno, que, aí, se delineia, privilegia o espaço urbano burguês e seus valores letrados e (relativamente) progressistas. Ainda que representada caricaturalmente, para denunciar a agressividade de suas relações, a tradicional família mineira toma conta da cena narrativa.

Contemporâneo de Pedro Nava no curso médico, como já assinalado acima, Guimarães Rosa teria sido um dos possíveis destinatários das consultas expedidas pelo memorialista, caso não tivesse morrido cedo, em 1967, antes, portanto, que Nava iniciasse a pesquisa para seu trabalho. No entanto, Rosa não é sequer mencionado em Beira-mar, nem tampouco consta das listas de conhecidos e amigos, quase onipresentes, nos prototextos do volume sobre a geração modernista mineira. Trata-se de um indício de que o futuro autor de Sagarana não fez vida literária em Belo Horizonte, não tendo estabelecido nenhum contato com Mário de Andrade ou qualquer dos integrantes da “caravana paulista”, que, em 1924, instigaram os “rapazes da Rua da Bahia” a integrar as hostes da vanguarda. Prova disso é que não há nenhum texto de Guimarães Rosa em A Revista – bela iniciativa de Drummond e Martins de Almeida, que canalizou a produção dos novos. E, se o próprio Drummond, Emílio Moura, João Alphonsus e Nava integraram todas as demais iniciativas revolucionárias da cultura (e, secundariamente, da política) mineira, Rosa está ausente das mesmas, tanto quanto do amplo dossiê do memorialista de sua geração.

Quando se enfoca o arquivo de Guimarães Rosa, encontra-se a contrapartida de sua ausência nas rodas do Café Estrela. Sua estréia como contista, nos anos 1929 e 1930, deu-se por via muitíssimo diversa daquela, sofisticadamente experimental, escolhida por Drummond e seu grupo. Certamente ainda um leitor convencional da literatura européia de suspense, Rosa enviava suas narrativas góticas para o concurso literário da revista popular, O Cruzeiro. Lá é que ficaram registrados seus primeiros exercícios ficcionais: “O mistério de Highmore Hall”, “Chronos kai anagke” e “Caçadores de camurças”. Se observarmos, também, os contos descartados de Sezão (estes já dos meados da década de trinta), veremos que, aí – e praticamente só aí – rastreiam-se referências autobiográficas aos tempos de estudante. Mas estas denotam apenas interesse médico e curiosidade científica.

A via de acesso à literatura, no caso de Rosa, -- tal como se apresenta enquanto lacuna no arquivo de Nava e como registro em seu próprio acervo – fez-se por razões e acasos, que o afastaram da trajetória majoritária dos de sua geração. A temática do volume Sezão e, mais tarde, da versão publicada, Sagarana, ao lado dos depoimentos recentes de amigos da época, indica a tradição oral coletiva como a poderosa memória de infância, que se foi combinando, na juventude e na maturidade, primeiro com o atrativo dos gêneros de massa, depois com a sedução das estórias sertanejas. Ao contrário de seus contemporâneos, Guimarães Rosa não se deixou impressionar pelo ritmo moderno da recém-construída capital de Minas. As referências estéticas estáveis, oferecidas pelas linhagens épicas clássica e local, marcaram sua produção literária -- do primeiro livro publicado em 1946 a Tutaméia – por uma rigorosa distância crítica diante das vanguardas poéticas e do progressismo sócio-econômico. Tendo incorporado, gradativamente, as conquistas da linguagem experimental, encaminhou suas pesquisas para o resgate de valores capazes de preservar os velhos saberes interioranos e, assim, interferir saudavelmente na configuração da cultura brasileira, nos meados do século XX.

O paralelo entre os arquivos de Nava e de Rosa mostra os dois procedimentos diferentes presidindo a escolha do assunto e da orientação estético-política da obra. Na construção memorialística, onde predomina a perspectiva individual, vimos que o levantamento dos dados segue o modelo (auto)biográfico e que os entrevistados pertencem ao mesmo espaço do autor-entrevistador, pois devem corroborar uma visão burguesa e moderna da história cultural enfocada. De outro lado, para aquele que se deseja o guardião do relato épico, é a tradição coletiva que conta, seja resgatada dos antigos, seja colhida da sabedoria oral do povo. Por isso mesmo, as entrevistas, a correspondência familiar, o registro da própria vivência do memorialista são substituídos pelas cadernetas de campo, onde o autor faz-se etnógrafo para recolher as falas de vaqueiros, pequenos lavradores, rezadeiras, velhos e bobos, agregados das fazendas. O acervo de Guimarães Rosa — cujo documento emblemático pode ser considerado o caderno de quadrinhas de Zito, o cozinheiro da boiada — compõe-se, prioritariamente, de inscrições do saber do outro, isto é, de quem habita as margens da cultura hegemônica. É interessante observar que a própria correspondência de parentes e amigos, de que o escritor se apropria no processamento de sua literatura, define a constituição peculiar do arquivo de Rosa. As cartas, anotadas por ele e incluídas em seus “estudos para a obra”, são dirigidas à recolha da cultura popular. Destaca-se, nesse item, a já famosa carta em que seu amigo Pedro Barbosa, de Paraopeba, responde ao questionário, proposto pelo escritor, com o objetivo de conhecer melhor um bobo, acolhido como tratador de porcos na fazenda. Como se sabe, as respostas do fazendeiro Barbosa transformaram-se no conto “Mechéu”, incluído em Tutaméia. O principal interlocutor epistolar de Guimarães Rosa foi, entretanto, seu pai, Florduardo Pinto Rosa, constantemente solicitado pelo filho, não a dar notícias ou narrar episódios da vida doméstica, mas a deixar registrados os casos do sertão, protagonizados em caçadas ou ouvidos de vaqueiros, num balcão de armazém próximo à estação de embarque das boiadas.

Os prototextos da obra de Guimarães Rosa, incluindo a etapa de pesquisa e as etapas de elaboração do material, caracterizam-se pela presença da sigla m%, precedendo palavras, frases ou expressões. Conforme os estudiosos do arquivo, trata-se do índice de interferência do autor no objeto de sua apropriação. m% - flor-de-todos / flor-de-todo-o mundo [V. Saint Hilaire: “flor de toda gente, dont les corolles blanches embaumaient l’air de leur doux parfum (...) . No descer dos carrascos. Arbustos de 6 a 10 pés, muito juntos, seus ramos se confundindo). Chama-se a isso: carrasquinho. m% - terras da paróquia “traíras, lambaris, piamparas, curimatãs, timburés” m% - Piampara (lugar) m% - onde o belo rio corre entre a caatinga morta (AMLB-FCRB) Á medida que, através do trabalho de cópia, o escritor erudito incorporava, a seu acervo, a tradição popular, a repetição da fala do outro ia ganhando, gradativamente, a marca própria (e experimental) do herdeiro – marca que, no entanto, não limita o texto aos contornos do indivíduo, mas literatiza o discurso através da combinação tensa de diferentes linhagens populares. Ao lado das cadernetas do sertão estão as da Europa; os “cadernos de estudo” registram informes geográficos, históricos, botânicos e zoológicos; às listas de metáforas homéricas somam-se as listas de toponímicos tupis. As coleções de dados componentes do acervo de Rosa fazem deste uma “biblioteca de Babel”. Com a especificidade, hoje, destacável, de tratar-se de uma típica Babel pós-colonial, onde confrontam-se, em equilíbrio tenso, o cânone do ocidente e os saberes “subalternos”.

A dimensão cultural, que abre perspectivas produtivas para os estudos literários, ao fazer ressurgir o corpo do autor, através do exame crítico das impressões deixadas em seus manuscritos, percebe que a escritura – em diferença com o que pensava Barthes – não traz o apagamento da identidade. Ao contrário, quando interpretado em contraponto com seus rascunhos, todo texto permite que se recupere seu processo complexo de construção identitária. Não se trata, é evidente, do estabelecimento de uma identidade plena e fechada, que limite o sentido das palavras à circunstância de vida de seu autor. Trata se, sim, de desentranhar do trabalho escritural – desenhado entre as lacunas e riquezas do arquivo – um perfil composto de valores culturais, que responde pelos sentidos a serem produzidos e pela força de interferência a ser exercida sobre a sociedade, ao longo da carreira de divulgação do texto.

domingo, 23 de junho de 2024

Home sweet home II


 “ao que mal dizeis
ou bem dizeis:
Ervália”

depois de enumerar
os endereços
onde estive, bairros,
casas, fazendas e
cidades mineiras,
prédios baixos,
sobrados, áreas
de estacionar, córner
de boxe, mercados,
terreiros, os botecos,
que eu frequentava
estando bêbado, que
já nem me lembrava
mais – viajei pouco
sem sair do lugar de
onde nasci, números
de telefone fixo, mapas
cartográficos, chassi de
veículos, basculantes,
chaveiros, tramelas,
guarda roupas, quartos
mofados, bicamas, colchões
velhos. vivi a existência
assim: entre adobes
pintados com tintas
feitas a partir do estrume
de bois de carro, esverde-
ados e tantos equívocos.
nunca estive em nenhum
destes lugares e a minha
casa nunca existia e era
um hospício abandonado.


Milton Rezende

sábado, 22 de junho de 2024

Fogo

comtemplo
a lua

e o templo
todo

se perpetua
no tempo

flutuante
em que flutua

a mente
arfa

ardentemente

Rodrigo de Souza Leão

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Entrevista: Lu Menezes — paixões, leituras e escritas

                                                     por Anny Games, Gabriel Harle, Lucas Viriato e Marcella Mahara


Lu Menezes nasceu em São Luís (MA), em 1948, e cresceu no Rio de Janeiro, onde vive atualmente. Morou em Brasília, onde graduou-se na UnB em sociologia. No Rio, doutorou-se pela UERJ em Literatura Comparada. Publicou os livros de poesia O amor é tão esguio (ed. independente, 1979/80); — Abre-te, rosebud! (Sette Letras, 1996); Onde o céu descasca (7Letras, 2011); Gabinete de curiosidades (com Augusto Massi, Luna Parque, 2016) e Querida holandesa de Vermeer (Luna Parque, 2020), além do ensaístico Francisco Alvim por Lu Menezes (col. Ciranda da Poesia, Eduerj, 2013). Seu livro mais recente é Labor de sondar (1977-2022): poesia reunida (Círculo de poemas, 2022).


1) Como a leitura e a Literatura entraram em sua vida e como você se relaciona com elas hoje?  

Entrou via Literatura infantil e contos de fadas, ao lado de revistinhas e o que estivesse ao alcance desta primeira e infindável paixão: "leitura" em geral. Soube que aos seis anos, família reunida em torno da grande mesa na varanda do sítio de uma tia, chega o caseiro com um bilhete para ela; levanto e sussurro em seu ouvido "Me deixe ler este bilhete, por favor!". Hoje, suplico ao Tempo que me deixe tempo para ler. Quanto ao que já escrevi, não ter rede social além do WhatsApp talvez contribua para eu ser, acho, bem pouco lida. Em compensação, algumas poucas pessoas me leem muito bem! Minha poesia  em 2022 reunida pelo Círculo de Poemas e publicada pela Fósforo em Labor de sondar, vem reforçando isso.


2) Dom, inspiração, trabalho, achado: nasce-se artista ou torna-se artista?

Não sei, talvez varie. Ironicamente, o grande Rimbaud, caso clássico de poeta nascido "pronto", deu as costas a ser "poeta" — título tão honorífico no meio cultural quanto irrelevante fora dele.


3) Sendo uma filósofa e uma artista da palavra, o seu olhar está sempre afiado, ou você consegue ser uma “leitora amadora”? Há um botão de liga/desliga? 

Botão de liga-desliga não tenho nem na livre-escolha nem no ter-que-ler. Estando quase sempre sujeitos à inconstância do inconsciente, podemos — sem prever — nos decepcionar, entediar ou encantar.


4) Em todo verdadeiro artista, a arte e a vida são uma coisa só. O que você acha dessa afirmação? Há separação? 

Artistas não são "verdadeiros" ou "falsos....Talvez, verdadeiramente bons ou ruins; depende do que você, eu, gregos e troianos achem. E, na relação arte-vida, a separação ou fusão de ambas deriva da arte e da vida de cada um. Absoluta relatividade certamente aí reina.


5) O que você considera ter sido fundamental para a sua formação? O que está lendo agora? O que indica como leitura para o momento atual? 

Fundamentais: a leitura aos 13 anos de Minha vida de menina, de Helena Morley — pela simplicidade e precisão; e, mais tarde um pouco, Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll — pelo uso da linguagem também enquanto superfície, valor da camada significante. Atualmente, releio a poesia de Borges, tão incomparavelmente entranhada no que a história humana possui de mais atemporal! Magnífico antídoto para a terrível turbulência atual no Oriente Médio. E, a propósito, em chave "jornalística", os sempre excelentes artigos dominicais de Dorrit Harazim e Bernardo Mello Franco no Globo.


6) A Literatura é, por vezes, considerada como escape da realidade e, em outras, como forma de abrir nossos olhos para suas sutilezas. Como lida com essas percepções em sua escrita criativa? 

A boa literatura não é "escape" no sentido de alienação da realidade: saímos do círculo do real imediato rumo ao encontro, via imaginação & linguagem, de outras possíveis faces suas reveladas. Quanto a isso, prefiro não tentar avaliar minha própria escrita; é tarefa pertinente à crítica literária.


7) Todos já fizeram poemas algum dia, em geral na juventude. Você escreve poesia há bastante tempo. O que te faz permanecer poeta?

Não sei se permaneço "poeta"... porque nunca ambicionei "ser poeta" — mas fazer bons poemas, com o mesmo direito ao prazer de criar que qualquer outro artista tem, mesmo sendo "poesia" uma arte "não-rentável".

 

8) Você nasceu no Maranhão e veio para o Rio de Janeiro ainda jovem. Poderia nos contar um pouco sobre as lembranças que guarda da infância e do seu estado natal?

As raízes são maranhenses, mas vim criancinha para o Rio. Não tenho, por isso, lembranças narráveis de São Luís, e esta entrevista não poderia ser sobre "minha infância no Leblon de outrora". Contudo, já que o seu motor foi o fato de eu "escrever", conto que meu bisavô paterno, Jefferson Nunes, "coronel todo poderoso e chefe político", como o descreve Sebastião Nery em seu Folclore político — que nele inclui três deliciosas historietas dele, era bastante espirituoso nos embates com adversários. E meu avô materno, além de juiz de direito, hábil sonetista. Algum lastro verbal "de raiz", portanto.


9) Você diria que essas lembranças e a experiência de deslocamento do Maranhão para o Rio, levando em consideração a passagem por Brasília, repercutem de alguma forma em sua obra?

Brasília foi muitíssimo mais que uma "passagem" em minha vida. Dos 13 aos 23 anos, foi um lugar maravilhosamente singular onde tive uma adolescência singularmente boa. Na UnB, depois de ingressar em Letras, acabei graduando-me em Ciências Sociais, com ênfase em Sociologia. De algum modo,  infância carioca e adolescência brasiliense induziram-me a escrever tendendo a equilibrar "figuração" — à sombra do Rio —  e "abstração" — à luz de Brasília.


10) A atividade de pesquisadora repercute no seu trabalho como poeta? E vice-versa?

"Pesquisa" é algo com amplíssimo espectro...Estudar já é pesquisar, e a pesquisa que mais me envolveu até hoje foi meu percurso estudantil (culminando em doutorado na UERJ).Ser estudante foi o que mais adorei ser na vida, além de mãe. E, sim: claro que estudar repercutiu na escrita; tudo pode repercutir na poesia que faço.


11) Quais as qualidades de um bom leitor?

Gostar de ler e ler com atenção são certamente indispensáveis a um "bom leitor" ideal. Também às vezes "discutir" com o que é lido. Por exemplo, com Borges quando diz no belíssimo "Elogio da sombra" que "La vejez (...)/ puede ser el tiempo de nuestra dicha./ El animal ha muerto o casi ha muerto./ Quedan el hombre y su alma."


Esta entrevista foi realizada como um desdobramento das atividades de práticas extensionistas realizadas junto aos alunos da graduação em Letras da PUC-Rio, sob a supervisão da professora Helena Martins e com a coordenação de Suzana Macedo e Lucas Viriato.


quinta-feira, 20 de junho de 2024

Menino chorou

Menino chorou
chora menino

menino chorou
chora menino

o maculalê
o rabo de arraia
a ginga do corpo
Tomara que caia
Na gandaia
Tomara que caia
Na gandaia
são seres humanos
vivendo a madorna
Em busca de proteção
ahaha ôô


Kelton Favela Chique

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Uma Écfrase de Thais Vicente

Composição Surrealista, 1929
Ismael Nery





















Cabeça e braço e mão
E tripas e coração.
Jogados e amontoados no chão.
Um verdadeiro desmonte.
Uma imagem realmente impactante.

Cuidado, meu caro!
Observando a composição surrealista,
se não tiver estômago,
Você pode sofrer um grande desconcerto.
Mas, se não for o caso,
Sugiro que aproveite sem medo!


Thais Vicente

terça-feira, 18 de junho de 2024

έρημος, de Milena Martins Moura


acabei de ser minha própria caravana de bichos pálidos passando sede
           acabei de ser a sede
o sino da igreja às três da tarde quando é quente
e uma brisa pouca e velha
arrasta o cheiro dos soluços
e entalha feições ao pé da boca
           para marcar as horas
acabei de meter os pés no deserto tardio
que se deita ao sol
onde vêm os pássaros procurar em vão o de beber
porque têm pés feitos para o fogo
e eu que lhes sou grande e tenho mãos com poder de morte
acabei de ser minha própria caravana de bichos pálidos passando sede
com bocas abertas para o céu
minha própria matilha de bustos de areia
            se debatendo pelo formato dos olhos
            pelo nariz de ossatura protuberante
            os lábios o de baixo maior herdado do pai
            rosto desenhado com ângulos
            orelhas desiguais
tudo isso que é meu e precisa ser mantido longe da chuva
para que não se desfaça
e de mim sobre apenas um deserto
que não sabe que tem sede


Milena Martins Moura

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Ódio II

 “que acreditava que eu seria grande.
raios partam a vida e quem lá ande!...”
Álvaro de Campos

Tédio de tudo
de ti, de mim,
da escassez do
barro
das lâmpadas
de led
da poeira
e do asfalto
dos rádios
ligados em
horário político
obrigatório
da Hora do Brasil
do Repórter Esso
do gesso que nos
une, dos
óculos, da
miopia
da noite
insone
dos bêbados
deitados
da insensatez
dos corpos
na manhã
que surge
por entre
as frestas
da morte
da dor
enorme
(“tédio com
T bem grande
pra você”)
dos editores
capitalistas
(que raiva
dos poetas
perfi-
lados
mendigando
publicidade)
das sombras
das futuras
gerações
da escada
do silêncio
e outras
tantas
ausências.


Milton Rezende

domingo, 16 de junho de 2024

pezinho pornográfico


esse pezinho pornográfico
exala o cheiro chulo
de tanto pisar em rugosos bagos

esse pezinho pornográfico
espesso de baixo calão
de tanto lamber sola de um pau

esse pezinho pornográfico
firma um calcanhar grosseiro
a arrombar em pegadas o cu

esse pezinho pornográfico
de dedadas tão obscenas
faz o meia nove virar 3/4

esse pezinho pornográfico
de calço tão indecoroso
faz fundura até com uma sapata

esse pezinho pornográfico
de formato tão vulgar 
só adentra buracos incomuns

esse pezinho pornográfico
de salto alto calça baixaria
não mede o quanto de grossura engole


Vinni Corrêa

sábado, 15 de junho de 2024

Um corvo no canavial


A lavoura era o inferno no mundo, os suplícios das almas condenadas debaixo do sol se repetiam e a cada suplício um novo flagelo, a vara já melada de sangue, incansável apesar de vergada. Tentar fugir era muito perigoso. Uma vez seu Expedito se perdeu pela noite no matagal e foi encontrado pelos cachorros que o senhor Paulo criava ali. Quando voltou correndo com medo de ser devorado pelos bichos, o senhor Paulo mandou os filhos dele atrás do seu Expedito e os moleques enfiaram a porrada nele. Vieram rindo os três, arrastando o corpo esquálido do velho; o pai deu um beijo na testa de cada um e disse que amanhã ia dar um jeito nesse nego imbecil e que os filhos já estavam virando homens, que podia deixar tudo que Deus deu nas mãos deles. No dia seguinte, assim que o galo cantou, o senhor Paulo mandou o capitão Lopes ir até aquela senzala de merda e acordar os crioulos porque já era hora de trabalhar e esses fodidos tão dormindo ainda. — Vocês vão trabalhar pra mim e pra minha família até morrer. Quem tentar fugir vai receber castigo igual a esse merda desse preto que ficou perturbando os cachorros ontem.

Seu Expedito chegou em estado de degradação, só com um pano ensanguentado cobrindo a intimidade dele — estava em público, tivesse algum pudor —, trazido pelos filhos do senhor Paulo. O olhar de seu Expedito era um olhar de afronta resignada; o pescoço pendia, mas ele ainda se esforçava em olhar para cima. Via aquele céu escuro, certamente choveria mais tarde. Quando chovia na lavoura era um pouco de um alívio, cada gota era como um beijo nos nossos vergões — não curavam nada, duravam pouco.

O senhor Paulo mandou o filho mais velho ir ao arsenal buscar um sabre que tinha pertencido a um parente Dragão da Independência. O garoto devia ter uns dezessete anos, era um moleque feio, tinha os dentes tortos do pai, andava trôpego e corcunda. Sempre contou com as armas paternas, e agora ele mesmo empunhava um sabre, tinha poder, brilhava algo de seu próprio, talvez tenha até pensado em parricídio naquele momento, apenas por um instinto selvagem, pelo desejo de ter tudo aquilo. Muito bem, disse o pai, me dê esse sabre aqui. Nossos antepassados estariam orgulhosos de você, sempre leal ao seu pai e à sua pátria. Hoje você vai virar homem mesmo, de uma vez por todas. Com esse sabre aqui você vai capar esse preto velho e depois vai escolher uma neguinha daquelas ali pra foder. Está na hora de você aprender essas coisas, é com punho de ferro que a gente tem que tratar essa gente.
 
Seu Expedito caiu sobre os joelhos, de seus olhos não escorreu uma lágrima, a boca escancarada revelava um homem humilhado desde o seu nascimento, um homem que nunca pôde e nunca poderá ter uma segunda chance, um homem que nasceu em um mundo que o odiava e tentou, no crepúsculo de sua vida, dele escapar. Ele olhou para baixo, viu seu sangue jorrando na lama; olhou para as mãos ensanguentadas do garoto, que agora tinham suas bolas. A chuva caiu, foi disfarçando o sangue na lama, escorreu pela pele de seu Expedito volteando seu esqueleto sobressalente, foi se tornando um peso, e seu Expedito desabou com a cara na lama, seu pranto cessou, morreu.

Os outros filhos viram a cena chocados, mas também não fizeram muito da morte que se apresentava tão cruamente. Senhor Paulo abraçou o garoto assassino, os cachorros deram conta de trucidar o resto daquele corpo, os testículos eram um aperitivo. O garoto, com o sangue escorrido pela chuva nas mãos, agarrou o braço de Dina e arrastou-a para a casa grande. Dina berrava, se retorcia, olhava para trás, mas seus apelos eram em vão.

Eu tentava desviar o olhar, tinha acabado de acordar, era demais para um só corpo de gente, e eu ainda não era seu Expedito, eu não era Dina. O capitão Lopes levantava a minha cabeça e de qualquer um que
tentasse evitar a cena, era preciso ver, era preciso sentir o castigo. Seu Expedito podia ser qualquer um de nós, seu Expedito era só um preto, e era melhor um preto morto, desfazer-se da propriedade, à humilhação de um preto fugido. Uma náusea tomava conta de nossos corpos, algo que quer flutuar para desaparecer mas tem raízes lançadas no solo, fincadas na carne da terra. Seu Expedito se foi como viera, sem alterar a face do mundo com sua dor e suas efêmeras alegrias, era só um corpo
destroçado no chão, sem brilho.

Passaram-se os dias e a chuva lavou aqueles restos de homem, o cheiro acre do corpo em putrefação foi sumindo no vento, flores até teimaram em emergir em meio a tanta brutalidade. A lavoura voltou aos poucos a ser o inferno de sempre, os flagelos voltaram a ser cada vez mais insustentáveis, mas os suplícios foram embora. Dina era raptada ao bel-prazer do filho do senhor Paulo, e voltava dos cômodos escusos da casa grande coxeando, cheia de hematomas, com as costas arqueadas, completamente desfigurada, com as marcas da violação nos olhos perdidos. A paz do senhor Paulo e a prosperidade tão pedida em suas orações diárias ao pé da cama e na capela enfim lhe haviam sido
concedidas.

Quantos Expeditos e Dinas tiveram que existir para que chegássemos aonde estávamos, e quantas vezes essas mesmas flores emergiram violentamente da terra maculada, sem pedir licença a nós? Em uma noite insone eu ouvi um incessante gralhar vindo do canavial. Fui em direção ao que parecia ser o centro daquele ruído, um transe insensato tomou conta de mim, cólera, uma vertigem. Havia apenas escuro e o cruzeiro acima de nós, e eu me aproximava do que parecia ser uma besta voraz, aquele gralhar desgraçado prenunciava o fim, mas o que temer? Em frente, dizia algo dentro de mim, sem juízo e sem medo.

Estava ali, tão fora de lugar, um corvo. Um corvo apoiava-se no topo da mais viçosa cana, gralhava incessantemente, o ar diabólico, ardorosamente. Não tinha medo dos cães, aquele corvo? Era louco? Era um corvo. Estendi minha mão, queria tocá-lo, sentir sua penugem. Das profundezas de que terra saiu aquele monstro esfíngico, enigmático? Seus olhos encerravam o mundo. Encará-los era destrutivo. Seus olhos fundos não desistiam de mim, arrombavam minhas retinas, mas eu resistia. Como um espelho turvo que nos revela do avesso, o corvo refundava o mundo insuportavelmente.

Ele abriu suas asas, apresentou sua envergadura; era um belo ser, a penugem negra se confundia com o breu noturno, da cor do silêncio. E então, tão só quanto veio, o corvo se foi, voou para longe; eu corri, corri como pude em seu rastro, a despeito do escuro, a despeito do vento, a despeito dos cães e a despeito da cana, corri sem olhar para trás, entorpecido, e a aurora se rompeu. O sol emergiu implacável e vermelho. Ardeu algo aceso dentro de mim, a essa hora o galo cantaria, mas não cantou. Adeus, lavoura.


Pedro Rangel Soares

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Uma Écfrase de Victor Augusto




Glorioso pintor Di,
O que dizer do que me dizes?
Te conheci por Glauber Rocha
Por Marília, Lucas, também Ives.
Ouço a poesia que inspiras,
Vejo o Brasil que tu pintaste.
No teu enterro, diz sua família,
Teu amigo foi um traste.
Mas me causou agitação
Ver sua obra ser narrada,
Me causou inquietação
Ouvir tais versos de tua estrada
Das mulheres de Paris
Da tequila mexicana,
Sabendo que a mais bonita
Mais parece uma baiana.
Sou teu amigo de Brasil
E malandro não me engana.
Soube dos atos de vandalismo?
Os vândalos pegaram cana
Depois do antipatriotismo,
Depois de rasgarem o teu quadro.
Hoje, são eles, caro Di,
Que veem o sol nascer quadrado.
Há na presidência um brasileiro
Parece saído de suas pinturas.
Acredite, Di Cavalcanti,
Houve amor, mas muita luta,
O povo não entendeu
O valor dos tons pintados,
Talvez não soube apreciar
O valor do teu legado.
Mas respiro o aroma colorido
Da arte tua, dos teus amigos,
Agradeço por apreciar
E ter na memória eles comigo,
Ser fruto da tua semente
É nascer na atualidade.
Os infelizes, reacionários
Cairão antes cedo
Do que tarde.


Victor Augusto

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Comentário sobre uma écfrase da obra "O impossível", de Maria Martins


No livro publicado pelo MAM de São Paulo em 2013 em vista da exposição Maria Martinsmetamorfoses constam dois ensaios de Verônica Stigger e Raul Antelo sobre as obras da artista. Embora os autores abordem uma gama de obras distintas, ambas reflexões giram em torno do título da exposição: metamorfose. Ao falar de escultura, a ideia de mudar de forma tem quase a força de um pleonasmo visto que, em última instância, escultores são os artistas que se debruçam sobre a matéria bruta, atuam sobre ela e fazem-na linguagem poética. O que me foi interessante nos textos em questão e motivou este trabalho e écfrase são as relações exteriores à obra de Maria Martins que Stigger e Antelo convocam em seus ensaios.

Quando Stigger reflete sobre o conjunto de esculturas amazônicas, lembra que Euclides da Cunha, padrinho de Maria Martins, descreveu a Amazônia como “a terra que ainda está crescendo”, em que “sua fisionomia altera-se diante do espectador imóvel”. Diz Stigger que “Martins estava em sintonia com todo um pensamento brasileiro moderno (não só modernista) da forma como formação incessante
(grifo meu). A constância no movimento e fluidez atribuídos à misteriosa floresta amazônica por alguns intelectuais foi mais um fator que contribuiu para que os modernistas daquela época reconsiderassem seus trabalhos com a forma clássica. Em Cobra grande (1943), Uirapuru (1944), Iacy (1943), Boto (1942) e Yemanjá (1943), Maria Martins reúne figuras chaves da cultura dos povos amazônicos e constroi esculturas onde tais figuras são embaladas por cipós (ou galhos, ou raízes), envolvendo-os como parte de um movimento natural. Nesse sentido de forma como formação incessante, é impossível não pensar em Macunaíma, de Mário de Andrade (1928), que de fato se transforma fisicamente ao longo de toda a história; e também no Cobra norato, de Raul Bopp (1931), que narra, em trinta e três poemas de verso livre, as aventuras da figura mitológica homônima pelas terras amazônicas. Este último, numa descrição extremamente metafórica, sinestésica e divertida, reaviva os elementos da paisagem (plantas, riachos e animais) através de sua linguagem. O movimento modernista brasileiro, trabalhando por um ideal nacionalista, aproxima os elementos polarizados natureza e cultura ao invocar essas novas formas, infringindo sobre um pensamento ocidental, colonial e logocêntrico.

Já no segundo texto, para Raul Antelo, subvertendo, quem sabe, a ideia de “espectador imóvel” de Euclides da Cunha, a metamorfose acontece de dentro pra fora. Antelo interpreta a obra O impossível, de Maria Martins (déc. 1940), ligando-a às interpretações de Bataille sobre o desejo e a poesia, em que reflete sobre a procura do artista pela representação poética da experiência única. Diz Antelo, ao abrir seu texto: “cabe pensar que essa escultura funciona, para a artista, como uma indagação sobre a finitude, ou se quisermos, como um modo de conceber a experiência após a finitude, que é um dado central do moderno”. E sobre a poesia, parafraseando Bataille, diz que “querendo a identidade das coisas refletidas e da própria consciência que as refletiu, quer o impossível.”. Portanto, a cada obra que se finaliza, nasce novo desejo de fazer-se outra, e assim sucessivamente. É isto que há de fluido e metamórfico no próprio artista, e aqui se encaixa bem uma frase do texto de Verônica Stigger que, ao falar de Macunaíma, nota que “não é a terra que se acha em permanente elaboração, mas o próprio homem”. O artista tenta dar corpo à experiência exterior e à consciência interior a si, mas a linguagem poética de uma obra nunca dá conta desse movimento por completo, nunca o esgota. Lembro-me da entrevista de Maria Martins conduzida por Clarice Lispector, citada no texto de Stigger e que pude ler na íntegra, em que aparece esta frase de Maria: “[a] melhor lembrança é quando começo uma escultura. No meio fico um pouco desanimada, no fim nunca é o que eu queria, e fico com esperança na próxima.”. Assim vai se desenhando a ideia da poesia sempre referente ao desejo impossível de apreensão total de um objeto, exterior ou interior ao artista, mas também a insistência e retorno a tal procedimento. Antelo chega a O impossível, portanto, por este ângulo: a retratação do movimento do que é inalcançável, do desejo do desejo, que pode falar tanto do desejo erótico quanto do poético (e tem quem diga que são iguais).

Para finalizar este trabalho, gostaria de fazer alguns comentários sobre a écfrase. Em primeiro lugar vale ressaltar a questão formal. Depois de tantos pensamentos de Bataille sobre a poesia evocados por Antelo, me arrisquei a fazer um poema e dialogar com as reflexões as quais estava tendo contato. Para sua construção, não quis me ater a nenhum contrato métrico, justamente pela liberdade e espontaneidade concedidas pelo verso livre, já que estaria fazendo um poema a partir de sensibilidades ativadas por outra obra. O único detalhe é a formatação dos versos: quis alternar as margens as quais estão alinhados para produzir um efeito similar aos dentes/garras e fendas da obra de Martins. Além disso, tentei descrever e ao mesmo tempo refletir sobre o que me pareciam as figuras, a estranheza e fascínio provocados, tal como um monstro, tal como o erótico. Quis também falar sobre essa mobilidade, infinitude, fluidez impossível de capturar. Para isso, usei a palavra “gerúndio”, imaginando que seria uma boa imagem para caracterizar algo ainda em curso, já que estamos no âmbito da linguagem, dando a ideia de que a natureza do desejo é desejar, e portanto não existe objeto apreensível, mas sempre uma vontade “de morder”.


Paula Reis Vianna

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Écfrase da obra O impossível, de Maria Martins


 












primeiro é pelo barro, terracota,

e depois o mármore.

depois se afeiçoa à cera perdida,

que é o “infinito porque não tem limites”.


com a cera molda-se mais livremente

mas uma vez que é revestida com o gesso

e o gesso, tornado negativo,

preenchido de bronze, é levado ao forno,

o calor do forno desfaz tudo:

cera, gesso e molde.

recriar O impossível por volta de três vezes

— todas elas diferentes;
todas elas parecidas—

custou cerca de dois anos.

tal tempo parece um disparate

(ou mesmo impossível)

para alguém que está moldando algo como aquilo.

na escultura, duas figuras estão sentadas cara

a cara, e de suas cabeças

saem dentes, afiadas garras

e se olharmos assim, parecem

pentes de cabelo

se os pentes dessem-nos

um pouco de medo.

O impossível se estica

e possivelmente alcança

a representação do desejo de desejar.

o observador é impelido a notar a selvageria,

monstruosidade e invasão

alongadas numa textura

lisa e erótica,

límpida e antropofágica.

as figuras estão como dois amantes

prestes a se beijar

se beijar fosse um ato afiado, corrosivo,

que deixasse lascas

e tirasse nacos.

um ato reservado

unicamente ao nosso aparelho dental.

um ato

que acontece no gerúndio.

o desejo, portanto, está aí:

corrosivo e dental, salivando.

sem conter nada, mas sempre querendo

morder.



Paula Reis Vianna

terça-feira, 11 de junho de 2024

Tintório ou Tintorial


Auto-retrato - Toureiro, 1922
Ismael Nery






















Olhos arqueados, 
como se mirassem flechas 
a quem faz contato.

Olhos zangados,
Como se estivessem em chamas,
As negras pupilas. 


Num auto retrato,
Seu olhar contrariado
Parece fazer um breve relato
De um momento descontente.

Nos finos traços em óleo sobre a tela,
A expressão de um sentimento Tintorial
é transmitida como um sentimento próprio,
de fato.

Aparentemente,
além do poeta,
o pintor também é um fingidor,
descarado e indecente,
capaz de fingir que é dor,
a dor que deveras sente.

Resta uma dúvida, afinal.
É, essa dor,  um sentimento
Tintório ou tintorial?


Thais Vicente

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Um texto de Eduardo Moraes


Sempre gostei de Matemática. Matemágica – diriam os mais gaiatos. Os números e as infinidades que giram em torno deles sempre me fascinaram. As contas de cabeça foram diminuindo ao ver que eu tendia para as Humanas, mas faço uso da máquina de calcular sem vergonha ou pudor, brinco com os números incansavelmente.

Viramos amigos.

E a harmonia mais gostosa dos números é a combinação deles com o tempo. Adoro brincar com o relógio e sua mania infatigável de contar as horas, os minutos e os segundos.

180 segundos. Tempo médio entre as estações da Linha 1 do metrô carioca. Fiz essa conta nas minhas incontáveis viagens de Copacabana à agitada Central do Brasil. A espera pelos vagões inacabáveis que nos levarão de lugar algum para lugar nenhum? Demorados 240 segundos. Sim, demorados, para quem está com pressa e atrasado todos os dias.

90 segundos, já chegarei neles.

Comprando a passagem na estação Siqueira Campos, ouço um dos trens partindo. Era o meu, pegaria o próximo nos longos 240 segundos subsequentes. Fui descendo devagar, deixando o tempo correr, desci um degrau de cada vez.

Pelo menos 120 segundos passaram da bilheteria à plataforma.

Foi quando vi um rosto conhecido. Sabia de onde, mas nunca tinha trocado duas palavras. Talvez tivesse em alguma rede social, mas nossa relação era nula. Morena, queimada de sol na pele e no cabelo, típica carioca, não tinha como negar. Eu sabia que ela namorava. Fui chegando um pouco mais perto. Proposital? Não digo (e nem sei dizer). Tiro meu casaco num movimento estabanado, retomo a compostura e o coloco na mochila.

Ela me viu.

Olho sob angulação discreta, mas consigo perceber suas pupilas dilatando. Fico bobo, arrumo a camisa social azul marinho, pomposo. Miro a moça passando os olhos para a esquerda, ainda modesto e a vejo usando a estratégia do meu primeiro olhar, ao mesmo tempo em que ajeita a postura. Eu me permito voltar o olhar à direita, agora mais vagarosamente, ela arruma o cabelo, num movimento tão brusco quanto o meu ao retirar o casaco.

Precisávamos de um pouco de Karatê Kid.

Ela me olha fixamente enquanto eu não a encaro. Eu encaro, ela vira o olhar e com os lábios em movimento, molhando suas superfícies, mira um ponto fixo e dá dois passos destemidos à frente, que imaginei ser apenas um charme.

Charme? Aos 90 minutos (segundos) de jogo? Aí era demais.

Eu estava em transe. Ela não fez mais nada. Voltei a mim e retomei os meus sentidos, olhei de relance para o ponto que ela olhava.

Era o metrô.

Ainda faltavam 30 segundos de espera, mas o trem já estava ali, acabando com o
meu flerte. Me recomponho por completo, e percebo que estou do lado errado da
plataforma.

Sabia!

Os números não erram, mas os romances no Rio, mesmo que de 90 segundos, nos fazem errantes.


Eduardo Moraes