quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Sorria


    Naquela manhã andava tudo em alvoroço dentro dele. Acordara com um sussurro que o fizera gritar de medo, “Libertas Quæ Sera Tamen”. Julgou ter flagrado um rabicho do eco, que rapidamente desapareceu numa fissura da parede do quarto como se fosse uma lagartixa. Apesar de ter ouvido, nitidamente, “Libertas Quæ Sera Tamen”, desconfiou que seu inconsciente tivesse algum problema de dicção e adaptou a frase ao que lhe pareceu fazer sentido: “Liberta que serás também”. Tinha que fazer algo a respeito. Afinal, não era todo dia que ouvia vozes.
Na verdade, ouvia vozes o tempo todo: A televisão loquaz, as pessoas no ônibus, a buzina histérica dos carros na rua, e a irmã; única sobrevivente da família, que ele visitava duas vezes por semana no hospital (segundo o médico, ela não resistiria por mais um mês à doença implacável, uma orquídea irremovível de tumores que se instaurara em seu organismo e que se alimentava de vida). Mas uma voz de dentro, assim, tête-à-tête consigo mesmo, cheia de sonoridade e convicção foi a primeira vez que ele ouviu: “Liberta que serás também”. Como nunca soube o que fazer da própria vida, resolveu acatar a ordenança interior:
 - Olha, Ana Clara, eu acordei com isso na cabeça. Uma frase tão bonita deve ter um significado. Pensei muito antes de vir aqui hoje. Você não me tolera desde a adolescência, não me suporta nem mesmo agora, quando venho te fazer uma simples visita. Por que não gosta de mim? Por que faz essa cara? Você não pode me acusar de ter sido um irmão frio. Lembra como eu era carinhoso? Lembra que às vezes você chegava em casa chorando sem me dizer o motivo e mesmo assim eu me compadecia e chorava também e tentava te abraçar e te morder? E meus beijos e lágrimas não beiravam a volúpia, de tanto amor? O que eu recebia em troca? A mesma careta indisfarçável de nojo que você faz agora. Pois a partir de hoje decidi ficar em casa e ter notícias suas apenas pelos médicos. “Liberta que serás também”. É isso aí, libertarei você da minha presença; embora goste muito da sua companhia e de passear pelos corredores deste hospital, que tem uma ótima máquina de café e enfermeiras solícitas que tratam os enfermos com tanta dignidade, não dispensando um sorriso amistoso a nós, parentes, que nos sentimos, assim, um pouco melhor acolhidos neste ambiente de paredes frias e luzes brancas. Pode comemorar sua liberdade. Assim espero me libertar também, nem sei de quê. Quem não quer ser livre? Eu também quero; embora nada me prenda. “Liberta que serás também”.
  - Seu idiota. “Libertas Quæ Sera Tamen” está em latim e significa: “Liberdade, ainda que tardia”. Tem a ver com os Inconfidentes, Tiradentes. Burro. E essas enfermeiras que você tanto elogia riem da sua cara o tempo todo e você nem percebe. Outro dia uma delas, sim, essa de cabelo curto por quem você mal consegue dissimular sua paixão ridícula, veio me perguntar qual é o seu problema. Entende? Queria saber se você é perturbado! Essa expressão de melancolia e esperança que você se esforça para simular, franzindo a testa e apertando os olhos toda vez que ela passa por nós, um James Dean calvo e enrugado de 51 anos, não transmite nada além de cansaço e pena. Não à toa, ontem, depois que você foi embora, escutei as enfermeiras às gargalhadas: “Cruz credo, quem gosta de pau velho é cupim”. Digo isso porque sou sua irmã e quero o seu bem, não suporto ver alguém se expondo tanto ao ridículo. Essas roupas amassadas e desfiadas que você deu para vestir agora, em vez de transmitirem um estilo libertário e transgressor; denunciam, até para os mais ingênuos, que você está desempregado e sem dinheiro. Quando as pessoas veem um homem da sua idade usando uma calça jeans rasgada, elas não pensam: “Olha, que cara despojado e moderno. Não. Elas imaginam que você foi atacado por um cachorro, ou que caiu e se machucou ao descer do ônibus. Não percebe? Preste atenção: Ninguém se perfuma tanto assim para ir de dia a um hospital, ainda mais esse perfume doce que você deve ter pegado da nossa avó falecida, capaz de matar um diabético à distância. Mas faça o que quiser, só digo isso porque quero o seu bem.  
    Assim os dois se tratavam. É claro que ele não deixou de visitá-la, queria ser o último a insultar, mas sempre recebia o contragolpe, o que estendia a batalha fraterna. Ambos se irmanavam na provocação e no insulto. A irmã vivia o criticando por ele nunca ter se casado, tido filhos (sendo que ela mesma nunca engravidou), acusava-o de ser infeliz de nascença, inepto social e desprovido da capacidade prosaica de ter e de dar prazer. Para Ana Clara, o mundo era tão injusto; pois ela, que sempre fora bem-sucedida – tinha uma carreira, era advogada de uma grande empresa, e, não fosse a doença, provavelmente teria se casado com Romualdo, com quem namorou por sete anos. Sim, ela, que pelo menos vislumbrara a felicidade como algo tangível no futuro, morreria inexoravelmente em breve, já o irmão... Ana Clara nunca completava as reticências, segura de que ele preencheria a lacuna do discurso interrompido da pior forma possível. Invariavelmente o irmão saía devastado do quarto com cheiro de éter, tentando esconder a raiva, a dor e a humilhação, principalmente da enfermeira de cabelos curtos, por quem, de fato, se enamorara. Quem via aquele ser encurvado, de olhos esbugalhados e úmidos caminhando pelos corredores do hospital pensava que ele sofria por testemunhar a vida da irmã se esvair rapidamente; ninguém imaginava que o irmão sentia na alma os golpes recebidos numa batalha feroz, e que remoía vinganças.
    Há muitas maneiras de se vingar de uma irmã em estado terminal sem que se pareça cruel. Uma delas é saber que a mana querida adora, desde pequena, bombons Sonho de Valsa, e dizer que comprou duas caixas, mas:
- Cadê meus bombons?
 - Comprei duas caixas como havia prometido; mas lembrei que o médico disse que açúcar não é recomendável. Juro que comprei, estão lá em casa. Quando você sair daqui...
 - Porra, eu não vou sair daqui, eu vou morrer!
 - Não fale assim, maninha, sempre há esperança.
Outra boa desforra é pedir emprestada a câmera profissional do ex-namorado dela e fotografá-la nesse estágio, vela derretida no leito do hospital, irreconhecível, uma boneca do Farnese de Andrade cheia de escaras na pele e a morte no coração quebrantado, que mal tem forças para protestar:
 - Não.
 - Olhe para cá, sorria, por favor, sorria. Você não tem o direito de privar as pessoas que te amam de guardar uma recordação. Deixe de ser boba, vou tirar apenas duas cópias, uma para mim e outra para o Romualdo. Ele está noivo, você sabia? Mas jurou para mim que nunca vai esquecer você. Sorria. Sorria.
    Naquela mesma tarde, enquanto aguardava a revelação da foto numa lojinha de rua, recebeu uma chamada no celular: Ana Clara havia morrido. Foi para casa feliz por ter conseguido chorar com sinceridade. Fez até uma espécie de santuário em homenagem à irmã dentro de uma gaveta do armário. Abriu as caixas de Sonho de Valsa e os espalhou no fundo, deitando a foto da irmã por cima.
    Todas as tardes, solene, ele abria a gaveta e, embora não gostasse de doces retirava um bombom e puxava lentamente as duas extremidades da embalagem de plástico cor-de-rosa. O bombom girava sobre o próprio eixo como se fosse um planeta gay, antes de ser desvelado. Deixava o chocolate derreter na boca, sem mastigar, enquanto olhava para o retrato da irmã, tentando, sem sucesso, sentir-se culpado por ter sido o último a desferir um ataque. Aquela cerimônia era quase religiosa, uma espécie de eucaristia em homenagem à Ana Clara.
    Foi numa dessas cerimônias que veio a pontada. A dor era inconfundível. Uma orquídea crescera dentro dele. Os avós haviam morrido disso, os pais, os tios e a irmã. Aceitou sem dramas o próprio destino, até com certo alívio: “Liberdade, ainda que tardia”, pensou. Procurou pela casa uma escova de dente, pijama, sabonete, cobertor, sandálias; pôs tudo dentro da mala e partiu de bom grado para o hospital, com a certeza de que jamais voltaria. Aliás, quase voltou, ao constatar que havia esquecido o pente, depois sorriu do lapso: “Coisa mais inútil, daqui para frente”. O médico perguntou se ele preferia quimio ou rádio, como quem diz: “Escolhe a balinha”.
    No hospital passava os dias pensando na família que não teve, nos filhos. Como seriam? A orquídea crescia na proporção em que ele definhava. Sentiu uma solidão atroz, antes pelo menos se distraía nos embates com a irmã. A irmã! Claro, como podia morrer e deixá-la esquecida na gaveta do armário? Implorou que trouxessem a fotografia de Ana Clara. Que ficassem com os bombons, podiam pegar o que quisessem na casa, podiam até ficar com a casa desde que lhe trouxessem o retrato.
    Naquela manhã andava tudo em alvoroço dentro dele, um alvoroço diferente, o último. Acordou com um sussurro: “Senhor, me pediram para lhe entregar essa foto”. Tudo em alvoroço, seu corpo agora era uma estufa perfeita onde muitas orquídeas grassavam. Apesar da vista embaçada, conseguiu identificar a enfermeira de cabelos curtos entrando no aposento, estendia-lhe uma fotografia. Era a primeira vez que ela fora escalada para ficar naquele quarto. Quando viu o paciente, irmão da irmã, todo carcomido pela doença, ela, apesar de acostumada com o sofrimento alheio, não conteve a lágrima:
- O senhor era tão bonito.
 - Pensei que você me achasse velho e perturbado.
 - Velho? O senhor era um gato, cheguei até a comentar com a sua irmã. As outras enfermeiras brincavam comigo porque eu corava cada vez que você aparecia.

Ele olhou para a foto da irmã, e ela sorria. Sorria.


Thiago Picchi



Thiago Picchi ficou em primeiro lugar na categoria prosa do 4º Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia, organizado pelo PET-Let da PUC-Rio. 
Lembramos que no próximo dia 17, quinta feira, às 17:00 hrs, será a entrega do 5º Prêmio Paulo Henriques Britto, na Laboratório de Artes Cênicas (LAC) da PUC-Rio.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Uma noite em III tempos


Daquelas coisas que lhe rendiam o respeito temporário de alguma gente, apartou-se em uma noite de verão pleno, desatou seu bote e remou.
À tardezinha, a visão do porto se parecia à de pinturas renascentistas do paraíso, com pilares de luz descendo do céu até as águas. Nesta hora, passada a tormenta, por ali não se avista viv´alma. Os marinheiros e estivadores já se haviam recolhido, exaustos, em casa ou n´algum canto, saciados ou passados na cana. A cidade era escura e a ponte não estava. Pássaros da altura de anjos sobrevoavam o farol. Não se ouvia senão assobios da tormenta que lhe esperava, e os ecos de gritos e gemidos vindos das margens. Corre a lenda que pertenciam aos primeiros amantes desta terra, enfeitiçados pelo espírito dos índios que negavam a salvação. E que passavam a madrugada escondidos naqueles pântanos, torturando-se em devaneios carnais.
Certamente não imaginava relatos, fugas heroicas, retornos triunfais. Estas não eram coisas suas. Sem ardor se olhava a si mesmo, não mais que nos dias de missa ou de festança. De todo não era ranzinza. Sorria com frequência, de coisas que não se entendia bem. Casou-se algumas vezes. Mas era só com seus pensamentos. Seu cachimbo de horas vazias, de muitas horas...Dizem que tinha cisma com frases. Frase escrita em tudo quanto é papel. Às vezes à faca na mesa da oficina. Às vezes até no próprio corpo.
Noutra rua da cidade, chovia. Pisavam firmes os sapatos. Os passantes abrigavam-se sob as marquises. A um lhe ocorreu um café, a outro um conhaque. A maioria ocupava-se em danar o imprevisto. O relógio da Central do Brasil marcava seis em ponto. Reto feito uma lâmina. O vento veloz levantava as cortinas das casas. Fazia frio e trovejava.
Entre os homens de terno que vinham pela avenida, despontava um jovem singular. O único a optar pelo caminho desimpedido sob a chuva, pisando em poças. A tomar por sua cartola e as vestes negras sem medidas, bem poderia ser um artista, quiçá até mesmo um santo. Estava ensopado e convicto de sua imortalidade, e talvez nem tivesse onde cair morto. O que nenhum deles sabia, e nem mesmo o rapaz, é que àquela noite, a História da arte ocidental desde a Renascença até um quarto de hotel, o nomadismo urbano, as revoluções dos pálidos, as guerras intermináveis, o cinema, as praias do Brasil, existiam somente para ele e seu colete e seu chapéu que não existiam. Era uma noite de verão pleno e, dentro de algumas horas, amanheceria febril com o toque da musa.
Nesta mesma noite, em outro tempo, alguém toma a decisão e reescreve seu destino. Ela observava indiferente o café tremer dentro da xícara. Havia um dilúvio lá fora e uma fraqueza em suas pernas, em seu coração. Imobilizada, perdeu-se em sua própria região secreta e sonhou ver, por mera distração do tempo, as entradas e saídas de seu labirinto. Um mapa confuso de futuros possíveis rabiscados à mão. O café já escorria pelos panos e queimava de leve suas pernas. Bastou que deixasse a mesa e o mundo inteiro seria outro. A América já tinha luzes, mas a mata atlântica cresce por dentro da pele.


Guilherme Gonçalves



Guilherme Gonçalves ficou em segundo lugar na categoria prosa do 4º Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia, organizado pelo PET-Let da PUC-Rio. 

Da desconstrução


1

Sabrina chegou em casa. Sentou-se na poltrona, tirou os sapatos e bateu a porta. Entrou, tirou os sapatos e atirou-os na poltrona. Entrou já sem sapatos, chutou a porta e deitou no chão. Não sei. Um retorno automático, não-racional e de fato cansado. Cansada do longo dia de trabalho, a longa solidão, a longa espera da vida. Ao menos era o que eu supunha. Pelos dois pequenos retângulos eu escrevia sua vida. Uma personagem vivendo no prédio da frente. Um apartamento ornamentado como a decoração interna de quem o habitava. Cortinas brancas, longas e lisas, lambidas pelo vento fresco a todo instante. Pequenas flores em vasos coloridos dispostos na varanda. Samambaia chorona, dependurada, pingando de suor da chuva. Aquele ambiente era a perfeita tradução de Sabrina. Sabrina que ao certo não lhe sabia o nome, mas o acreditava assim.

Hoje chegou visivelmente cansada, talvez estivesse aborrecida com algo no trabalho, ou o trânsito lento. Deitou-se no chão frio da sala entre livros e quadros. Cartazes de filmes, portarretratos. Folhas de papel soltas e uma outra presa à máquina de escrever. Chegou e deitou-se no chão frio. O tapete levara para lavar. De certo o buscaria amanhã. Ou depois. Ficou por muito tempo ali, e foi tirando o casaco, que dificuldade fazê-lo passar pelos ombros, assim deitada. Seria interessante projetar um casaco novo, diferente, que fosse ligado por fitas, uma na frente e outra atrás, unido apenas assim, duas mangas compridas de jeans. (Já posso imaginar seus dedos finos puxando delicadamente a fita verde e o peito inflando-se em liberdade. Bonito essas unhas rosas assim, com a fita verde). Já tirara a calça também.
Levantou-se e se olhou no espelho. Seu reflexo ali, emoldurado pelos pedacinhos coloridos, azuleijando-a. O rosto como um quebra-cabeça transparente que é preciso tocar para sentir os contornos de cada peça. Fechava os olhos e se via no quadrado. Um chumaço de algodão no lugar do cérebro. Algodão azul. Fofo, podia acariciá-lo, apertá-lo como se faz quando passamos xampu.
Abriu os olhos e estava com as mãos na cabeça.
Fez-lhe um carinho e observou sua face. Passando as mãos suavemente, sentindo cada poro, respirando. Abria e fechava os olhos. Imaginava-se. Sonhava, acordava. Boiando no fundo de uma piscina muito azul, abria os olhos e via somente os raios de sol encontrando a água. Gosto bom de cloro que fica nos dedos. Gostava de chupá-los depois do banho, lhe traziam essa lembrança d’água.
Abriu os olhos e novamente o espelho. De súbito olhou para a janela buscando o sol. Era noite escura mais eu. Ligou o som e foi tomar banho. Não sei se me viu.

2

O banheiro de Sabrina não era tão público, digamos assim, como sua sala e seu quarto. Havia somente uma janela, daquelas pequenas, onde eu conseguia ver o xampu apoiado no vidro. Era bem na direção do meu banheiro. Chegamos, algumas vezes, a tomarmos banho juntas. Esse sábado, de madrugada, vi essa luz acender. Como eu já estava há muito enrolando, fiz disso uma motivação para ir também ao chuveiro. Vi, entorpecida, quando suas mãos surgiram molhadas em busca do frasco. Demorava-se para tirar toda a espuma dos cabelos, eu via sua testa, e tinha a visão de seu rosto inteiro. Olhos fechados, boca um pouco aberta, respirando, ora enchendo-se de água, então cuspindo-a e o novo líquido a escorrer por seu corpo nu. Às vezes a ajudava a se ensaboar, passava a esponja com cuidado em suas costas, umas pequenas sardas travessas. A água esfriou de repente e despertando me vi sozinha. A luz na janela da frente já havia se apagado.

3

Confesso que passei um dia inteiro em casa a esperá-la. Algumas vezes. Como quando acompanhamos nossa novela preferida. Mas eu preferia a televisão da vida real. Aquela personagem era tão próxima a mim. Mais próxima que muitos dos poucos amigos com quem me relaciono. Talvez até mais próxima do que meu eu de mim.
Gostava de vê-la aos domingos, depois da feira. Chegava carregada de sacolas e perfumes. Adoramos cheiro-verde. E aipim. Pela manhã, cozida com manteiga e sal. Sabrina cozinhava pouco, mas intensamente. Fazer comida para si, preparar os ingredientes, esperar assar enquanto dança. Meu prato preferido foi bolo de chocolate com vestido branco ao tango. O cheiro do forno a envolvia da cozinha para a sala e seu corpo rodopiava de alegria. Era muito elegante e esguia. Uma bailarina não realizada. Talvez seus sonhos não coubessem em seu corpo. Talvez dançando se encontrasse. Cozinhando, escrevendo, deitando no chão gelado e atirando os sapatos. Sendo sonhada por mim.

4

Recebia poucas visitas. Eu e ela. Em verdade a visitava todos os dias. Assim logo que o sol saía pela manhã. Sabrina tinha o hábito de dormir com as janelas abertas em noites quentes. Cobria-se com a luz do luar. E eu mal podia dormir. Nenhum sonho poderia alcançar a beleza daquela imagem, a cena preferida do meu filme mais querido. Seu corpo, dormindo, sonhava energias que me despertavam. Eu acordava, a olhava, e voltava a dormir até ser despertada por ela outra vez. E assim ao longo da noite. Durante o horário de verão.

Hoje levantei bem cedo, não queria continuar o pesadelo e acordei. Despertei dos sonhos de outra vida. Evitei a janela, não abri as cortinas. Mas de tarde, na impetuosa tarde, a chuva veio e com ela o frio, o vento, o medo. Tudo voava e precisei fechar os vidros. Escancarada em minha janela, braços abertos, peito erguido, olhei de frente e vi. Sabrina resgatando sua cortina e estendendo os braços, abaixando o vidro. Estava de batom, perfumada e bolsa pendurada. Sorriu. Para mim? Pegou as chaves na mesa e foi em direção à porta. Não vá, pensei. Sabrina!, gritei. Mas fez que não ouviu.


Aline Ferreira



Aline Ferreira ficou em terceiro lugar no 4º Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia, categoria prosa, organizado pelo PET-Let da PUC-Rio.
Lembrete! No próximo dia 17, às 17:00 hrs, será a entrega do 5º Prêmio Paulo Henriques Britto, no Laboratório de Artes Cênicas (LAC) da PUC-Rio.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Tríptico


I. NOITE
Ou blues para Peim

Abre a tua cara, ri, naufraga
Na sepultura desta noite.
Deixa que a música te açoite,
Engole o arpão da madrugada,

Chupa o estalactite, o chicote
Frio do ar, música gelada,
O Blues que o som do trem apaga...
Dança, antes que a razão te afoite.

Pé ante pé, desce os degraus
Desta estação velha – Bauhaus –
Tanto barata quanto rara,

De graça... vida de palhaço;
Contorce em macarrão teu aço:
– Naufraga, ri, abre a tua cara.




II. AMANHECER
Ou semiose chinesa para Ezra Pound sorrir

Não sei pra que serve o ego,
esta di-visão, quimera
de-marcar “era” & “não era”,
ego ainda quando nego...

Que tal ver a forma inteira,
que o partido aparta, cego?
Sigo a ponte ao meio e rego
signos para a sementeira

de acordar acordos.  Rogo,
pois a forma FLOR aFLORa
demonstrando a estrada, agora...

Pura analogia.  Logo,
quem já for treinado em fogo
lerá   em vez de Aurora.




III. MEIO-DIA
Ou dissoneto de Rogério “Caos”

Tal como Shakespeare cantou Southampton.
Não.  Como Neruda quebrou as rimas.
Não.  Como Pessoa quebrou o ego?
Não!  Nem Petrarca nem Camões.  Já chega!

Quero um soneto de verdade, vivo,
que rime como um furacão demente,
que fale como o céu cuspindo gelo;
na primavera rime de repente,

cantando um sapo bobo de haikai
e termine faltando um quarteto

– ou não termine nunca, como o céu
e te arrebente de azul
e te arrebente de azul
e te arrebente de azul


Carlos Pittella-Leite



Carlos Pittella-Leite ficou em segundo lugar no 4º Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia, organizado pelo PET-Let da PUC-Rio.
Lembrete! No próximo dia 17, às 17:00 hrs, será a entrega do 5º Prêmio Paulo Henriques Britto, no Laboratório de Artes Cênicas (LAC) da PUC-Rio.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

a fábrica de tecidos


a vida do casal
tem pouco com
as questões desmedidas

pouco a pouco é costurada
              como faz a aranha,
arquiteta genuína

são amigos
calculam o gasto no fim do mês
não praticam exorbitâncias

da teia no alto da coluna
             a aranha desce acrobata de circo
para o tapete parcelado em 10x sem juros

a vida do casal é franca
micro empresa de grandes projetos
já compraram o novo fogão

a sombra passeia no teto
              silenciosa planeja a teia
presença insuspeita nessa família  

as patas do ressentimento
               desejam ao casal maduro
a peleja dos intempestivos

pela chama dessa vela acesa
do casamento só restam cinzas
da viúva negra, inquilina intrusa.


Ana Salek


Ana Salek ficou em primeiro lugar na categoria Poesia do 4º Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia, organizado pelo PET-Let da PUC-Rio.

Lembramos que no próximo dia 17, às 17:00, será a entrega do 5º Prêmio Paulo Henriques Britto, no Laboratório de Artes Cênicas (LAC) da PUC-Rio. 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

As múltiplas faces de Madame Satã


Lançamento do livro "As múltiplas faces de Madame Satã: estéticas e políticas do corpo", de Geisa Rodrigues, com prefácio de Ana Paula Kiffer e orelha de Marília Rothier

Plástico Bolha no Labirinto Poético


No último sábado, 05/10, o Plástico Bolha esteve presente em mais uma edição do Labirinto Poético! Dessa vez, foi na estreia do evento na Cidade das Artes, como parte da FLIZO (Festa Literária da Zona Oeste). Apesar do vento e do frio, a noite foi maravilhosa, repleta de artistas quentes e muita poesia! Agradecemos à organização do evento, esperamos aportar pela Cidade das Artes novamente em breve. O álbum de fotos do evento pode ser visto no link: https://www.facebook.com/labirintopoetico/media_set?set=a.355939917873566.100003726827829&type=3

Sigamos perdidos na poesia!

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Soneto de quebra


às vezes como se fosse
outras vezes quase perto
os troços que a vida trouxe
os truques a céu aberto

os traços em movimento
na tela depois do almoço
e um soneto sonolento
fabricado osso a osso

passo a passo peça a peça
os pés após a cabeça
os braços saem dos ombros

as pernas saem das coxas
em ondas heterodoxas

quebrando em versos de escombros

Luiz Henrique


quinta-feira, 3 de outubro de 2013

às vezes


às vezes somos todos peixes,
(ela disse lendo
um poema de Quintana)

abrindo e fechando a boca sem
dizer nada.

isso ela disse na saída do metrô,

alagados calçamento
e asfalto,

guarda-chuvas
com os cabos curvos, quase
anzóis,

segurando pessoas
afobadas,
se debatendo,

verdadeiros peixes

fisgados.

Rafael de Oliveira Fernandes



Rafael de Oliveira Fernandes é colaborador da cidade de Santana, SP. 

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Ao caçar passarinhos

“Tudo é exílio. Tudo, exceto a poesia"
Dante Milano

um passarinho
(sistema singular)

é um voo sem palavras
- não pertence ao poema –
mantém-se estranho

daí ao caçá-lo
querer sê-lo;
e me aplumo
                     no poema

o voo que só é
                        sendo
às asas não se diz
- nós é que estamos dizendo

(colecionamos pássaros mortos)

o pássaro não se interroga
                não se publica
                não se pertence

tal qual o poema
que se pretende
voo em outras asas

mas vale a ele se ater
no que dele tenho
e a ele não posso me ter


nos resta então este jogo,
                             um voo do escrito:

entre o que me deixo
passarinho permanecido
e o que minhas asas

não sabem ao que bater

Flávio Morgado

domingo, 25 de agosto de 2013

Muestras + Corpo Pouco, de Lucas Viriato




Convidamos nossos leitores para o lançamento de Muestras e Corpo Pouco, de Lucas Viriato, editor do jornal Plástico Bolha. O lançamento vai ser na terça-feira dia 27 de Agosto, a partir das 18h, no restaurante Ettore do Leblon.  Esperamos todos lá!


LANÇAMENTO DE MUESTRAS + CORPO POUCO
27 de Agosto, a partir das 18h
De Lucas Viriato
R$ 20,00 (aceita cartões)

Ettore Leblon
Rua. Conde Bernadotte 26, Lj 110 - Leblon, RJ
(Galeria do Teatro Leblon)

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

MANIFESTO


A voz reprimida rompeu a inércia.
Juventude partida se uniu em orquestra;
E gritou aos políticos que a fartura acabou.
O congresso tremeu, pensou e votou.
Sem união força não há!
A hora é essa - reformas já!

quinta-feira, 18 de julho de 2013

A vida pela hora da morte! - Sempiternos adágios



As manifestações populares do mês passado (junho de 2013), no Rio de Janeiro, tiveram como estopim o aumento de vinte centavos no preço das passagens do transporte coletivo. Mas o movimento ultrapassou em muito o protesto contra o aumento do preço da passagem de ônibus! Na realidade, os vinte centavos incluíam o indignado e até então sufocado protesto contra a carestia, a inflação, a falta de recursos básicos nas áreas de educação e saúde, contra a vigência da corrupção, dos impostos extorsivos cobrados dos cidadãos, da falta de transparência na aplicação do dinheiro público, das negociatas que envolvem obras estatais, etc. ― Vox populi, vox Dei!

Pois é!  A Res publica, na figura de Dilma Rousseff, foi forçada a ouvir a vox juvenum, a voz dos jovens nas ruas do Brasil, e foi forçada a declarar a legitimidade do movimento. E nem poderia ser diferente, pois a ideia de que uma opinião compartilhada por todos não pode ser falsa já se encontra na literatura grega desde Hesíodo e, na romana, desde Sêneca, o Velho, em que se lê que “a língua do povo é sagrada” (Sacra populilingua est) que confirma o dito medieval A voz do povo é a voz de Deus.

Em Roma, acreditava-se, até mesmo, que a primeira palavra ouvida ao sair-se porta afora poderia ser uma palavra profética. Assim, se um romano tivesse algum assunto a tratar e estivesse em dúvida sobre que decisão tomar, a primeira palavra ouvida na rua seria a voz de um deus. Em outras palavras, seria a resposta à dúvida. De fato, nosso romano indeciso sempre poderia invocar o deus Aius Locutius, que certamente se manifestaria, nem que fosse pela força do pleonasmo de seu nome.  Aio significa “afirmo”, “digo”, “falo”. Locutus sum, por sua vez, é a origem da forma Locutius, e significa “falei”, “disse”.  Deveras loquaz este misterioso deus Falo e digo e repito ou Aio Locúcio!

Parecem ter sido vítimas desta misteriosa e divertida divindade pagã aqueles funcionários da notícia que, antes da declaração oficial de legitimidade do movimento das ruas, ridiculamente o repudiaram e desclassificaram. ― Pois é, Arnaldo Jabor, “anarquismo inútil” é forte até mesmo em um discurso de retratação pública! O ridículo de vozes deste tipo me fez associar os sintagmas “vinte centavos”, “preço do transporte”, “passagem” a outro adágio estampado em cartazes de manifestantes do movimento: ― O tomate está pela hora da morte!  Uma bem humorada paráfrase do velho A vida está pela hora da morte.

Se o custo de vida anda alto, o da morte, paradoxalmente, anda altíssimo. E aí vai uma questão a ser pensada: se em vida já pagamos altas taxas de juros e impostos, por que temos de pagar pela morte? Não seria o caso de protestar também contra o custo do transporte para o mundo dos mortos? Sem abordar o abjeto assunto da “máfia dos cemitérios”, a morte nunca foi grátis. O pagamento da passagem para a morte não é novo e nem moderno. Assim nos testifica a figura de Caronte, o barqueiro do mundo dos mortos da mitologia grega.

Diz o mito que quando a alma abandonava o cadáver, ela era conduzida ao mundo subterrâneo dos mortos por Hermes, que a deixava às margens do rio Aqueronte. Dali, se o corpo tivesse sido sepultado e mediante o pagamento de um óbolo, era permitido à alma entrar na sombria barca de Caronte. Cruzando as tenebrosas águas do Aqueronte, a barca atracava na margem oposta, e a alma chegara em definitivo ao Hades, o reino de Plutão e Perséfone, cujo imponente saguão era guardado pelo tricéfalo Cérbero, o cão do mundo subterrâneo.

Um óbolo, portanto, era o preço da passagem para o mundo dos mortos. É por isso que na Grécia antiga existia o costume religioso de se colocar a dita moeda na boca ou por sobre a pálpebra do morto. O óbolo era a medida grega de menor valor: a sexta parte de uma dracma ou meio grama de prata.  Nosso centavo de real, que já nem mais circula, apesar de continuar a ser computado no preço de mercadorias e produtos, não serve como comparação. Já vinte centavos, quem sabe?

Só que, em nossa história, os vinte centavos de aumento seriam cobrados (não fosse o Movimento Passe Livre) pelo transporte de pessoas vivas em viagens diárias, verdadeiras vivências de um inferno surreal. Nenhum carioca, obrigado a usar o transporte público, terá dificuldade em imaginar a barca de Caronte! Ele a conhece dos ônibus e do metrô que servem à população.

Ao fim e ao cabo, não é de estranhar que tenhamos a morte em tão alta conta: ― Fulano vale mais morto que vivo! Pela fria lógica de mercado, um morto tem um polpudo saldo de créditos por tudo que pagou em vida, sem esquecer o custo derradeiro: o do funeral. Ainda que macabra, fica a irônica sugestão de uma nova reivindicação, não de todo descabida. ― Abaixo o óbolo de Caronte: cemitérios públicos livres para todos!


terça-feira, 11 de junho de 2013

Entrechocados

                
                Para que algo em nós possa nascer a cada dia, uma parte nossa precisa também, a cada dia, morrer. Não haveria espaço se fosse de outro modo.  Nós somos um campo de batalha. Tudo em nós luta para nascer, para perpetuar-se, para morrer. Os nossos átomos lutam entre si, sem cessar, chocam-se e as faíscas são sentidas por nós, às vezes mais, às vezes menos.
                Um dia eu me vi, atônita, perguntando o que é isso que permite aos corpos se manterem eles mesmos, eu achava que o natural seria tudo se desintegrar, nenhuma partícula deveria manter-se unida a outra. Os físicos, claro, apresentam suas teorias para explicar o que é isso, mas nenhuma delas tira o espanto deste momento: olhar um mísero copo e ele ser ele, formar um corpo. Ele está unido ao todo, mas  mantém uma individualidade em relação aos outros corpos, não se desintegra.
                Algo muito assombroso acontece no interior da matéria deste copo. E no interior de um ser vivo que se degrada e se cria a si mesmo constantemente, o mistério é ainda maior. Meu coração pode disparar a qualquer momento e também pode parar; cada célula minha tem um tempo de duração, precisa morrer para dar chance a outra que quer nascer; com uma forte emoção, provocada, por exemplo, por uma música, os meus pêlos eriçam-se, tal como acontece com os de um gato. Quer dizer, não sei como se emociona um gato, talvez ficando irado. Ele jamais esconde seu medo.
                A nossa luta atômica é bem mais violenta que a deste copo que agora vejo belo. Tanto é que as montanhas morrem se degradando por fora, erodindo; e nós, por dentro. Não é um tiro no peito que nos mata, é o nosso peito.
                Sim, têm horas que a tensão é tanta que o nosso peito explode, não se aguenta e degrada a si mesmo. A emoção, um pensamento, é um paroxismo, a duração estendida de um instante terminal. É o aborto da morte que vive eternamente em cada menor partícula de cada um de nós. O arrebatamento é a consciência da morte, uns a assumem mais, outros, menos. As partículas não mentem.
                Mas o pensamento, uma emoção, convoca toda a sua ação, mesmo sabendo que vai então sucumbir. Reúne toda a força da sua morte para agir. Quanto maior a morte em mim, maior a vida que vibra dentro e fora de mim. E pelos quatro cantos do vento batem forte as asas da nossa morte.

Bianca Vilhena



Bianca Vilhena é nossa colaboradora e mestranda do curso de Filosofia da PUC-Rio.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Ocasião


Procurava na praias, nas estradas, nas calçadas
mas foi entre uma janela, um corredor e uma escada
que avistei casualmente minha outra suposta alma

no cabelo trança, no corpo sardas dentro de um vestido azul
tão bonita que para certos trouxas, quase imaculada
com olhar periférico para pessoas apaixonadas

Não era difícil deixar-se levar por sua filosofia barata
de havia um sentido para cada acaso
e que existiam mais respostas aqui na terra do que em todo o espaço

mesmo resistindo
minha razão por completo imergia
na fábula sentimental que ela criara

Capturado através de métodos
do qual um homem não pode fugir
naquele dia me tornava mais um

vulnerável aos caprichos de uma mulher
e imune aos enganos do amor

Fernando Maia



Fernando Maia é nosso colaborador da Ilha do Governador, Rio de Janeiro.

sábado, 8 de junho de 2013

Sobre meus amantes


Após muito pensar percebi que sou uma mulher de muitos amantes. E isso me faz quem sou. Eu não me importo com o que dizem as más línguas, afinal a vida é minha. E, apenas me entrego aos meus pequenos devaneios que me levam ao desfrute do meu pensar. Pois, nos meus domínios eu sei que se estiver com um pela manhã, quando o devoro, brevemente, sei que estarei livre e, logo, terei outro. E, neste vício, à tarde já serei de outro.

Eis-me inconstante nesta minha fome insaciante que alimenta loucamente meus delírios. E, aquém dos meus desejos fartos, logo encontro outro amante. Essa loucura permanente me conserva a sanidade alimentando este desejo insaciável de colecionar amantes. E sim, é muito recompensável sentir meu vício sendo saciado à medida que minha mente se alimenta com furor da vitalidade do que me sacia. Porém, não penses que me entrego à promiscuidade do sentir enlevada pelo prazer da carne. Este meu vício é simplesmente uma febre que mata minha sede.


Não antecipe o seu pensar por eu falar abertamente de minhas aventuras (errantes? Creio que não) elas são apenas uma parte vibrante de mim que se sobressai no meu eu. Meus secretos e secretos amantes, embora se amontoem, não reclamam deste meu vício entorpecente, pois eles ganham vida, justamente, quando se entregam a mim e, assim, eu ganho muitas vidas ao mergulhar sem receios nas páginas de suas histórias viciantes. E, em cada página eu encontro um motivo a mais para continuar colecionando meus virtuosos amantes a cada livro que possuo.

Elãine Fernandes



Elãine Fernandes é nossa leitora e colaboradora de Arapiraca, Alagoas.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Curta o Plástico Bolha no Facebook!



A página oficial do jornal literário Plástico Bolha no Facebook acaba de ultrapassar os 1000 seguidores. Para comemorar a marca, nada melhor do que continuar o trabalho de publicação de prosa e poesia nas mais variadas midias. Curta, siga, leia. Escreva, envie e participe!

quinta-feira, 6 de junho de 2013

O copo está caindo...


O copo caiu. O trânsito estava insuportável como de costume. Elogios em meio um paraíso automobilístico, com a paisagem vibrante da cidade cinza. Chegou em casa e, com gotas de suor ziguezagueando pelo corpo adentro e afora, só pensava em tomar um banho, bater um prato de arroz com feijão e procurar sua mulher. Porém, o que encontrou foi uma louça suja, baratas rondando a mesa e uma pilha de contas. Sentou-se. Colocou gelo no seu copo de pinga. Ai que alívio. E fechou os olhos que se misturavam em meio aos delírios de um bicho cansado.

O copo caiu. Deu início a uma tremedeira, suor, suor, palidez, e aos poucos pernas, braços, corpo foram ficando fracos, bambeando e resistindo os últimos segundos. Era uma terça à noite. Não tinha ninguém em casa, pois já havia perdido todos os queridos por conta das agressões e surtos. E assim, foi perdendo os últimos motivos para continuar vivendo o que lhe restava. O copo caiu. Os gritos eram gritos de silêncio, ou pelo menos as almas que habitavam o prédio silenciavam os gritos do Homem. O socorro já lhe era inútil. O copo caiu. Assim já estava totalmente travado, agora todo o ódio e o rancor que guardara por anos tomava seu corpo e o imobilizava como uma criança sendo entrelaçada por um enorme rolo de fita isolante. O copo caiu. O copo quebrou, se estilhaçou e o Homem também caiu, quebrou-se e estilhaçou-se.

Felicio Dias

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Inquilino do sol


a sombra que se gasta
a morte não me basta
inquilino do sol
procuro a chuva
para fundir o poema
em complexa elisão de astros
que se desbastam no solo
ventre aberto, exposição
de palavras ao vento
recolho com a vassoura
as folhas-metáforas
que engolem a chuva
no dorso da terra
primordial sono
na boca da esfera
em correntes de letras semiabertas
para o sopro do universo
planetas giratórios
fazem festa no papel do artífice
em estrutura interiorizada
qual pérola dentro da concha
delicada veste esconde
uma armadilha
para os pássaros famintos
que voam sem direção
para as mãos
do inquilino do sol


Alexandra Vieira de Almeida

A Fisioterapeuta


Seus ombros, um pouco finos e um tanto quanto largos para sua estatura baixa, pareciam carregar um daqueles antigos vestidos usados nos anos sessenta, muitas vezes confundidos com os clássicos uniformes de empregada, branco e preto, justamente por serem amplos nos ombros e nas ancas de suas portadoras, mas que, afinando delicadamente a cintura, dava um ar de sensualidade, como a mulher violão do poetinha; não clássica e divina como um Stradivarius, nem pesado e grave como um violoncelo, mas sublime e poética como um violão.

Seus olhos, embora castanhos, possuíam um brilho de um diamante negro recém forjado que condenavam muito mais do que os próprios olhos, chamados por muitos de janelas da alma, poderiam, ou deveriam, demonstrar naturalmente. Condenavam, por trás de toda a segurança de uma mulher no cimo de sua maturidade, uma fragilidade infantil que suplicava, através do forte brilho, como uma criança recém nascida que só tem o seu choro para exigir o quinhão de leite, por um socorro, um abrigo, ao menos um colo onde pudesse repousar sua angústia. Como o brilho encarregara-se de exibir suas aflições, seus olhos, em segundo plano, ficaram responsáveis de demonstrar, através de sua bela e singela silhueta, não só a força de uma mulher sonhadora, movida pelo mais puro sentimento cristão, mas também a imagem de uma mulher sentimentalmente firme. E para provar esta firmeza, aliava-se a eles um lindo e inerte sorriso. Inerte, não por uma falsa simpatia geralmente vista nas atrizes diante das câmeras jornalísticas, mas por uma serena chama de esperança que nunca lhe faltara oxigênio.

Sua voz, nem grave e nem aguda, mas branda, como se servisse de base a uma grande orquestra de Mozart, fazia-me entrar numa espécie de encantamento do qual nasciam os sons dos demais instrumentos, e assim, fazendo completa a orquestra. Rica em parciais harmônicas, sua voz se tornou uma peça principal em minha orquestra vital, pois eu obedecia ao menor sopro dado por ela, copiando os demais instrumentos de um concerto que se afinam ao comando de um oboé.

E foi exatamente assim, naquela pequena sala de espera do terceiro andar do instituto Geni Faria, que eu me senti completamente enaltecido ao conhecer a bela fisioterapeuta que me atendera, logo após ser chamado a sua sala de atendimento. O dia agitava as cortinas, e entre as arestas formadas pelas suas longas camadas, o sol tentava, com seus raios de luz, admirar toda a beleza daquela mulher. O atendimento foi rápido e prático, como toda a primeira consulta de avaliação de um paciente. Quando sai de lá, senti um grande prazer por tê-la conhecido, misturado com uma imensa dor, causada pelo medo de que o destino, por algum acaso infortunado, impedisse-me de vê-la novamente.


Voltei à rotina de meus dias insossos, mas não mais vagos, pois quando lembro-me de tudo, principalmente dela, este antigo vazio é preenchido com a sublime suíte número três em ré menor de Bach, que começou a tocar desde o primeiro momento que a vi, naquele hospital e que, ironicamente, parece ter “concertado” a minha máquina de sonhos...

Augusto Procópio

terça-feira, 4 de junho de 2013

Liberdade vigiada, liberdade escravizada


“Sorria, você está sendo filmado” – alerta o sarcástico sorriso amarelo. Por vezes ao ler o aviso questiono-me se de fato somos livres ou se o conceito de liberdade não passa apenas de uma doce e mera ilusão. Se por um lado escravidão é a ausência de liberdade, por outro, a ausência da escravidão em si não nos torna, necessariamente, livres. A nova escravidão não carrega mais consigo correntes e grilhões, ela entra sorrateiramente em nossas vidas disfarçada de “Grande Irmã”.

Tenho a infeliz oportunidade de presenciar a concretização do presságio orwelliano e ver o seu grande vilão – Big Brother – tomar forma e cor no mundo real. Não refiro-me aqui ao deplorável reality show idealizado pelo holandês John de Mol, cujo formato se alastrou feito praga pelos cinco continentes, incrustando-se, ao que parece, em nossa televisão brasileira há mais de uma década.  Refiro-me sim a um dos maiores personagens de ficção criados pela literatura britânica. Trata-se do brilhante romance, com viés político, intitulado “1984”, de Eric Arthur Blair sob o pseudônimo de George Orwell.

A obra produzida em uma época (1948) em que a Europa e Ásia eram dominadas pelos regimes totalitários de Stalin e Hitler – aliás figuras de inspiração para a produção da mesma – busca alertar seus contemporâneos e futuras gerações para os perigos do totalitarismo. Orwell retrata uma sociedade, cujos cidadãos são vigiados em tempo integral e em todos os locais através das teletelas (aparelhos que transmitem e captam som e imagem) sob a liderança do onipresente “Grande Irmão”, sendo constantemente lembrados pela frase propagandística: “O Grande Irmão zela por ti”.

Diante da realidade que vivemos hoje podemos dizer, sem hesitar, que Orwell foi acima de tudo um visionário da sociedade contemporânea, que vive em meio a uma liberdade vigiada. Por causa de um poder público inoperante, que não consegue combater as ações criminosas e violentas garantindo assim a segurança dos cidadãos, tornamo-nos condescendentes com o uso de uma tecnologia que propicia a vigilância total de nossos atos, aceitando inclusive a invasão da nossa privacidade. Somos vigiados nos estabelecimentos que frequentamos, nos condomínios que moramos, nossas conversas podem ser gravadas, nossos veículos monitorados, tudo em prol da própria segurança. Esta vigilância constante expõe justamente as condições de insegurança às quais estamos sujeitos, vivemos a era da desconfiança absoluta, cujo maior inimigo é o outro.

Diferentemente da ficção de George Orwell, o nosso inimigo não é visível e pode ser qualquer um ao nosso redor. Temos assim, como consequência mais desastrosa, um isolamento crescente do indivíduo, propiciando um comprometimento das relações sociais. Vivemos a era da globalização, não há mais fronteiras nem limites para comunicação e veiculação da informação, entretanto, paradoxalmente nos tornamos cada vez mais solitários.

Somos constantemente bombardeados por notícias de violência que acabam alimentando mais ainda os fantasmas e temores da insegurança física e emocional que nos assola. Criamos as nossas próprias “teletelas” com a intenção de zelarmos por nós mesmos, o grande problema agora está em se enxergar a linha tênue que separa a (falsa) ideia de proteção, da violação e invasão de privacidade.

1984” serviu para nos alertar sobre as consequências que um Estado totalitário pode acarretar, resta-nos saber quais são os efeitos que uma liberdade vigiada pode causar em uma sociedade como a nossa.

Liege Karyj

Evento na Casa de Cultura Mario Quintana



Sábado, 11 de maio de 2013, 16h

Casa de Cultura Mario Quintana
Rua dos Andradas, 736 – Centro
Porto Alegre – Rio Grande do Sul
Brasil

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Plástico Bolha em Miracema - RJ


Estas são algumas fotos do jornal Plástico Bolha sendo distribuído em Miracema, no interior fluminense. Em uma parceria com os amigos Paulo e Giselle do Ponto de Leitura Barraca das Letras, os exemplares do jornal ficam a disposição do público, sempre interessado em conhecer novos autores e escritas. Valeu, Miracema!





Imagens secas (dez por um)


Dos corpos sugados pela paisagem ensolarada e inimiga
Dos corpos, o sangue ausente por culpa do rei...
Dos corpos que compõem a paisagem pálida, sem vida
Do império do espaço sem expectativas
Do horizonte ameaçador do amanhecer
Da penumbra tristonha e esperançosa ao entardecer
Da secura dos olhos mesmo ao chorar
Da amargura na boca sempre suplicando
Do ar quente enchendo os pulmões sem misericórdia
Daquela pele cinzenta em cima da carne sem vida

Do silêncio atormentador dessa vida
Das imagens ilusórias de fartura na falta
Do caminhar na direção dessa falsidade
De pedras até por água suplicantes
Do céu azul sem a graça de alguma divindade
Da fé concentradora das últimas energias para salvar-se
Daquele punhado de nada e comê-lo sorrindo
Do cantar solitário (grito?) da asa branca de triste
Da fina poeira levantada da realidade

Da formiga carregando esperança no seu libertário tempo
Do cacto sem fé, mas resistente ao terreno difícil
Da nuvem cheia passeando com essencial de se viver
Do vago estômago debruçado e fraco na terra
Da falta de tudo do que nasceu...
Do descrer de todos os animais perante o criador
Do sol-rei desassossegado com o calor desse mesmo
Do ser humano com ar frágil e singelo
Do olhar fixo num horizonte perdido
Das imagens secas contra a imagem vívida e esperançosa desse poema...

Ruberval Silva

domingo, 2 de junho de 2013

Story 3 — poema de Luiz da Franca


Um sotaque francês
Ela pede chá
Ele diz que é noir

Ele, bem carioca,
quer café
Expresso?
Não, não... Pode vir com calma

Luiz da Franca

sábado, 1 de junho de 2013

Lançamento de "O Brasil em Uníssono"


Convidamos nossos leitores e colaboradores para o lançamento do livro "O Brasil em uníssono — e leituras sobre música e modernismo", da nossa saudosa amiga e colaboradora Santuza Cambraia Naves. Será na próxima terça-feira, dia 4, no POP, no Jardim Botânico. O evento ainda contará com uma conversa com Helena Bomeny e Eduardo Jardim.


Última Carta


E se eu te disser, meu amor
[amor, sim, amor-amor, impuro, verdadeiro, amor até a última casca de futuro, até gastar o]
, que a manta negra que nos cobria
[nos empurrando para o penhasco das palavras duras que não querí]
, se eu te disser que: tudo pó? Ou: nem pó, fumaça?
[não, não, não, o calor sólido dos corp]
Fumaça luzidia e preta dispersa na fuligem dos ônibus e no gás metano das vacas e no escape dos banheiros públicos; bem-casado de vapores no veio sujo das cidades.
[o nosso para-sempre numa nuvem de mort]
E sem nem isso? Nemisso soprando mudo no cabelo imóvel da menina.
[mas... era... havia...]
E se eu nem disser?
[... amor.]

Vivíamos um fim de tarde: bonito e fadado
[um para-sempre solar, um caldo grosso de delícias, um estrondo desmedido, um]
, uma morte aquém-túmulo.

Pois eis o túmulo:

.

Ana Maria Vasconcelos Martins de Castro


Ana Maria Vasconcelos é mestranda em Literatura Portuguesa pela UFRJ e conheceu o Plástico Bolha através da Revista dEsEnReDoS

O blog do Plástico Bolha está de volta!


Depois de um período de recesso, o blog do Plástico Bolha está de volta a ativa! Em breve, você voltará a ler aqui os melhores contos e poemas da nova geração de escritores. E, também, ficar sabendo das últimas novidades sobre lançamentos, eventos e atividades do nosso jornal! 

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

sábado, 15 de dezembro de 2012

COMO UM FILME DE GODARD


Acordei três da manhã com a sensação
esquisita de ter perdido alguma coisa.
Mas, acabara de acordar...

Seria assim tão distraída de deixar,
naquele lugar que havia deixado,
A fotografia do meu amado?
Seria eu um filme de Godard?

Fechei os olhos. Apertei as mãos. Concentrei-me
Com todo esforço enchi os pulmões de ar...
Mergulhei.

Procurei naquele lago escuro que aos poucos se definia.
A encruzilhada da esquina onde a teria deixado.
Usei o método tradicional associei busca a uma música,
uma paisagem, um pintor famoso,
Ou um cheiro de padaria gostoso.

Entusiasmei-me com a procura.
Tornei-me minuciosa. Segui rastros, pegadas, sítios escavados...
Usei carbono 14 manual de caverna.
E qualquer indício, tornou-se ossos do ofício.

Entre escombros nada encontrei. 
Nem impressões digitais.
Mas não desisti.
Avancei outra direção.
Desaguei na geleira, perto da cabeceira,
E entre a escrita, as camadas,
Ah, comecei a recordar. 

Mas mais que repente o fôlego desandou a faltar.
Optei por uma pausa. 
Um cigarro.
Fumei de baforada
Sem soltar fumaça...
Vieram nuvens e pássaros à cabeça.
Tristeza.
O abatimento encheu de lágrimas o sofrimento.

De nada adiantou.
A imagem que acariciei com as mãos
não consegui mais encontrar.

Afinal aceitei o mistério.
O amor na imagem do amado
Havia atravessado o espelho
Retornado ao passado.

Agora o Paraíso haverá de aguardar
outro encontro de amor.
Um novo filme de Godard.

Solange Padilha