segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Das partes (ou o exercício de forjar intratextualidades), de Angeli Rose

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Não resisti por muito tempo à agitação dos meus sentidos. Ao chegar, derramei uma torrente de lágrimas. Minha casta companheira, que não estava tranquila quanto às ideias que me ficariam desta aventura, não me largava. Ela procurou me persuadir de que os homens tinham sempre a curiosidade de sondar até que ponto uma moça com quem eles visam se casar conhece os prazeres do amor. A conclusão desse belo raciocínio foi que a prudência poderia ter me levado a fingir mais ignorância e que ela via com tristeza que a minha vivacidade talvez me fizera perder a minha fortuna. Você insiste muito em recordar as minhas observações a propósito da sua personalidade ainda não desenvolvida, da necessidade para você de desenlear o seu verdadeiro ser, etc... — "É que você é predestinada". Aí, ficou muito complicado pra ele me explicar o que é predestinada. Eu pedi pra ele me escrever essa palavra pra eu por aqui no caderno, ele escreve, mas a coisa de predestinada é mais ou menos assim: uns nascem pra ser lambidos e outros pra lamberem e pagarem. Aí, eu perguntei por que quem lambe é que paga, se o mais gostoso é ser lambido. Então ele disse que com gente grande os dois se lambem e tem até gente que não paga nada pra ser lambido. Alguns instantes depois, ambos tomaram o caminho de casa. Eu os segui por uma alameda coberta. Não fiquei mais de um instante no meu quarto, para trocar de roupa e, logo em seguida, dirigi-me ao aposento da Sra. C... Tentei explicar que era tudo um sonho, só uma vontade de, mas a mulher invocou e começou a falar sem parar: que ela que já teve outro homem que era muito rico e que esse homem queria que ela tivesse imaginação, imagina, ela! Retirei-me para o meu quarto, com a imaginação impressionada pelo que acabara de ouvir, mas muito mais afetada pela ideia da amável serpente do que pela das reprimidas e das ameaças que me fizeram quanto a ela. Contudo, executei de boa fé o que prometera: resisti aos esforços do meu temperamento e me tornei um exemplo de virtude. Tudo isso me parece terrivelmente difícil e complicado; procuro o fio da meada, mas não sei encontrar nem estou certo de que o encontrarei.

(excertos de: Cartas do Cárcere, Antonio Gramsci; Teresa filosófica, Anônimo do Século XVIII; e O caderno de lori lamby, Hilda Hilst)
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Angeli Rose
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Angeli Rose é Doutora em Letras e Mestre em Educação. Mantem o blog http://www.myspace.com/dangelex sobre criação, estética, educação entre outros temas. Este é seu primeiro texto no Plástico Bolha.
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