domingo, 13 de novembro de 2011

A alcoviteira

Avistei a estância. As luzes estavam apagadas. Eu havia caminhado muito para chegar até lá. A estrada, intricada, acabara. Agora, faltava pouco. Bastava eu andar por uma trilha que serpenteava até a varanda. Tirei os sapatos, como haviam me dito. Meus pés, descalços, pisaram sobre as folhas que pareciam me impulsionar até o meu destino. Toda a dificuldade que antes me fizera pensar em recuar, agora se esvaecia.

Uma luz foi acesa dentro da casa. Devia ser ela. Provavelmente ouvira meus passos. Já tinham me avisado que seria assim. E me falaram mais. Caso a luz fosse apagada, era para eu recuar. Contudo, se outras luzes acendessem, eu poderia prosseguir. No silêncio crepuscular, as batidas de meu coração tamboreavam meus ouvidos. Enquanto meus olhos, presos ao cenário à frente, esperavam por um sinal.

Outra luz acendeu. Depois outra. E mais outra. Era para eu seguir em frente. Andei até sentir meus pés tocarem a madeira do piso da varanda. Então, a porta foi aberta e ela apareceu. Era uma mulher de mais idade. Magra. Alta. Pele alva. Cabelos e olhos negros. Aqueles eram volumosos; estes, penetrantes. Apenas com um gesto, ela me convidou para entrar. Eu segui sua indicação.

Dentro da casa, havia livros que cobriam todas as paredes, do chão ao teto. Também já tinham me avisado sobre isso. Eu só não imaginara que fossem tantos. Dava para ver, mesmo nos cômodos apagados, a sombra das obras nas estantes. Os livros, de cores e tamanhos diferentes, decoravam as paredes da casa.

- Sou compulsiva por histórias, como você já deve saber.

Sim, eu sabia. E era por isso que eu estava ali. Sua sabedoria a fizera conhecer as pessoas como ninguém. E, sendo assim, sabia, melhor do que outrem, escolher os pares. Eu era mais uma alma solitária à procura de uma companhia. O preço? Ela possuiria a minha história. E isso, depois, eu não poderia reclamar.

- Com certeza você já conhece as regras. Trouxe as folhas em branco?

Sim, eu as levara. As mil e uma páginas virgens. Entreguei a ela aquele bloco como quem selava um contrato. Faltava só a sua pergunta.

- O que busca nesse ser que tanto quer conhecer? Ele é ele? Ou ele é ela? Disso, eu preciso saber.

Amor. Somente amor era o que eu esperava. Queria ser amada por um homem.

- Volte para casa. Antes do adeus da lua, ele irá aparecer.

E assim eu voltei pelo mesmo caminho que agora não me parecia tão custoso. Já em casa, coloquei o meu melhor vestido. Branco. De cambraia bordada. E deitei-me com a janela aberta. O céu, aos poucos, foi coberto por uma cortina de nuvens cinza que rapidamente esconderam a luz do luar. Somente os raios brilhavam naquela escuridão. Levantei-me para fechar as janelas da casa, antes que a chuva começasse. Foi então que ouvi umas batidas à porta. Quando a abri, um homem me pediu para que eu lhe desse abrigo durante aquela noite, já que não conseguiria chegar ao seu destino com a tempestade que se formava.

- Por favor, entre.

Peguei alguns gravetos para acender a lareira. Ambos precisávamos de fogo para aquecer o nosso frio. E ele, gentilmente, ofereceu-se para a tarefa enquanto eu fui preparar um café.

Depois daquela noite, perdi as contas de quantos cafés preparei para nós dois. E de quantas lareiras o homem acendeu. Ele gostava de observar a madeira queimar, enquanto relembrava o dia em que nos conhecemos. Mencionava o destino como responsável pelo nosso encontro. Não desconfiava da armação. Quando pedia minha opinião, eu me calava. Justificava a minha atitude dizendo que gostava de ouvir suas versões. E ele continuava devaneando sobre o nosso encontro. Enquanto eu, taciturna, guardava o segredo daquela que o trouxera para mim. Fazia parte do contrato ele nunca saber da mulher que o fez me amar.

A cada dia, seu sentimento, por mim, tornava-se maior. Ao passo que eu sentia um vazio. Eu não o amava. No início, eu até me divertia com suas histórias, porém, depois, elas foram me cansando. Pareciam sempre iguais.

Sendo assim, eu resolvi voltar à casa da mulher. As luzes acenderam e ela, novamente, recebeu-me. Contei sobre a minha insatisfação. Supliquei-lhe que desfizesse o meu contrato. Só que isso era impossível. Não havia volta. Implorei, então, que ela atendesse a outro desejo, em que outro homem surgisse para que eu o amasse. Ela me preveniu que aquele seria o meu último pedido. E, sem mais avisos, cedeu à minha solicitação. Fez um novo contrato. E eu lhe entreguei mais mil e uma folhas em branco.

Já no caminho de volta, eu corri, envolvida em uma aura de ansiedade, para chegar logo a casa e colocar o meu vestido branco de cambraia. Já imaginava a tempestade se formando e o segundo homem batendo à minha porta. Mas o que eu faria com o primeiro? Imbuída em meus pensamentos, tropecei em um tronco atravessado na estrada. E torci o meu tornozelo. Um homem apareceu para me socorrer. Carregou-me em seus braços até a minha casa. Eu mal conseguia piscar de tão encantada com sua beleza. Mal conseguia respirar de tão embriagada com seu cheiro. Com certeza ele era o segundo e ele percebera o meu interesse.

Durante os dias seguintes, meus pensamentos eram todos sobre o segundo homem. Não conseguia realizar minhas tarefas. Pouco comia. Mal ouvia o que o primeiro tinha a dizer. Mal o olhava. Sonhava com o segundo quando estava dormindo; e, também, acordada. Alguns dias depois, logo após o primeiro sair de casa para trabalhar, o segundo apareceu. Queria saber se eu havia melhorado. Minha alma se encheu de alegria. Em meu rosto, um sorriso apaixonado surgiu. Ele percebera o meu interesse e o retribuiu. O encontro não foi como eu sonhara - nem dormindo, nem acordada -, mas eu não me importei. Continuei desejando aquele homem, o segundo. Só que ele não apareceu mais. Nada de notícias suas. E eu sofri. Durante dias e noites, afundei-me em prantos.

O primeiro homem deixou de trabalhar para cuidar de mim. Estava preocupado com meu martírio. Até que um dia, a verdade brotou em minhas palavras, eu disse a ele que amava outro. Pedi, inclusive, que partisse de forma que me deixasse livre para o segundo. E ele se foi. Seguiu com seu corpo languido o desejo da mulher que amava.

Assim, talvez, o outro me visitasse mais. Talvez até aceitasse morar comigo. Ocupar o lugar do primeiro. Eu poderia tratá-lo como um rei. Fazer sua comida, lavar suas roupas, engraxar seus sapatos. Esses eram meus novos desejos que acabaram se tornando realidade. O segundo homem reapareceu e passou a viver comigo.

Muitas foram as noites em que ele chegou à minha casa com o cheiro de outra mulher. Eu sofri calada e aceitei as condições cruéis. Tudo em nome do meu amor. Até que um dia, ele também se foi. Não atendeu ao meu pedido para que ficasse. Percebi que ele não me amava, portanto, não me ouvira.

Com dificuldades, voltei à casa da mulher. E, mais uma vez, eu vi as luzes acenderem. Joguei-me em seus braços e implorei que me ajudasse. Ela me disse que não tinha mais o que fazer, além de que sentia muito pelo meu sofrimento. Lembrou-me que havia realizado o que eu pedira. E me deixou sozinha na varanda. Eu não queria voltar para casa. Não tinha forças. Deitei-me no chão e adormeci. Acordei com a mulher em frente a mim. Ela segurava uma vassoura.

- Se quer ficar aqui, vai ter que trabalhar. Em troca, dou-lhe casa e leitura.

Os anos foram passando. Algumas pessoas apareceram com outros pedidos. Selaram seus contratos de desejos. Enquanto eu arrumava a casa, tirava o pó dos livros e os lia.

Um dia, ouvi uma voz me chamar. Era a mulher. Estava fraca. Pediu-me para subir. Para ir até o seu quarto. Recinto, até então, proibido para mim. Quando lá entrei, vi as folhas que tantas pessoas trouxeram. Só que não estavam em branco. Estavam escritas. Cheias de histórias. A mulher pediu que eu me aproximasse.

- Está chegando a minha hora. Eu preciso de alguém que continue o meu trabalho e eu só tenho você.

Assim que ela se foi, eu fiquei na companhia das suas narrativas. Li todas. E reli algumas, as que eu mais gostava. Durante as minhas noites solitárias, passei a preencher as páginas em branco da minha imaginação com uma história:

Eu ouvia passos amassando as folhas do lado de fora. Eu ia até a janela. Percebia um homem se aproximar. Eu descia pelas escadas usando meu vestido de cambraia, todo branco. Acendia as luzes, uma a uma. Quando eu chegava à varanda, lá estava ele. Nossos olhares, cruzados, mal piscavam. Ele não esperava por alguém tão nova. Eu não esperava por um homem. Ele parecia confuso e falava primeiro. Procuro pela alcoviteira, ela está? Eu abria um enorme sorriso. Ele sorria também. Meus olhos liam seus desejos. Ele sonhava com uma mulher dotada de sabedoria. Eu o convidava a entrar. Pegava as folhas, as mil e uma, de sua mão. E as lançava ao vento. As folhas voavam, subiam cada vez mais alto. Lá embaixo, eu ficava a espreitá-las, até perdê-las de vista. Depois, nós dois entrávamos.

Nesse momento de minha criação, eu dormia. E sonhava. A cada noite, uma continuação diferente para a minha história. Mas sempre com ele. Até que um dia, eu sonhei e não acordei mais. Eu ouvi passos sobre as folhas do lado de fora. Fui até a janela. Percebi alguém se aproximar. Desci pelas escadas. Acendi as luzes. Uma a uma. Cheguei à varanda. Não havia ninguém. Só folhas. Muitas. Que dançavam com o vento. Eu passei entre elas. E um caminho se abriu à minha frente. Imaginei, lá no fim, encontrar o homem dos meus sonhos. Aquele que iria me amar e ser amado por mim. Segui em frente, com pés descalços. E com meu vestido de cambraia. Amarelado.

Cacau Vilardo



Maria Claudia de Andrade Cardoso Vilardo ficou em terceiro lugar na categoria Prosa do
3º Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia, organizado pelo PET-Let da PUC-Rio.

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