
foto de Raquel Pelicano
Gregorio Duvivier roça a língua de Luís de Camões (1524–1580) em monólogo que estreou em novembro do ano passado em Portugal, pátria do poeta nascido há cinco séculos, e que circula pelo Brasil desde fevereiro deste ano, estando de volta em agosto à cena do Rio de Janeiro (RJ), em temporada que se estende até 31 de agosto no Teatro Casa Grande.
“O céu da língua” é um solo autoral do ator e escritor carioca Gregorio Duvivier sob direção de Luciana Paes. Mas Gregorio não está sozinho em cena. Habita o palco com ele o instrumentista Pedro Aune, contrabaixista e diretor musical desse monólogo que transita entre a poesia e a piada.
Há momentos em que a apresentação soa como recital de poesia, com direito ao canto de “Livros” (1997), música de Caetano Veloso cuja letra tem versos alusivos aos da canção “Chão de estrelas” (1939), clássico da parceria do cantor e compositor carioca Silvio Caldas (1908–1988) com o compositor Orestes Barbosa (1893–1988).
Caetano também é, cabe lembrar, o compositor de “Língua”, tema de 1984 que parece nortear a viagem de Gregorio Duvivier pelo idioma de Camões com escalas na música e no humor. Até porque há momentos em que “O céu da língua” resvala no formato popular de um stand-up de humor mordaz, como “Z.É. – Zenas emprovisadas”, espetáculo de 2003 com o qual o ator pôs os pés na profissão.
No palco nu, à frente de imagens manuseadas pela irmã Theodora Duvivier, Gregorio mostra que a língua portuguesa está viva. E que línguas mortas podem ser reanimadas, trazidas da tumba diretamente para o papo de bar. Entre uma piada e outra com a reforma ortográfica de 2009, o artista põe em debate palavras ressignificadas, como “sinistro”. Nesse sentido, a peça é sinistra!
De início, Gregorio entra em cena recitando versos de Camões, poeta nascido há 501 anos em Portugal, quando surgia com Gil Vicente o teatro português propriamente dito e onde o monólogo do artista brasileiro cumpriu temporada consagradora.
Do solene ao coloquial, o fluxo verbal de Gregorio Duvivier mantém o espectador atento à trama e ao trema. Sim, trema! Que outro ator consegue discorrer sobre a desvalorização do trema na reforma ortográfica de 2009 sem entediar o espectador? Ou partir em defesa emocionada de decassílabos, o verso mais clássico da poesia de expressão portuguesa, composto de dez sílabas poéticas, que caiu em descrença para parte da poesia brasileira atual e costuma estar ausente de conversas de bar? Ou então enfatizar o quanto de repulsa é gerada pela simples menção de uma palavra como afta, dita em cena com toque de humor, mas sem perda de respeito pela língua-mãe? Aplausos para Gregorio, portador de um discurso repleto de ironia, sarcasmo e sentimento.
Em “O céu da língua”, o espectador é surpreendido pela palavra. Palavra orquestrada para a cena, já que Gregório assina a dramaturgia do monólogo, roçando sem pudores a língua de Camões, às vezes como poeta de um passado remoto, outras como humorista do stand up mais popular da temporada.
Contudo, não há apelações. Chega-se ao céu da língua em voo de brigadeiro, sem turbulências. As fricções são das palavras, convulsionadas pelo ator para expor a elasticidade de uma língua que, na realidade, extrapola Camões, sem apego ufanista a um idioma que fez travessia intercontinental até aportar no Brasil como imposição da coroa portuguesa. A senhora da cena é uma língua que descende tanto de Camões quanto de indígenas e de africanos escravizados, que a transformaram com sua cultura e sua riqueza linguística.
Dedicado a criar no palco “confusões de prosódias” e uma “profusão de paródias”, sem deixar de realçar a devoção à língua-mãe, Gregorio Duvivier roça o céu para quem defende a presença da poesia no teatro.
Mauro Ferreira
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