segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Análise: Hans Staden em duas viagens ao Brasil e uma breve comparação com a carta de Pero Vaz de Caminha

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Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal,
que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha
Pero Vaz de Caminha
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A literatura de viagem adormece sob um caráter essencialmente revelador: Quer ela nos contar o que o viajante assistiu, projetando em nosso imaginário o aparecimento descritivo de uma realidade diversa, vista através de um olhar particular. O assistir, no entanto, não passa de literatura centrada na impressão pessoal: As narrativas seguem, invariavelmente, pontos de vista. Quando os peninsulares europeus se lançaram ao oceano em busca de especiarias, tinham em mente a menor das idéias do que encontrariam. Estes dois relatos – o de Staden e o de Caminha - dizem muito a respeito do estranhamento eurocêntrico da descoberta das Américas. “Ali por então não houve mais fala nem entendimento com eles, por a barberia [barbárie] deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém” (Folha 3 da carta de Pero Vaz de Caminha). Mas esse estranhamento segue lógicas diferenciadas: Hans Staden ficou preso em uma tribo de antropófagos, vendo-os em suas cerimônias comer a carne humana assada; Pero Vaz de Caminha viu os índios a partir de um escopo mais naturalista, menos amedrontador, embora ambos os tratassem em formas subjugadas, de acordo com a mentalidade da época. Para Staden há formidável justificativa para tanto: a eminência de ser devorado.
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A narrativa de um alemão
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Hans Staden era um mercenário alemão que empreendeu duas viagens ao Brasil – a primeira em 1548, passando por Pernambuco e Paraíba, e a segunda em 1550, passando ela ilha Santa Catarina, dirigindo-se, posteriormente, a capitania de São Vicente, atual Estado de São Paulo. Suas rotas consistiram em séries incríveis de naufrágios e motins, até ser capturado pelos indígenas. Permaneceu nove meses com eles, sempre na eminência de ser comido. Seu relato é premido de receio e assombro, sempre se referindo aos índios enquanto selvagens. Entretanto, é num navio francês que Staden volta à Europa, antes, claro, de barganhar inteligentemente sua liberdade junto aos índios Tupinambás. O livro é um relato surpreendente, sem demasiada amplitude científica, e com vários intertítulos ilustrando os vários capítulos: “Como comeram Jerônimo, o segundo dos dois cristãos assados; Como os selvagens foram à guerra e me levaram com eles, e o quê ocorreu durante a expedição”. Há ainda fascinantes xilogravuras como ilustrações do tempo de cativeiro de Hans Staden. Essas obras foram feitos por ele ou, quando muito, sobre sua supervisão. A esclarecedora introdução de Eduardo Bueno que figura na obra da L&PM traz ainda diversas informações valiosas para a maior compreensão, dentre elas à relação da obra com a ocasião do seu lançamento na Europa. A recepção do texto de Staden no antigo continente atingiu escalas formidáveis, sendo traduzido para o Latim, Holandês, Flamengo, Inglês e Francês, e, já no século XVIII contava com 70 edições. Teria ela influenciado sobremaneira o movimento modernista de 1922 em sua acepção antropofágica. A obra teria sido apresentada a Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Raul Bopp por Paulo Prado, sobrinho do milionário Eduardo Prado, que havia adquirido um exemplar original em um antiquário parisiense. O quadro Abaporu de Tarsila (em tupi-guarani comedor de gente) tem inspiração no então relato antropofágico. Até mesmo o Cinema Novo, sob direção de Nelson Pereira dos Santos, compôs uma obra cinematográfica inspirada no relato de Staden: o filme de 1971 chamado Como Era Gostoso meu Francês, filmado na mesma Ubatuba que Hans Staden se viu aprisionado há quase 500 anos atrás. Existe, entretanto, uma obra cinematográfica mais recente, lançada no ano de 1999, do diretor Luís Alberto Pereira, chamada Hans Staden.
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Cândido Portinari e Monteiro Lobato também nutriram admiração pelo relato do alemão, compondo a partir dele obras que refiguraram a narrativa nos respectivos modos dos artistas; nas artes plásticas e na literatura. O primeiro título da obra, de notável extensão, era: História verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres humanos, situada no Novo Mundo da América, desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas terras de Hessen até os dois últimos anos, visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a conheceu por experiência própria, e que agora traz a público com esta impressão. Como Staden não era intimamente ligado às letras, pediu ao Dr. Johannes Dryander, professor catedrático de medicina na Universidade de Marburgo para rever, corrigir e, quando necessário, aperfeiçoar o original. Este era doutor dedicado à matemática e à cosmografia, sendo ele extremamente preocupado em relatar a verdade, evocando, inclusive, à linhagem paterna de Staden – a qual conhecia – para auferir idoneidade.
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A narrativa de um português
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Por detrás de qualquer relato de viagem que remonte centenas de anos, existe (ou ao menos deveria existir) um estudo filológico direcionado ao discernimento das nuances idiomáticas da cada época enunciada. As minúcias de uma língua arcaica podem dizer muitas sobre a sociedade que a usava; é o caso da Carta de Pero Vaz de Caminha. Na edição da carta da Martin Claret, o prefácio de Jaime Cortesão toca justo nesse tema, evocando qualidades do escrito que escancaram processos históricos valiosos. É o relato de Caminha o documento inaugural do Brasil colônia, repleto de um tom polido, mesmo que ainda perplexo. A carta foi endereçada ao então rei de Portugal, D. Manuel I, e nela os índios são vistos por Caminha de maneira bem diversa da ótica de Hans Staden: São tidos como seres puros propensos à catequização: “(...) não duvido que eles [os índios], segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza o Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade” (Folha 11 da carta de Pero Vaz de Caminha). O contato primeiro na costa brasileira, para os portugueses, foi, portanto, um afável escambo. Os índios ganharam uma série de presentes e os lusitanos uma graúda porção de terra. Foi realizada ainda uma cerimônia religiosa na costa, com direito a cruz e participação indígena que, como consta na carta, empoleirava-se a margem da praia em grupos cada vez mais volumosos (grupos de centenas de índios iam ver a chegada lusa).
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Correr sobre os dois relatos é perceber, por exemplo, a polivalência dos pontos de vista. É certo que o olhar eurocêntrico cristão imperou sobre as narrativas de viagem desta época; a Europa estava fundada sobre a hegemonia da Igreja Católica; e isso se nota fortemente. Agora, a recepção dos índios aos europeus nem sempre foi à mesma. Ler sobre essas histórias é, assim, uma digressão ao passado de nós mesmos, aos nossos processos de formação. Mas o estranhamento dos povos estrangeiros é certamente tão forte quanto sua recíproca.
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Ambos os livros estão disponíveis em versões acessíveis. O livro de Hans Staden foi reimpresso pela editora L&PM Pocket a um preço de R$ 13 e a carta de Caminha pode ser lida na íntegra no excelente site da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html, mesmo que sem o prefácio de Jaime Cortesão.
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