“Muito bem,
muito bem, admitamo-lo!” concedeu João ao seu debatedor. Um bafo etílico
adensava o ar com as palavras que soltava. Opunham-se os dois sobre uma mesa de
bar, onde a franqueza faz às vezes de genialidade. Num bar, o orador fica
obrigado a ter discurso claro o suficiente para que mesmo um bêbado o entenda —
e para que mesmo um bêbado o profira.
Mas dizia
João, “... admitamo-lo! Digamos que sim meu amigo, que os ortodoxos tenham
razão e que nós, nós somos isso que eles dizem: que somos a corrupção da
verdade que eles apregoam aos quatro ventos, e que cabe à nossa boa-fé escolher
entre a submissão a seus dogmas ou a proscrição. Que somos, portanto, reles
grupelhos perdidos, e que não ajudamos ninguém, quanto mais os pobres e
miseráveis, a dignamente levantarem-se por sua salvação, contra o poder da besta,
que faz do mundo refém de sua voracidade usurária, desse maldito amor ao lucro!
Mas eles são todos uns velhos caducos! Não percebem a necessidade de renovação,
não percebem quão crassa é sua defasagem histórica! Nossa causa precisa se
renovar, como disse, e a adequação histórica não é pecado. Ele, a cujas
palavras recorro em horas difíceis, não à toa é a quem me devoto: já nos
orienta há tanto tempo, e quem mais soube viver como um homem de sua época, e,
mais importante, à frente dela? Ele não pode ser esquecido, e os ortodoxos
parecem que fazem tudo nesse sentido, preferem morrer abraçados com sua miopia!
Fica difícil demais convencer as pessoas. Ele não ignorava a história — claro
que não preciso lhe ensinar isso — é evidente que, também aí, devemos seguir os
ensinamentos que hoje os velhotes enxovalham. Vivem presos em seus claustros!
Não atentam para as novidades das ruas, e só querem discutir o “sexo dos
anjos”! Ele foi um filósofo também, a partir da vida que viveu, e foi
perseguido por tais ideias, sabes disso. Sua filosofia é um legado grandioso,
sim, mas é nessa vida, na ação, na ética que provém dela que devemos nos
embasar agora. Caso contrário, como faríamos a conversão dos povos, meu caro?”
O confrade,
cujo respeito pelas palavras do amigo não o furtaram de certa distração,
assentiu positivamente com a cabeça por diversas vezes. Comovia-o a
contundência de João. Mas o comoveria ainda mais sua capitulação naquele
debate.
“Eu sei
João, estou de acordo com quase tudo que você falou. Mas seja sensato! Não
podemos cismar com nossos irmãos assim, não podemos nos fragmentar, trocar
alguma satisfação tacanha pela integridade de nossa missão. Deixe de ser
orgulhoso. Pense, sem tanta afobação. Sejamos virtuosos, como deve ser nossa
luta. E além do mais, de que nos adiantaria peitar os cânones? De nada, senão
nos arriscar à expulsão. Quero o avanço de nossa causa, tu sabes, prezo pela
solidariedade contra a opressão, contra a miséria humana, tanto quanto você.
Sou fidelíssimo ao nosso propósito, não duvide disso. Mas assim,
irrefletidamente, expomo-nos à exclusão, à excomunhão! O fanatismo sempre foi
um mal entre nós, não recaia nele, João. Nunca devemos nos esquecer do nosso
fim, do qual não podemos fazer nunca um meio: o homem. Lembra-se? Caso contrário,
por que entregamos nossas vidas a isso? Abdicamos das mulheres, da família, dos
prazeres mundanos... E afinal, a ala tradicional é velha sim, mas também mais
experiente e calejada que nós, já passaram por tanta coisa, temos que nos
resignar a nosso lugar também. Seja prudente Joãozinho...”
Deixou
pairando o conselho, para vê-lo decantar no ambiente. À tardinha, o bar estava
escasso em clientela, e as frases fervorosas dos amigos preenchiam-no. No chão
formavam-se, lá e cá, ninhos de sujeira acumulada, cobrindo o piso com um
tapete enegrecido. O vento que soprava na rua se segurava imóvel dentro do
estabelecimento. Séries horizontais de cervejas, cachaças e outras bebidas eram
sustentadas em prateleiras paralelamente dispostas sobre o balcão, encimadas
por uma velha tabela de preços. Sob ela, o ocioso dono do bar limpava a mesa,
os copos e os ouvidos para melhor escutar a vida alheia. Feita a réplica, João
demorou-se a responder. Colhia com cuidado os contra-argumentos que o amigo
cultivara em sua cabeça.
“Pois é, mas
a doutrinação já passou da conta. É arcaica demais, naufraga diante da apatia
geral da população. Como podemos tocar os céticos? Infelizmente, a vertente
clássica segue a mesma decadência de nossas instituições antigamente tão
sólidas. Nem contamos com a segurança das diretrizes da sede europeia mais!
Deus nos ajude... E nem tente me lecionar sobre experiência, ora! Você sabe que
não sou tão infante assim, já fiz muito pela organização também. Calejado?
Calejado sou eu! Quem fez mais pela irmandade dos homens, pelo amor solidário
ao próximo, à humanidade? Embrenhei-me no campo, sabia disso? Fui aos rincões
mais relegados da Terra, abaixei-me à lama que a ganância de idólatras do
dinheiro difunde nas margens do mundo. Ele, que foi sem dúvida o maior dos
sábios, nos alertou para o lugar dos ricos no futuro que há de se impor sobre
todos nós, e que está inexoravelmente cada vez mais próximo. Sem falsa modéstia
o digo: estive junto aos flagelados mais humildes desta América Latina, da
África e da Ásia, semeando a verdade redentora entre os famintos.
Compassivamente busquei lhes transmitir a sabedoria e a graça do nosso caminho.
Nosso, e o único, caminho para a emancipação. Fui fazer a militância com a qual
nos comprometemos há muito, conduzir os fracos à iluminação, sabe? Ele já
profetizava o desconhecimento de fronteiras do que está por vir: hoje uma
utopia, sim, mas que há de se tornar real para todos, estejam conosco ou não.
Aí infelizmente será tarde para os incrédulos se arrependerem. No novo mundo a
justiça será perfeita, como tudo o mais, e por isso severa com os que obstaram
a sua chegada.”
A voz de João
não se gastava somente em quem pretendia. Agora, escutava-a também com maior
atenção o dono do bar que, na surdina, se intrigava com o messianismo da dupla.
Discretamente, aproximou-se da mesa dos debatedores, atraído pelo verbo solto
de João, que continuava o discurso.
“A beleza é
a única coisa no mundo da qual os homens não esperam justificativa, meu amigo.
E por isso ela é a única justificativa possível para o que fazemos, a única que
resta absoluta, independente de causas externas. Por isso lutamos, irmão.
Porque é bela a nossa luta. Não só porque é moral fazê-lo — ou, como sei que és
arredio às afirmativas que reduzem a sutileza da ambiguidade, porque é imoral
não fazê-lo —, não só porque qualquer outro tipo de vida é falso, o que dá no
mesmo que ser imoral, e se resume em nosso dever ético. Mas porque a beleza,
como disse, é o universo das razões, de qualquer razão, que qualquer um poderia
demandar de nossa missão. Portanto, a justificativa de que fazemos o que
fazemos porque nos preocupamos com o futuro da humanidade, porque agir de outra
maneira seria atentar contra o manifesto da verdade, contra suas palavras vivas
— hoje, mais do que nunca —, só se basta nisto: servimos, antes de tudo,à força
que move o mundo, a história: a beleza. É a ordem harmônica das coisas, que faz
do homem a criatura mais maravilhosa que se pode encontrar, e a primeira dentre
todas elas, porque agente capaz de reconhecer e realizar a beleza. É a língua
exclusiva da boa natureza para nós. Da beleza resistente de hoje, que deve
também resistir a nosso ocaso, à beleza fulgurante do amanhã. Essa é minha
visão das coisas, como já te explanei uma vez, eu acho. O que fazer? Ele é quem
deve governar nossos passos. Nele, encontramos a trajetória dessa beleza já
toda delineada, só é preciso ler.”
O dono do bar já não se aguentava diante do espetáculo singular daquela tarde modorrenta. Inclinava-se a intervir na conversa para anunciar aos dois falantes como se lhes irmanava no assunto que ele, em anos de profissão, verificou ser bastante incomum no meio boêmio.
“Ele! Ele! Não abuse, João! Ele te legitima qualquer argumento! Ele é quem você trai ao propor esse comportamento desviante, afastando-se dos seus, dos companheiros de tanto tempo... Ok, acho que discordamos, enfim. Ele também é pra mim, em última instância, o ponto máximo mesmo, mas vieram tantos seguidores depois que contribuíram de alguma forma para engrandecer, intelectual e praticamente, a obra a que nos aferramos, João. Ele os aprovaria, tenho certeza. Sua morte não poderia ser, como não foi, o fim da mensagem que anima nossos esforços hoje, Joãozinho. Por isso devemos respeito à tradição que nos legou essa mensagem. Ele...”
“Com licença meus senhores”, finalmente interrompeu o dono do bar, “Mas não pude deixar de ouvir a conversa. Sou um homem religioso também, e fico muito feliz em ver que ainda há gente interessada em discutir e concertar os percalços da Igreja. São tempos difíceis para quem tem fé, não é? Mas com tanto empenho assim, sei que vamos superá-los, sim, vamos.”
Perplexo,
João tratou de absorver as palavras do recém-chegado com curiosidade.
“Desculpe
amigo, do que acha que estamos falando?”
A resposta
veio com o embaraço do interventor, que não esperava reação desse tipo, mas a
acolhida de quem é surpreendido por um velho amigo.
“Ora, vocês
estão conversando sobre Ele, Deus encarnado, Jesus. Não é?”
“Não”,
retrucou João, “Estamos falando de Marx.”
Filipe Novaes
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