terça-feira, 29 de julho de 2014

Misticismo político


pistantrofobia

[prefácio] apenas havia passado dois minutos de jogo e a bola já estava no gol do brasil à contragosto da copa das copas. [primeiríssimo ato] quando dei por mim, eu já estava atrás das grades, porque tudo aconteceu tão rapidamente que não tive tempo de olhar para o relógio, me debater, gritar ou até mesmo pedir socorro a alguém que pudesse estar passando pela minha rua naquela tarde de domingo, mas nada disso me foi permitido por culpa do tempo, do álcool, da adrenalina, da aceleração, por culpa da taxa temporal de variação da velocidade que se apressou demais e, pronto, um-dois-três-quatro homens fantasiados de cinza, bota e cassetete já tinham pisado no rabo do meu cachorro no quintal, arrombado a minha porta envernizada, derrubado a minha cerveja, invadido a minha casa e me levado embora sem eu saber se havia roubado alguém, agredido, matado ou talvez difamado, só que não tive nenhum tipo de informação, não tive tempo, não tive olhos, braços, pernas e o pior é que não tive nem o reflexo de desligar a televisão que naquele momento pessoal caótico fui interrompida de olhar a apoteose futebolística que estreava na minha frente (outro gol da alemanha em pleno jogo da holanda com brasil), mas nada disso estava no script ao meu alcance, nada, nada e mais nada, somente a voz grave me zombando de fadinha e me dizendo que eu tinha o direito de ficar calada porque tudo o que eu falasse poderia ser usado contra mim em um momento posterior, mas a única coisa que consegui dizer foi que eles poderiam ficar tranquilos, afinal, apesar da fama, eu não tinha poderes mágicos e a minha voz não tinha poder nenhum diante das suas fantasia. [segundo ato] fiquei isolada durante uma-duas-três-quatro horas ou talvez o que eu acredite ser o espaço de tempo que estava sem observar nem a sombra de alguém, trancada num cubículo de um metro e meio quadrado, onde parecia uma gaiola para animais ferozes, só que não poderia ser apenas isso, meus amigos: eu sou uma menina magra, nunca matei ninguém, então não sei porque alguém me prenderia como num zoológico e me colocaria às vistas de turistas que resolvesse passear naquelas férias de julho enquanto o país festeja o show da bola organizada por uma tal de fifa, mas mantive a incompreensão, a imobilidade que atava as minhas pernas e braços, até o momento que, subitamente, apareceu um homem fantasiado e, assim, a minha voz se manifestou, saindo melancolicamente da minha bile, subindo pelo meu tronco, passeando pelo esôfago seco e chegando à boca questionando: o que vocês estão fazendo comigo? [terceiro ato] eu era a fada de neverland, meus caros, e isso bastava para que eu fosse presa: a resposta do homem fantasiado deixou isso em clarividência, já que evidentemente meu nome está atrelado à indignação, à rebelião, à voz do povo, à cobrança e, no país-tropical-abençoado-por-deus-e-bonito-por-natureza e por bola na rede (afinal, quem não sonhou em ser um jogador de futebol?), eu deveria estar sempre calada, se possível deitada a sete palmos de terra, porque nada pode sonhar em abalar a estabilidade dos sorrisos, das alegrias compradas a dólar, dos brindes da cerveja holandesa heineken (mesmo durante o três a zero), só que, apesar dessa dita-duríssima ação, todas minhas indagações não desvendavam a proposição inicial: se eu estava sentada no sofá assistindo televisão, por que diabos agora eu estava presa? [posfácio] apesar do país ser laico mas regido pelos cristão, eu estou diante de governantes médiuns, que jogam búzios, tarôs, bingo e bilhar, utilizam bolas de cristal, escrevem memórias do que ainda não viveram e, sobretudo, utilizam forças místicas (e por que não ocultas, né) para prever o futuro: eu estava presa por precaução, meus caros, pois meu nome, meu histórico e a minha indignação é lastro de destruição, é potencial de periculosidade, não estou do lado certo da luta, estou do outro lado da rua, e, portanto, rasguem a constituição, mandem um abraço pros direitos humanos e que se dane um peter pan sem sininho: cortem-lhe a cabeça, ordenou  imediatamente a rainha de copas (ou da copa?) antes mesmo sequer do primeiro gol da holanda. 

Gustavo Clevelares

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