segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Presépio


Começaram a cavar um precipício entre nós
                [mais do que nunca o wifi cria ilhas no lugar de redes]
e o buraco é alimentado agora por nossas próprias mãos
se servindo de memes e de “lacração”

Urge ri da desgraça
saber tudo é imperatório
ser inteligente e engraçado soa mais curtível
do que abrir a cortina
do que combater a confusão

Cada qual do seu lado do precipício
dá ao mundo uma mostra
do quão eficaz é manusear o medo
 o desamparo, a afetação

Viva o mal entendido!
Alucinação acima de tudo!
Não importa o quanto isso custe
é vital o gozo da presunção

Das mãos e bocas cheias de goiabas
                             [e laranjas]
as respostas já vem prontas
Control C - Control C - Control C
Tudo está sob controle – indicam em gestos e sinais

enquanto esbanjam sorrisos e cochicham:
“eles já não enxergam as pautas, não escreverão nada mais”
e gritam aos quatro cantos
                    [e contas e contos]
que serão visíveis as imprescindíveis mudanças

Nesse grande acordo nacional
nossas ilhas e mínimos salários e barulhos
                        [curtida não se mede em hertz ou decibéis]
casam bem com os máximos privilégios dos que circulam no tribunal
julgando quem merece e quem não merece
ser cidadão de bem ou do mal

Renata Rosa


Um comentário:

Gabriella disse...

Nossa, muito bom!
Gostei bastante, principalmente da forma como foi exposto.
Presépio, precipício... wifi, memes, lacração. Do arcaico ao tecnológico, algo cai nesse espaço pronunciado: o próprio laço. É curioso como o texto apresenta quebras rítmicas a cada nova estrofe, que de certo modo bem caracterizam, senão a atualidade em si, os restos de alguma subjetivação que lhe é própria. Essa "computadorização"/mecanização da vida, talvez uma nova "Laranja Mecânica", com seu imperativo de ajustamento, onde prevalece, acima de qualquer ordem, um ordenamento de privilégios.
"Viva o mal entendido!
Alucinação acima de tudo!
Não importa o quanto isso custe
é vital o gozo da presunção"
Diante do medo, duas forças não explicitamente enunciadas, mas cuja inferência se faz facilmente no contexto atual, circunscrevendo o mesmo buraco; este que, cedo ou tarde, vamos todos pagar o preço da escavação - não sei até que ponto com a mesma moeda.
Belíssimo poema! Crítico e certeiro, questiona as ilhas que estamos nos tornando, vazios continentais, os quais coletivamente parecem levar cada um ao mesmo buraco, devido justamente a falta de coletividade.