sábado, 9 de março de 2024

CADERNOS DE GLAUBER E GUIMARÃES ROSA: APROXIMAÇÕES, de Marília Rothier


O conjunto das obras literárias e visuais — legitimadas e circulantes entre o público consumidor — integra, certamente, parte importante do patrimônio de uma cultura. No entanto, esses bens arrolados nos levantamentos imagético-bibliográficos correspondem à parte visível de um acervo muito mais amplo e complexo (responsável, em maior ou menor escala, pela própria existência das obras), acervo apenas sugerido nas fronteiras incertas dos arquivos privados. O fundamento da afirmativa é óbvio: todo produto artístico, ao constituir-se, movimenta um enorme circuito de referências, tensamente articuladas, para consolidar, como novidade digna de divulgação, apenas um número reduzido de signos. Por sua vez, esses signos, constelados em objeto-arte, retiram a intensidade de seu brilho das marcas pouco nítidas, inscritas neles, durante o processo de construção.

Visto da perspectiva descrita, o patrimônio ganha um excedente de valor e nos desafia com sua incalculada riqueza espectral. Encontramo-nos como que diante daquele personagem rosiano de “O recado do morro”, o Coletor, que, fazia crescer suas posses em fazendas e gado, à medida que ia registrando as cifras e somando-as, alucinadamente, nos muros da igreja do arraial. Quando a visada crítica sobre uma obra atravessa-a para ir rastrear as etapas de sua construção, nos proto-registros de seus planos, rascunhos e versões abandonadas, a tarefa empreendida assemelha-se aos cálculos do Coletor. Não lida com quantidades materiais, tesouros palpáveis, mas com um excesso significante fluido, que só reverte em riqueza (nos termos de Oswald de Andrade), no momento em que se deixa prender nas redes do inventário. Num momento, como este, de reunião de certo modo festiva, como foi o caso da missa antecedendo à Congada, cenário das contas desvairadas do Coletor, propõe-se um exame dessa experiência desconcertante mas rentável de compulsar fragmentos do trabalho artístico em meio à documentação de acervos pessoais. É um modo de fazer inventário conjurando fantasmas. Operação inútil, do ponto de vista pragmático, embora altamente lucrativa se o objetivo é duvidar da solidez dos haveres resguardados e buscar outros valores possíveis como lastro da arte-pensamento.

As amostras escolhidas para o exame proposto, no arquivo do escritor Guimarães Rosa, são três cadernos, guardados no Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, em cópia xerox, sem que haja indicação do paradeiro dos originais. Tais cadernos, indicados pelos números 2301, 2303 e 2304, correspondem, sem dúvida, a anotações de estudo, pois alternam citações com registros de palavras e frases, cunhadas pelo autor-leitor, certamente ao longo de pesquisas sobre temas de seu interesse. Pela quantidade e extensão dos trechos citados e pela insistência no experimento com a cunhagem de expressões desautomatizadoras do corriqueiro da linguagem, entende-se que o estudioso operava um levantamento consistente de material informativo e lingüístico que pudesse fundamentar seu trabalho fabulador. Como se, diante do patrimônio herdado, o escritor precisasse reservar uma cota particular para seu uso. Reduplicava, então, em cadernos manuscritos, parcelas especialmente preciosas, garimpadas na riqueza de suas
estantes.

A atividade manual de copiar, exigindo atenção e paciência, certamente o predispunha aos experimentos lingüísticos, imaginados durante a operação mecânica da escrita. Aquele que rastreia um saber, colhido na distância dos sertões, demonstra, através de seus cadernos, uma atitude alternativa à do cientista. Não é o acerto da informação que lhe interessa, mas uma transposição da mesma para outro ponto de vista: o da experiência cotidiana, que se distingue da observação eventual. Enquanto copista  e copista reflexivo  o escritor comporta-se como o ouvinte de estórias, contadas e aprendidas durante o trabalho. A arte narrativa, preparada no preenchimento gradativo das páginas dos cadernos, situa-se em lugar especial, entre o conhecimento formalizado da biblioteca e a tradição oral. Para constituir temário, léxico e sintaxe, apropriados ao mundo concreto (sensorial-afetivo) da arte, é que servem os cadernos de Guimarães Rosa. Por isso, com certeza, preparando suas próprias viagens por trilhas sertanejas ou organizando o material nelas coletado, foi que o escritor foi enchendo páginas e páginas. Assim aprimorava seu método de inventariar os bens de uma cultura em processo de esquecimento, ao mesmo tempo que inventava instrumentos de escrita capazes de manter essa cultura viva, inserindo-a no patrimônio valorizado pelo presente.

Em versão inicial de roteiro, nunca filmado, sobre “Testamento e morte de Dom Quixote”, o manuscrito de Glauber Rocha enumera animais (e partes do corpo de animais), pessoas, paisagens e edifícios (“Moinho de vento / Planície espanhola parada / Travelling aéreo da planície / Touro / Travelling aéreo sobre o palácio / Quixote / Mãos na pele do touro / No chifre do touro”) para situar a personagem, inserindo os quadros desconexos no contexto dos conflitos históricos (“As cabras / Bois / Carneiros / Cobras / Deitado e as mulheres nuas por cima dele enquanto faz os comentários / O pastor com uma camponesa dizendo um poema espanhol / Travelling que desce e sobe falando de Roma e sua decadência”). Enumerações desse tipo repetem-se em versões variadas, como que buscando um ritmo para a sucessão das imagens, que devem contar a estória. No caderno da marca Theme book, espiral, de capa vermelha  guardado, hoje, no acervo do Tempo Glauber —, o cineasta experimenta, através de listas de imagens possíveis, uma atualização do Quixote, onde o foco narrativo evidencie sua perspectiva latino-americana. Figuras estranhas e familiares devem evocar o fascínio do cavaleiro andante, sempre equivocado, em confronto com a violência do imperialismo e da Igreja inquisitorial. A anotação de elementos desencadeadores de efeito dramático, entre esboços de outros roteiros (“A serpente de sete cabeças”, “América nuestra”), projetos empresariais e contas domésticas, conserva um momento precioso do processo de produção cinematográfica, aquele em que a relação de possibilidades múltiplas, anterior ao trabalho seletivo, revela a complexidade da construção estética. É preciso enorme amplitude de dados para que o recorte e articulação final tenham consistência.

Enquanto a caligrafia nervosa de Glauber ocupa as páginas de cadernos estrangeiros, durante suas viagens em demanda de condições técnicas e políticas para condensar numa linguagem cinematográfica revolucionária a força das diferenças culturais do Terceiro Mundo, os estudos metódicos de Guimarães Rosa também se transcreveram em sua letra redonda, caprichada, indicando um processo lento e rigorosamente planejado de construção literária, desenvolvido, possivelmente dos meados dos anos quarenta até a redação dos grandes livros de 1956. Esses foram os anos de formação profissional do escritor-pesquisador das tradições épicas que, apropriadas em contraponto às experiências da vanguarda, resultaram num contradiscurso crítico aos modelos modernizadores à ocidental.

Se os bichos, enumerados no rascunho de um futuro “Testamento e morte de Dom Quixote”, só têm valor alegórico (valor que se explicita na versão final do roteiro de O leão de sete cabeças: “Eu a vi sair do mar, uma besta com dez testas e dois chifres, e em cada chifre trazia um diadema... e em cada uma das cabeças estavam escritas palavras de blasfêmia... e a besta parecia uma pantera... Tinha patas como um urso e uma goela de leão...”), as listas de animais dos cadernos de estudo de Guimarães Rosa registram dados práticos, específicos e detalhados, sem nenhuma dimensão simbólica. Interessa inventariar as “cores e sinais de cavalos” (“cor de canela: alazão; cor de ouro desmaiado / cor amarelo torrado: baio”) bem como “de bois” (“vinagre: castanho claro, tirante a rubro”) para alimentar a ficção menos com informações naturalistas do que com o saber dos vaqueiros, daqueles cujo conhecimento é matizado da percepção e afeto colhidos na lida cotidiana. No entanto, de perspectivas opostas, os dois inventariantes-artistas acabam alcançando um efeito equivalente. Concedendo-se largo tempo para a pesquisa, Rosa reúne abundantes referências bibliográficas e observações etnográficas; experimenta combinar elementos das listas de diversas formas, transfere, com ligeiras mudanças, as enumerações dos cadernos para folhas datilografadas, onde as indicações de aproveitamento literário se inscrevem nas margens. Todo esse procedimento sistemático, porém, quando transfigurado em poesia, subverte a matriz científica e instaura o ponto de vista da intuição e até, de preferência, o da chamada irracionalidade. A estória se narra como que através dos olhos dos bichos. Já, nos roteiros de Glauber, a força épica, que se contrapõe à racionalidade moderna, é a da magia, da solenidade dos ritos apropriados das culturas selvagens.

Este exercício tateante de aproximação entre as poéticas de Guimarães Rosa e Glauber Rocha, a partir do exame de alguns de seus numerosos cadernos de notas, tem como propósito colocar o inevitável voyerismo do pesquisador de arquivos a serviço do desvendamento dos processos de inscrição do corpo (com suas sensações e impulsos, singulares e momentâneos) na produção da obra  obra que se faz da matéria coletiva, codificada, genérica da cultura. A escolha dos dois artistas se deve, para além da razão óbvia de que seus arquivos pessoais são acessíveis, à afinidade entre os projetos artísticos de ambos (afinidade explícita em vários textos de Glauber, que se empenhou na tarefa de fazer-se herdeiro do legado rosiano), a despeito das diferenças marcantes de temperamento e métodos de trabalho. A escolha de cadernos (ou cadernetas), de preferência a outros suportes de escrita, é que estes, por seu próprio formato, têm de ser manuscritos. E a caligrafia é registro imediato dos movimentos da mão, conservando, na marca das emoções experimentadas (urgência ou calma, empenho ou descaso, simpatia, irritação ou temor diante do assunto em pauta), uma nuance particular no emprego dos signos. Os cadernos manuscritos tomam-se, então, como o lugar onde a autoria começa a configurar-se. Aí, os inventários  estratégias de apoio da memória , sejam cópia de leituras, anotação de observações, registro de imaginação e lembrança, recebem mesmo involuntariamente um traço do instante vivido.

Grande parte dos três cadernos de Rosa, em exame, é ocupada por cópias de trechos lidos pelo escritor. Seu interesse se dirige aos relatos dos viajantes, onde se encontram descritas, com o relevo da curiosidade, a topografia, a flora, a fauna e a população dos sertões. Certamente, preparando-se para suas próprias viagens de pesquisa (a uma fazenda em Paraopeba em 1945, ao Pantanal em 1947, à Bahia, para assistir um encontro de vaqueiros, e pelo interior de Minas, acompanhando uma boiada, ambas em 1952), o escritor colecionava o que lhe podia ser útil, dentre os registros de seus antecessores do século XIX  naturalistas ou exploradores estrangeiros, como Saint Hilaire, Spix e Martius e James Wells, ou ainda brasileiros cultos, como Virgílio Melo Franco cuja carreira de juiz obrigava a longas travessias. Mas as fontes de Rosa são variadas, incluem desde a literatura (Alphonsus de Guimaraens e Afonso Arinos) até os textos de divulgação: este é o caso do folheto da Estrada de Ferro Central do Brasil, Vias brasileiras de comunicação, preparado em 1928 por Max Vasconcellos. Os longos inventários resultantes de tais estudos mostram que a etapa inicial da construção literária rosiana é a tomada de conhecimento, tão minuciosa quanto possível, da matéria de onde surgirá a narração. Duas das novelas de Corpo de baile estruturam-se na forma de ensaios ficcionais sobre a demanda da poesia (“Cara-de-Bronze”) e o “formar-se” de uma canção (“O recado do morro”). Naquela, o vaqueiro Grivo, mandado em missão de rastreador da paisagem dos caminhos sertanejos, relata o cumprimento de sua tarefa, entre os comentários de seus pares; nesta, um naturalista alemão, Seu Alquiste ou Olquiste, acompanhado de guias locais, sai em excursão de estudos (“a tudo quanto enxergava dava um mesmo e engraçado valor: fosse uma pedrinha, uma pedra, um cipó, uma terra de barranco, um passarinho atoa, uma moita de carrapicho, um ninhol de vespos.”), cruzando-se seu trajeto com os deslocamentos de excêntricos loucos e de um poeta popular igualmente empenhados na aquisição e divulgação do conhecimento. Enquanto o cientista observa, experimenta e anota, os doidinhos ouvem a voz profética do Morro da Garça. Dos ecos desta é que se faz a canção. 

No segundo caderno de Glauber Rocha (caderno de marca Conti, nº 830, de capa 
vermelha e folhas grampeadas, também pertencente ao Tempo Glauber), escolhido para esta reflexão, há referência às leituras necessárias ao desenvolvimento dos projetos. Numa espécie de anotação esporádica de diário, inserida entre argumentos e roteiros, encontra-se, no dia 2 de janeiro de 1974: “Li Ciropédia”. Trata-se da obra de Xenofonte, personagem central de “O nascimento dos deuses”, roteiro encomendado pela RAI, a empresa italiana de televisão. Na evidente velocidade da escrita não há tempo para citações de autores antigos nem modernos. A conseqüência dos estudos só se apresenta já transfigurada pela reflexão imaginativa do cineasta, decididamente avesso ao filme histórico de aparência documental, mas decidido a uma apropriação renovadora das obras do passado, interpretando-as de acordo com a conjuntura presente. Num dos primeiros esboços de roteirização das campanhas bélicas narradas em Anábasis e Ciropédia, encontra-se o destaque: “O texto de Xenofonte-Engels explica a formação do Estado Grego”.

Como atestam os dois cadernos examinados, uma enorme dispersão caracterizou a 
atividade de Glauber, entre 1969 e 1975. Há rascunhos referentes a projetos de filme dos mais variados assuntos: o Quixote, as guerras africanas de independência, a máfia siciliana, uma versão livre de A tempestade de Shakespeare e “O nascimento dos deuses”, além de alguns tratamentos de “América nuestra”. A maior parte dos registros desses trabalhos nunca transpôs os limites do caderno. Ficaram nas páginas manuscritas como excesso de informação, descartada como dado independente mas capaz de fertilizar as obras efetivamente desenvolvidas e levadas a público. A proliferação de fábulas roteirizáveis corresponde, no arquivo de Glauber, à feição perdulária dos cadernos de Guimarães Rosa, onde se grafam enormes levantamentos sobre as plantas do cerrado, a arquitetura colonial mineira, um trajeto de ferrovia e ainda se insinuam citações de Toynbee sobre o helenismo, notas referentes a índios no vale do Jequitinhonha e nada menos que expressões na língua Nahuatl do México. Uma simples busca nos arquivos de escritores mostra que se reúne uma enciclopédia para daí extrair um pequeno texto poético. 

Tal enciclopédia babélica, contida nos cadernos, vai sendo filtrada para compor 
cada obra, conforme critérios precisos de escolha e justaposição. Esse procedimento preserva as ruínas de uma sabedoria popular e de uma noção comunitária de rigor estético em confronto com o desejo singularizante de autoria. O corpo manipula o código para roubar-lhe o efeito de consenso. É isso que torna inequívoca a assinatura do texto enquanto garante a permanência produtiva de sua legibilidade, na cadeia da tradição. Os estudos de Guimarães Rosa indicam exatamente o lugar de confronto entre a herança recebida e o impulso pessoal de empregá-la. É o ponto marcado pela sigla m%. Distribuídas desigualmente pelas páginas dos cadernos, as expressões marcadas pela sigla não indicam nenhuma pretensão de inventividade autônoma. Ao contrário, resultam da aproximação inusitada — em grau chocante ou sutil  entre duas ou mais unidades lingüísticas ou fragmentos de narrativa: “perciência”, “os fatos corriam como água”, “cabisduro”, “de leite e de raça”. Organizadas em sintaxe, essas expressões cunhadas na fronteira dos cânones, funcionam como impressões digitais identificadoras. No caso de Guimarães Rosa, é o eco ardilosamente recuperado da oralidade sertaneja que perturba a estabilidade da escritura. Na produção de Glauber, o conflito de fronteira, embora guarde equivalência com o caso rosiano, surge mais agressivo e irregular. Se a trilha sonora de seus filmes sempre inclui os tambores africanos, não é apenas com a sinfonia ou a dicção teatral das personagens que se dá o choque. A cacofonia da metrópole cosmopolita também se faz ouvir, num procedimento de dispersão do foco de interesse, presente desde os diálogos do roteiro: “Quixote sentado com o véu de noiva na mão. / Explodem produtos de publicidade e anúncios de televisão e de filmes americanos à música de ‘Glória, glória, aleluia’”

O movimento construtor da obra se define, nos cadernos de Guimarães Rosa, pelo 
gesto de concentrar o trabalho inventariante na matéria regional: as cidades velhas e os cerrados do interior. As listas da flora, fauna, topografia, arquitetura e urbanismo do sertão é que se tornam o lugar fértil de inserção dos signos da diferença cosmopolita, anteriormente arquivados em outros suportes. O sinal m%, indicador da combinatória dos componentes das listas, como que vivifica, põe em movimento os registros até então estáticos. Pode-se ensaiar uma analogia entre o papel atribuído a Pedro Orósio, protagonista de “O recado do morro”, e o sinal m% usado nos manuscritos. Pedro, um simples enxadeiro geralista, não pesquisa a natureza nem tem poderes mágicos de ouvir a voz da pedra, mas testemunha todas as vezes que se transmite algum fragmento de saber; assim, no desfecho da estória, é ele que performa a canção — sabedoria condensada — que se produz. Também o sinal m%, germe da apropriação autoral do legado coletivo, identifica-se com a potência performática do conhecimento viabilizado pela arte. Trata-se de um tipo de engendramento estético que parte de uma memória local, de ancestralidade familiar, para desautomatizá-la em confronto com o externo, o exótico, o vertiginoso da distância cultural. Já, nos cadernos de Glauber Rocha, o procedimento toma direção contrária: os rascunhos de roteiro compõem-se de inventários virtuais das bibliotecas, tradições e notícias de oriente a ocidente — Xenofonte, ritos africanos, Shakespeare, conflitos mafiosos, Cervantes, guerras anti-coloniais. Essa variedade desconcertante é alinhavada, por sua vez, por uma espécie de núcleo de referências domésticas brasileiras, lugar da performance atualizadora do acervo mundial apropriado. Observando o funcionamento desses processos equivalentes mas inversos, percebe-se que, enquanto Rosa, enfrenta a serialidade padronizada, que reverte no lucro da significação óbvia e imediata, confrontando-a com a repetição vagarosa mas personalizada do artesanato, Glauber desencadeia com mais violência a mesma operação crítica, sem recorrer ao ritmo lento do trabalho manual. Sua estratégia consiste em romper a coerência da história antiga com o raciocínio desconstrutor do presente; daí o emprego de Marx e Engels para apropriar-se da lógica imperialista da Ciropédia de Xenofonte ou de A tempestade de Shakespeare. Além disso, o registro dos argumentos, roteiros e reflexões teórico-políticas dividem as páginas dos cadernos com as contas, os desabafos e os nomes das amadas. Essa convivência insólita é que inviabiliza o resultado eficiente do produto da indústria cinematográfica. A presença inescapável do corpo, que consome, sofre e deseja, deixa sua impressão identificadora na letra gravada — letra que, por sua vez, também resulta na sabedoria poética da canção.


Marília Rothier Cardoso

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