terça-feira, 9 de abril de 2024

Derradeiros ou exordiais


Ele gostava de colecionar marcadores de página. Procurava os mais jeitosos. Os que anunciassem bons livros, desde que não fossem meras propagandas. Os que mostrassem pinturas ou gravuras admiráveis. Aqueles com fotos de bandas dos anos 70, 80 ou 90. Não fazem mais bandas como antigamente.
Gostava do tradicional, classicão. Retangular, não muito estreito nem largo demais, desde que ficasse levemente maior que os 23 cm de altura padrão dos livros.
Essa mania, costume, simpatia ou cacoete surgiu quando percebeu que não suportava o fato de não saber quando (e principalmente como) voltaria àquela leitura. Não exatamente a ler o livro em si, mas à leitura. Aquele momento em que sua cabeça se preparou pelo que veio antes e se instigou com o que viria pela frente. Quando sua mente fica compenetrada, ensimesmada, para chegar naquele ponto. E o marcador o ajudava a atingir esse momento. De maneira aparentemente irrelevante, o remetia àquela leitura que tinha deixado para trás. E era por isso que não poderia ser qualquer um.
E obviamente o seu capricho não se resumia ao marcador. Ele não deixava que o estampido seco da capa batendo nas páginas se fizesse ouvir antes de acabar o capítulo. Se estivesse no clímax da história, só fechava quando o frenesi causado pelo mesmo acabasse. Se estava para acabar, não economizava, lia até o final, sem pressa de chegar ao seu compromisso. Afinal, também estava em um afazer importante.
E nessa de não parar até que estivesse convencido que poderia deixar seu companheiro de celulose e papelão descansar em sua mochila cinza, zanzava pela plataforma do metrô da Central. Sentava nos bancos, encostava nas pilastras, apoiava no parapeito empoeirado. Só não podia fechar sem mais nem menos.
Se pudesse, leria todos os livros em uma única sentada em seu sofá ou na poltrona de alguma livraria, aquecida pelo estranho que a ocupou antes da sua chegada.
E, por isso, precisava do marcador, um bom marcador. Sabia que era uma ilusão querer voltar ao mesmo momento, mas ajudava. Era um engodo que tinha afinidade.
A realidade é que sabemos que nunca vamos voltar àquele exato momento. Não dá pra sentir da mesma forma. Reagir da mesma forma. Pensar da mesma forma. Ler da mesma forma. Livros, pessoas, instantes. É impossível fazê-lo depois de passados outros alguéns, tempos e vivências.
E ele preferia pensar que todos os instantes são os derradeiros com algo ou alguém. Mas sabia que, raciocinando um pouco, esses mesmos últimos momentos poderiam ser, na verdade, os exordiais, primeiros, iniciais.
Às vezes pensamos que esgotamos tudo que poderíamos viver com alguém ou em certo contexto. É bom viver intensamente como se aqueles momentos fossem os últimos, mas é incrível pensar que podem, na verdade, ser o início de uma jornada com fim indefinido.
E tudo se torna uma obra de arte. No final das contas, podemos revisitar certos momentos, de longe, ao lembrar com carinho e vibrar pela pessoa, ou de perto, ao conferir como a pessoa está, perguntar por ela a algum conhecido. E saber ser feliz com isso. Aceitar que outros amigos, companheiros, namorados, irmãos virão para completar essa obra que você ajudou a construir e que ajudou a te construir também.
Como um livro, que se torna obra de arte pelos seus leitores, estes, na contramão, também viram e propagam arte ao se deleitarem com seus ditos.
E pensando nisso tudo, lembrou de algo que lhe contaram ou que leu em algum lugar.
Um relato sofrido, mas carinhoso, que representava o que sentia ao lembrar de momentos que eram certamente (será?) derradeiros.
No início da década de 70, o mineiro Juscelino Kubitschek, 21° presidente do Brasil, à época impedido pelo governo militar de ir a Brasília, foi anonimamente à "sua" cidade como um artista que vai à exposição de suas obras travestido de mero mortal.
E chorou.
Ao jornal que noticiou o acontecimento, contou:
"Não que eu quisesse ser reconhecido, ao contrário, fico muito melhor assim. Mas não deixei de me sentir como em uma cidade-fantasma, ou melhor, como um fantasma numa cidade real. Gostei de ver como Brasília está bonita, foi uma surpresa. Tenho enfrentado dissabores e sofrimentos. Mas ao deixar a capital em que não pisava há tanto tempo, cercou meu sentimento de paz e tranquilidade. Há em todos nós o sentimento bíblico que vez por outra emerge à flor da pele: eu me senti como um semeador que, do alto de um penhasco, observa a seara indestrutível. Muita coisa se fez depois de mim, meus sucessores deram continuidade à obra iniciada."


Eduardo Moraes

4 comentários:

Ana Iantorno disse...

Belo texto!

Ana Iantorno disse...

Belo texto!

Anônimo disse...

Uma das qualidades do bom escritor é ser bom observador. Eduardo é um bom exemplo.
Bem-vindo a este espaço!

Anônimo disse...

Que texto lindo!