sexta-feira, 26 de abril de 2019

A tarrafa de livros, conto de Andréa Carvalho


Eu não descanso à noite. Preciso ficar acordado, em alerta, atento a todos os perigos que a escuridão pode propiciar. Todos os dias, ao anoitecer, procuro um lugar seguro para não dormir. Eu moro nas ruas. Antes que você se afaste de mim, deixa eu lhe dizer que, ao contrário do que muitos pensam, cada um leva esse tipo de vida por um motivo diferente. Eu não sou bandido, não uso drogas, não sou alcoólatra, não faço mal a ninguém. Sou pescador e sou como todos os meus companheiros de calçada, um cidadão com nome e biografia.

Deixei o meu rio para trás e caminhei por 18 dias para mergulhar em outro Rio, o de Janeiro. Contudo, este aqui me recebeu com tanta dureza quanto o de lá, que me expulsou com a sua aridez. As economias para financiar a minha jornada acabaram e eu não consegui trabalho, roubaram meus documentos, fiquei doente, acreditei em falsas promessas, me perdi, literalmente, me reencontrei absolutamente e consegui sobreviver.

Estou acostumado com a incerteza do amanhã e com o temperamento da natureza. Espectador de lindas madrugadas de boa pesca, já adormeci sob um cobertor de estrelas, mas também rezei para acalmar um temporal. Testemunhei alvoreceres dourados, mas já fervi dentro de um caldeirão refletido no espelho d’água. Talvez fosse meu preparo para encarar a batalha diária para me manter vivo nas ruas. Ancorado no meio do deserto de águas rasas em silêncio, enquanto esperava um escasso cardume de piabas encontrar a minha rede, eu lia histórias do mundo, poesias, contos, romances, atlas e até dicionários de idiomas estrangeiros. A biblioteca da vila era tão importante quanto o mercadinho, pois era de lá que eu conseguia alimento para a minha alma e me nutria rumo ao êxodo. Posso dizer que a minha viagem começou nos livros.

Na cidade grande, sofri preconceito pela minha origem humilde e pela falta de um diploma. No entanto, minha forte intuição e alguma sabedoria natural me fizeram ir ao encontro de uma inusitada forma de sobrevivência. Meu olhar de leitor assíduo, sentindo-se em abstinência, começou a buscar nos lixos e descartes a literatura desprezada por alguns, mas preciosa para outros. Comecei a recolher livros usados — num primeiro momento, para consumo próprio — para revendê-los nas calçadas, expostos sobre a minha inseparável rede de pesca, que funcionava como travesseiro, cobertor, assento ou simplesmente amuleto da sorte.

As doações também começaram a chegar, assim como as pistas de onde recolher mais tesouros abandonados. Precisei até de um carrinho de mão para circular com o que passei a chamar de barcoteca ambulante. Fiz uma proa colorida com recortes de revistas, uma cabine de garrafas plásticas para proteger os livros, e escrevi na popa com as maiores letras das manchetes de jornal: Barcoteca do Beto.

Jogava a minha tarrafa de livros onde o terreno parecia mais promissor.As capas coloridas me lembravam da época em que diversas espécies diferentes de peixes emergiam na trama que eu mesmo teci. Porém, quando as vendas baixavam demais, navegava para outro porto, assim como fazia nas épocas de baixa pescaria. Alguns clientes eram simpáticos, pagavam além do valor, outros davam uns trocados mesmo quando não encontravam nada de interessante e elogiavam meu trabalho. Todavia, sabia que também estava cercado de olhares de intolerância, repulsa e desprezo. Ouvi palavras de ódio e ameaças. Resisti algumas vezes, discuti em outras, mas decidi que sempre que me sentisse indesejado, recolheria a tarrafa, moveria as rodinhas da barcoteca e iria desbravar outros mares, pois os livros precisam estar onde são bem-vindos.

Certa vez, fiz parada em frente a uma linda construção colonial, local de passagem de muitos estudantes uniformizados acompanhados de seus professores. O lugar, além de cercado de verde, parecia-me ideal para alavancar as vendas das coleções de gibis e histórias infantis encalhadas há um tempo no meu acervo. A clientela de leitores deslanchou. Pesquisadores, universitários e quase todos os visitantes do local davam uma paradinha na minha rede, antes de entrar no magnífico quintal do paço. Por um bom tempo, eu tive a honra de ser conhecido como o livreiro do Museu Nacional. Às segundas-feiras, como não havia visitações, buscava mais livros para atender aos meus pequenos leitores. Durante o dia, era protegido pela sombra de uma árvore centenária à entrada da propriedade, de frente para um gramado verde que me enchia de esperanças. Minha estada por lá foi a melhor de todas. Consegui até um refúgio seguro e silencioso nos fundos do palácio — frequentado somente pelos animais noturnos — para poder finalmente cochilar um pouco durante a noite, tendo como vizinhança um jardim zoológico.

Numa madrugada, como de costume, despertei do sono leve de quem consegue adormecer na rua e dediquei um tempo à vigilância noturna da área. Não ouvi o som das sementes espalhadas pelos morcegos frugívoros caírem pelas folhagens. A conhecida coruja estava agitada no galho como cachorro dando sinal de invasor na casa dos donos e alguns gatos ariscos cruzavam as divisórias de plantas como se partissem em debandada. Levantei-me voltado para o habitual panorama da fachada traseira do museu e estremeci. A janela mais baixa do lado esquerdo estava completamente vermelha e fumegante. Era fogo e eu não sabia o que fazer. Em poucos instantes, a janela ao lado também começou a queimar.

Corri até o telefone público mais próximo e tentei falar com os bombeiros que, desconfiados, provavelmente pensaram se tratar de um trote, afinal, quem seria o sujeito que pedia socorro sem ter sequer um endereço para informar nos seus dados de identificação... Eu me desesperei a gritar “Fogo! Fogo!”como se fosse o único habitante de um planeta oco. Foi quando tive a ideia de lançar a maior pedra que consegui na janela de uma residência próxima. Um homem acendeu as luzes da casa e esbravejou:

— Vou chamar a polícia, vagabundo!

Respondi prontamente aprovando o pedido numa súplica desesperada:

— Chame rápido porque o Museu Nacional está pegando fogo!

Ele, no entanto, fechou a janela e apagou a luz, enquanto o incêndio do outro lado da rua tomava,a cada precioso minuto, a vida do meu único porto seguro.

Aguardei estático por cerca de meia hora com os olhos vidrados na transformação do palácio iluminado em uma gigantesca tocha rúbea, ao som do tilintar cruel das chamas consumindo tudo o que podiam. Até que a sirene dos bombeiros me despertou do estado de inércia para o choro compulsivo de quem perde o leme mais uma vez.

Andréa Carvalho

2 comentários:

Clarisse Pacheco disse...

Comovente, Andréa, de um lirismo cativante.

Tania Maria Alves disse...

Parabéns! Belíssimo conto!