sexta-feira, 12 de abril de 2019

Na era da boçalidade, seja gay de si mesmo


O vocabulário LGBT (e Q, I, A, S, P, etc.) é uma generosa máquina de descrever gêneros - recusa as chatices dicotômicas e os bocejos binários com alfabetos e alfabetos de possibilidades, orientações, desejos, visibilidades, autoestimas. Se há um desejo solitário por aí, órfão de uma letra pra chamar de sua, dicionarizaremos mais uma expressão de identidade, e outra, e outra, até que existam tantas expressões quanto há pessoas para reivindicá-las, ou até mais, para os ambiciosos que não admitem um único rótulo. No limite, serão tantas as expressões que nenhuma delas significará coisa alguma, e as pessoas poderão transpirar sua sexualidade, sua visibilidade, sem as obrigações de uma rigidez rotulada.

Ainda assim, a palavra protagonista do dialeto LGBT não poderia ser mais transparente na sua afronta diária por dignidade: "orgulho". Essa é a palavra que lidera as paradas de diversidade ao redor do mundo, que transforma constantemente vulnerabilidades em visibilidades, e não sem razão. Não há nada mais subversivo, mais ideológico, nada mais político, do que uma afirmação de autoestima, de presença, de vaidosa identidade, tudo aquilo que o orgulho consegue inflamar na temperatura de indignações cotidianas. O sorriso orgulhoso é um combustível de derrotar intolerâncias, porque recusa o silêncio envergonhado de quem aceita a subcidadania do preconceito.

Mas orgulho de quê? Rigorosamente falando, não há nenhum mérito em ser gay, lésbica, transexual, bissexual, como não há mérito em ser alto, baixo, ter cabelo castanho, olhos verdes, ser brasileiro, essas várias contingências inescapáveis da vida que antecedem nosso arbítrio. Orgulho é filho da conquista, do trabalho árduo, da realização criativa, da ideia deslumbrante, é o primogênito de um ato bem sucedido que ecoa originalidade. Ser LGBT não é um mérito, claro, mas sê-lo festivamente, alegremente, até espalhafatosamente, quando muitos consideram isso um demérito moral, é uma virtude de coragem que expulsa do armário o afeto sem medo de existir, e que caminha sorridente e de mãos dadas pela trilha de olhares indignados. Ser gay de si mesmo, essa é a meritocracia que a diversidade comemora.

E na falta de uma, três razões substantivas para desavergonhar o orgulho: em primeiro lugar, existe um desembaraço hedonista na cultura LGBT que é francamente deslumbrante. A sensualidade, o contato físico, o erotismo, tudo isso anima o imaginário coletivo gay sem aquele constante pedido de desculpas de pudor que geralmente impede o sexo de participar da normalidade. É um grupo que não tem receio do prazer, não tem medo da intensidade, antes convoca-os a participar da vida como legítimos protagonistas que são, completamente desvinculados daquela culpa infantil que desumaniza nossa melhor natureza. Mas não é só na chave erótica que essa promessa de juventude se realiza: a música alta, as coreografias, a consciência que reclama outras experiências de realidade, a multidão, a musculatura hipertrofiando uma obrigação de beleza, tudo isso se mistura nesse delicioso projeto de existir e desfrutar, uma alegria que se pretende colorida até o cansaço da velhice.

O humor, frequentemente ácido, é outro elemento que aproxima amizades e afetos nos grupinhos de irreverência gay, um tipo de cordialidade que exige o riso como contrapartida da intimidade. Tirar sarro do outro, na cara do outro, com o assentimento do outro, e esperar do outro o mesmo tipo de desacato, no ritual de aclamação da gargalhada geral, é um testemunho transparente de amizade e confidência. Nesse sentido, caminhar tranquilamente na fronteira do gênero facilita muito as coisas: subverter as expectativas, debochar das normas, esquecer os interditos, são os mecanismos mais evidentes do humor, da piada afrontosa que veste a doçura feminina de um caminhoneiro ("Sua bolsa custou 300 reais? É 300 reais a mais do que ela vale" - do gaysíssimo Truman Capote). Não aquele riso covarde enrolado em arame farpado atacando vulnerabilidades, mas o escárnio despojado que mira as normas sacrossantas de gênero para desconstruir autoritarismos e fecundar liberdades. É, ademais, um humor que alcança os territórios de perigo, a risada política que lamenta extremismos ("Cuidado Fe, a temporada de caça aos veados está aberta", um comentário amigo sobre a nova política de Estado que legisla armamento e homofobia no seio da família).

Há um terceiro aspecto do caráter LGBT que, menos visível que os outros dois, constrói diariamente a subjetividade homoafetiva - enfrentar multidões que consideram a sua existência um desacato moral, uma ofensa religiosa, um estigma que ofende o tribunal da normalidade, acaba cicatrizando uma personalidade forte, indiferente aos pequenos tropeços da vida. Quando a intolerância é interlocutora frequente, a sabedoria LGBT aprende cedo, bem cedo, a desdenhar do que há de mais mesquinho no cidadão de bem, aquele cuja arma de fé não é outra senão o dedo em riste apontando os pecados inexistentes dos outros, tão ocupado em salvar a humanidade que não repara na trilha de tragédias que abre pelo caminho, trilha que o leva diretamente aos territórios de crueldade. De igual modo, o LGBT compreende a imensidão que o ato de generosidade, o ato de acolhimento, pode alcançar, o pequeno abraço que resgata uma existência da indignidade solitária, do desprezo familiar, da humilhação homofóbica. O objetivo de todo preconceito é sempre diminuir o valor humano de alguém; o olhar firme, sem medo, de cabeça erguida, testemunha uma personalidade que aprendeu a encarar seu tempo com a impertinência da igualdade.

A diversidade, no entanto, é uma fronteira que não pode ser riscada, cada definição traz consigo um convite à rebeldia: há as gays que rebolam carisma nas franjas de negritude? Claro que há. Assim como há aquelas made in Miami completamente vestidas de boa reputação. Há os que rezam, os que adotam, os que jogam futebol, cursam medicina, cursam moda, há os que votam na direita, os que vencem a final de RuPaul Drag Race em frente ao espelho do quarto, obrigados a esconder a própria beleza da violência e intransigência paterna (a maior vocação da crueldade é sussurrar boas intenções). Diversidade dentro da diversidade, esse é o maior capital político LGBT, a prerrogativa humana de realizar suas escolhas existenciais sem temer o rosnado dos vários coletivismos morais. A liberdade individual de escolha é um marco civilizatório, um patamar de desenvolvimento humano que não afirma esta ou aquela existência particular, mas a pluralidades razoável de inclinações, possibilidades e alternativas de vida. A demanda LGBT por respeito e igualdade não é um ruído de nicho, uma pauta de minoria, um projeto de vitimização; é, ao contrário, um compromisso ideológico com os mais fundamentais valores da democracia.

Conservador, aliás, adora um liberalismo, mas só o liberalismo manco apoiado na muleta econômica - liberdade individual e irrestrita para fazer escolhas financeiras, mas hegemonia moral e autoritária no campo afetivo. O que a tolerância diz a esse conservador semicoerente? Diz o óbvio, nu e sem maquiagem: seja, exista, vá ao culto, case-se, tenha filhos, estude a bíblia, pague escrupulosamente o dízimo, invista no tesouro direto, faça o que quiser, amém; mas a extensão da sua liberdade é, precisamente, a extensão da minha liberdade, e farei, serei e existirei o que bem entender. Essa é a matemática fundamental da cidadania, parcelas idênticas de autonomia e decisão para todos. Não há, em princípio, qualquer contradição entre a diversidade orgulhosamente festiva, e a família tradicional brasileira, entre a pauta LGBT de respeito equânime, e o exercício de fé neopentecostal, entre a fluidez de gênero e a rigidez religiosa – isto é, não há contradição dentro das fronteiras da democracia, porque democracia só é uma realidade política de fato, se a pluralidade de ideologias, de afetos, de opiniões, compartilhar os espaços de existência pública, sem imposições ou intimidação. O contrário disso é o autoritarismo uníssono, a antidiversidade, o culto devocional que converte maiorias estatísticas em critério religioso de valor (com a benção milionária da aristocracia do dízimo). Numa tal república de pensamento único, o medo executa o que a cegueira legisla, e para o perfeito cidadão de bem muito bem tutelado, só aquela opinião sinônimo de silêncio. O respeito à diversidade - diversidade de manifestação, diversidade política, diversidade de gênero - delimita a fronteira que separa o continente democrático dos ermos de barbárie: cá a criatividade humana de ser e agir; lá a pilha de cadáveres que a História oferece à intolerância.

Orgulho, portanto, é política. A intolerância ainda acredita que ser gay não é uma existência, é uma ofensa. Sem saber, recobre seus interlocutores com avalanches, toneladas e hectares de elogios - gay, veado, bicha. Eliminar a dimensão pejorativa dessas palavras, converter os insultos em insuspeita cortesia, retira do homofóbico sua principal arma de intimidação, priva-o de um imenso poder de ameaça. Quando o preconceito não alcança a submissão, antes provoca um tranquilo sorriso de constatação, o insulto derrete sua capacidade de silenciar, intimidar, diminuir, agredir. Para todo elogio, um "muito obrigado" de dignidade, sou sim. E com um agravante: a porta do armário enferrujou, só permite saídas.

É exatamente por isso que a bandeira LGBT deve concretizar a política da generosidade e do diálogo, uma militância festiva e bem-humorada que não busca um revanchismo a qualquer preço, sem essa lupa de vasculhar micro-homofobias em cada vírgula de discurso. As pessoas cometem erros, pedem desculpas, se arrependem: tá tudo bem, a gente se conversa. A humanidade perdeu o direito ao esquecimento, nossas melhores e piores ações estarão gravadas na eternidade on-line. Uma frase infeliz, uma piada desajustada, não é uma declaração imperdoável de guerra, é apenas um tropeço que todos nós eventualmente cometemos. Todos nós. Não é justo reduzir uma biografia a dez segundos de deslize, dez segundos de desconhecimento. As redes sociais exercem a sua "Santa Inquisição do Bem" com uma virulência histérica, como se todas as pessoas tivessem a obrigação de decorar a cartilha de boas maneiras da bolha universitária. Esse progressismo talibã vai acabar perdendo a batalha retórica da opinião pública, não para o preconceito e a intolerância, mas para sua própria arrogância iluminada. A cultura LGBT tem muito a oferecer, muito orgulho para transbordar; devemos, portanto, fazer a política do diálogo, e não a antipolítica do grito.

Felipe Eduardo Lázaro Braga      

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