sexta-feira, 12 de abril de 2024

Entrevista: Ana Chiara, entre leituras e memórias

por Lucas Viriato

 


Ana Chiara é professora na Faculdade de Letras da UERJ e autora de obras acadêmicas aclamadas sobre literatura brasileira contemporânea. Seus livros incluem Pedro Nava: um homem no limiar (2001), Ensaios de possessão: Irrespiráveis (2006), Machado para jovens (2008) e Corpos diversos (2015), entre outros. No Jornal Plástico Bolha, ela já foi entrevistada na edição número 8, teve uma coluna fixa e publicou diversos textos avulsos, ou seja, é uma parceira e colaboradora de longa data. Passados tantos anos, já era hora de atualizar o nosso bate-papo com ela, e o resultado foi uma conversa repleta de poesia, lembranças e afeto. 


1) Como a Literatura entrou em sua vida e como você se relaciona com ela hoje?

Acho que entrou como refúgio. Conhece o poema “Infância”, de Carlos Drummond? “eu menino entre mangueiras/ lia a história de Robinson Crusoé”? Eu posso dizer: “eu, menina entre dois irmãos homens, lia”. Era gordinha e não brilhava em nenhum esporte, mas era muito estudiosa e estudar era fácil. Por causa disso, para me livrar da ansiedade de conviver com os meninos atléticos e levados, ia para a ilha da leitura. Eu me mostrava para meus pais. Queria ganhar o amor deles.

2) Dom, inspiração, trabalho, achado: nasce-se poeta ou torna-se poeta? 

Alguns nascem definitivamente poetas, são os que facilmente acessam as zonas da sensibilidade. Conheço pessoas que têm um pensamento e uma fala totalmente poéticos, mas nem se sabem poetas. Outros têm veleidades de serem poetas, estes têm de trabalhar mais: conhecer as máquinas dos poemas dos outros e se exercitarem. Outros ainda tropeçam nos achados. Ferreira Gullar contava que vinha distraído, pela Praça Mauá, num feriado. A cidade vazia. De repente sente um vrum ventando no seu rosto. Foi um pombo. Foi um achado. A partir de então ele explicava esse “espanto” como a poesia.

3) Sendo um profissional da palavra, o seu olhar está sempre afiado, ou você consegue ser uma “leitora amadora”? Há um botão de liga/desliga?

Consigo com perfeição isso como espectadora, sou totalmente aberta às impressões do coração quando vou ao teatro, assisto a um filme. Como leitora sou mais viciada, como se usasse um lápis corretor nos olhos. A verdade é que hoje em dia sinto dificuldades em ler: ou por cansaço físico, ou por cansaço da vista, rinite, ou por dificuldade de memória. 

4) Em todo verdadeiro artista, a arte e a vida são uma coisa só. O que você acha dessa afirmação? Há separação?

Acho que não existe um verdadeiro artista, porque isso depende do que a sua época julga ser um artista. Implico com esse mito vanguardista nietzschiano de fazer de sua vida uma obra de arte. É um mito burguês e machista. As mulheres têm a capacidade de fazer mil coisas práticas enquanto estão fabulando. Só os homens precisam de “ambiente”, “sossego” e, muitas vezes, drogas, para serem artistas. Artistas de teatro ou de TV por vezes embarcam nessa ilusão, tornando a vida dos outros um inferno. João Antonio, para viver seu “corpo a corpo com a vida”, precisou de uma mulher que ajeitasse a vida dele. O bom da arte é poder entrar e sair de mundos alternativos ao seu.

5) Quais os livros fundamentais para a sua formação? O que está lendo agora? O que indica como leitura para o momento atual?

Tudo que li me formou para o bem e para o mal, digamos assim. Estou lendo agora, e recomendo, Cobra Norato, de Raul Bopp, e Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, fazendo leituras extensivas. Não gosto de ler o que todo mundo está lendo. E detesto quem joga uma estante de leituras “atuais” numa conversa. Porque acredito que a gente demora muito para assimilar o que lê.

6) Ultimamente temos nos debruçado sobre o poema “Cobra Norato”, de Raul Bopp. O que mais te encantou no poema?

Este poema é genial. Porque mistura muitas camadas de linguagem. É como se Bopp tivesse recuperado a inocência iluminada que as crianças têm para ver "com olhos livres", sem imitar o tatibitate de muitos livros infantis. A viagem é uma viagem assustadora e ao mesmo tempo cheia de ternura, movida pelo desejo amoroso. Quero copiar passagens para meus netos e ilustrar com colagens.

7) O que te leva a escrever poesia?

Não diria que escrevo poesia. O que escrevo na maioria das vezes é uma notação existencial.

8) Você dá aulas desde 1977. Uma vida na sala de aula, da qual você está prestes a se aposentar. Com todas as dores e delícias, valeu a pena?

Valeu uma vida. 

9) Poderia contar um pouco sobre sua infância em Minas?

Eu vim de Belo-Horizonte, onde nasci, com três anos. Não me lembro de nada de Belô...Minhas memórias vêm de minhas idas à Fazenda da família do meu pai e do convívio com os mineiros do interior. São lembranças ótimas e aterradoras. Tinha os banhos de rio no Rio Preto, no Ribeirão. Tinha os primos, o primeiro alumbramento. Quando chovia no verão, os relâmpagos e trovões eram tremendos. A gente acendia os ramos do Domingo de Ramos e esperávamos passar. Convivi com os empregados que tinham causos que o Rosa podia ter roubado. Minha mãe comandava tudo. Ela cozinhava em fogão de lenha e em panelas de ferro. Minha mãe se dava muito bem com os animais. Tinha uma mula que era da pomba gira Rosa de Fogo. Essa mula subia os degraus da cozinha. Só obedecia à minha mãe. Tudo fantástico.  

10) Como está sendo a experiência de ser avó?

A experiência de ser avó é poder ver a vida acontecendo de uma forma absolutamente encantadora. A menina e o menino recuperados em mim, para mim. 

11) Quais as qualidades de um bom leitor?

Para cada tipo de texto, um leitor esperto, sábio ou amoroso. Muitas vezes leio com a ironia sentada no meu colo. 



Esta entrevista foi realizada como parte das atividades de práticas extensionistas realizadas junto aos alunos da graduação em Letras da PUC-Rio, sob a supervisão da professora Helena Martins e com a coordenação de Suzana Macedo e Lucas Viriato. 




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