sábado, 20 de abril de 2024

UMA APRENDIZAGEM TRANSCULTURAL NOS CADERNOS DE GUIMARÃES ROSA, de Marília Rothier


As páginas, que se seguem, buscam ensaiar, através do enfoque microanalítico, uma reflexão sobre a literatura, enquanto espaço possível para o estabelecimento de trocas interculturais, na contramão dos modelos hegemônicos vigentes. Como parte da tendência contemporânea de inserir a interpretação literária no âmbito complexo da cultura, a trilha escolhida foi a dos estudos latinoamericanos, onde se destacam os trabalhos de Garcia Canclini e Martin-Barbero, especializados no exame das práticas híbridas, resultantes das negociações entre as matrizes populares, as eruditas e as midiáticas, detentoras das técnicas de divulgação. Tomando, como referência, as análises do artesanato, do circo, da canção ou dos melodramas radiofônico-televisivos, desenvolvidas por esses autores, procurou-se rastrear processos de construção do literário, identificando tramas intertextuais, as mais heterogêneas, que não só desmentem o isolamento das arte erudita experimental, como também desvendam as possibilidades e os perigos de sua circulação nos meios de massa.

A aproximação do foco analítico de um fragmento-amostra — recortado do conjunto de textos publicados e de seus respectivos proto-textos (levantamentos, anotações, rascunhos) —, visa o emprego simultâneo das técnicas decifratórias aplicadas ao acervo documental de escritores, e dos métodos político-interpretativos, com que se desvendam os conflitos, adaptações e mudanças do tecido multicultural. No âmbito brasileiro, costuma-se apontar Guimarães Rosa como exemplo de escritor moderno que desenvolveu sua tarefa com base numa pesquisa etnográfica – afirmativa confirmada por seu arquivo pessoal, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Este foi o acervo do qual se isolaram algumas seções, considerando-as enquanto fragmentos de um hipertexto – miniatura do hipertexto da cultura brasileira --, para experimentar um tipo específico de close reading, o que combina a exibição ampliada do detalhe com o confronto minucioso de suas partes componentes.

A par da figura beletrística de um Guimarães Rosa, poliglota, inventor de estilo personalíssimo, artificioso e difícil, surge, periodicamente, na mídia, a imagem quase folclórica do viajante das trilhas sertanejas, na companhia de cantadores e boiadeiros — estes, depois celebrizados como modelos para as adaptações televisivas e cinematográficas das “estórias”. Os estudiosos contemporâneos, inconformados com esses estereótipos, que anulam a força questionadora da escrita rosiana, empenham-se em investimentos interpretativos, capazes de atualizar sua fortuna crítica.

As viagens pelo sertão, registradas em foto-reportagens e romantizadas nos livros didáticos, merecem resgate, porque correspondem a um momento capital na trajetória de Rosa. Na virada dos anos quarenta para os cinqüenta, depois da publicação de Sagarana (1946), este cuidou de profissionalizar seu trabalho. Como já vinha estudando, nos livros e nos museus europeus, a tradição épica culta, lançou-se à pesquisa sistemática da mesma tradição, na linhagem popular sertaneja. A etapa decisiva dessa pesquisa aconteceu em maio de 1952, quando o escritor atravessou, durante dez dias, os gerais mineiros, acompanhando uma boiada conduzida pelo vaqueiro Manuelzão. Como registro do trajeto, compôs-se um diário minucioso, posteriormente retrabalhado sob a forma de proto-textos das estórias em preparo. Aí, o material colhido na pesquisa de campo vai-se superpondo à reserva de leituras, acumulada pelo escritor. Entre as pastas, catalogadas, no IEB, como “Estudos para a obra”, acham-se quatro [E-26, 27, 28, 29] referentes à “Boiada” e uma, contendo amplas notas de leituras feitas entre 1948 e 1950 [E-17], intitulada “Dante, Homero, La Fontaine”. Em artigo sobre esta última, Ana Luiza Martins Costa (1997-1998 e 1999-2000) localiza, nas narrativas rosianas, a apropriação adaptada da épica clássica, não só como modelo das “virtudes heróicas” mas também como alargamento de possibilidades lingüísticas, no uso de intercalações, imagens múltiplas e principalmente “epítetos sintéticos”, “transcriados” em português.

Se, como resultado da reelaboração do diário da viagem, o capataz dos vaqueiros foi transformado no protagonista de “Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)”, é o guieiro e cozinheiro Zito que melhor duplica a figura do escritor, pois, “dado em poeta”, levava, também, um caderno, onde registrava, em quadras, os sucessos do percurso. Entre os manuscritos de Guimarães Rosa (em família, Joãozito), onde há freqüentes transcrições das falas e trovas do guieiro-vate (“Vou contar um caso / Os senhores prestem atenção: / De uma saída da boiada / Da casa do Manuelzão.”), encontra-se, preservado, o próprio “caderno de Zito”.[E-26] Se o cânone ocidental aponta Homero como o transmissor, por excelência, do saber coletivo de seu povo, o estudioso da cultura rural brasileira encontra, nessas trovas, o modelo “dos epos das boiadas” – registro ritmado da experiência atual à maneira das lendas sertanejas. Além de observador e artista, Zito era dotado de “senso-de- humor”, o que revela sua co-autoria, por exemplo, de “O recado do morro”, novela de uma viagem, em cuja trajetória, como naquela da boiada, sempre se avistava o Morro da Garça. Compondo a novela, lê-se, em tom cômico-sério, uma espécie de disputa entre saberes: de um lado, o cientista alemão admira os elementos mais corriqueiros da paisagem para espanto e galhofa dos camaradas geralistas; de outro lado, moradores bobos ou meio malucos sustentam profecias, creditadas à voz do morro, que são desconsideradas pelo padre e pelo fazendeiro. Esse tipo de narrativa, que propõe enigmas e experimenta possíveis respostas — onde se conjugam a percepção estetizante, a intuição fantasista e o raciocínio especulativo —, foi certamente aperfeiçoado na convivência do escritor culto com sertanejos como Zito. Na entrevista a Günter Lorenz, Guimarães Rosa faz questão de confessar que, quando perseguido pelas dúvidas, conversa “com alguns dos velhos vaqueiros de Minas Gerais, que são todos homens atilados” ( Coutinho, 1983: 79 ). Ao longo da obra e da variedade de documentos, que apresentam seu processo de composição, fica patente o alto conceito atribuído, pelo escritor, à cultura sertaneja. Seu maior elogio aos mestres do saber ocidental – Dante, Goethe, Dostoievski – é considerá-los nascidos no sertão ( 85 ). Em termos de hoje, pode-se dizer que, aí, se opera um tipo de transculturação, independente da hierarquia hegemônica. Nos meados do século XX, quando o Brasil – como toda a América Latina – ocupava-se das reflexões acadêmicas contra o sub-desenvolvimento e das metas governamentais progressistas, nunca é demasiado ressaltar a atitude contradiscursiva de Guimarães Rosa, que se instrumentalizou com os jogos lingüísticos da vanguarda para, reacionariamente, reinserir a enunciação coletiva da épica no espaço do romance experimental. Buscando a co-autoria dos aedos gregos e medievais, tanto quanto a dos cantadores de feira e poetas-boiadeiros do sertão, logrou “introduzir uma lacuna não-sincrônica, incomensurável, no meio do contar histórias” ( Bhanha, 1998: 227 ). A sua maneira, o escritor antecipava, assim, o diagnóstico e as alternativas para a crise da modernidade. Sua atividade de pesquisador da sabedoria anti-histórica dos mitos e provérbios não é mais interpretada, hoje, como esteticismo alienante, mas como “performance” próxima à do artesanato e do melodrama dos hispanos, que trabalham suas matrizes arcaicas, através de processos eruditos ou midiáticos, como forma de resistência cultural.

As estratégias narrativas, aprendidas e adaptadas por Guimarães Rosa, podem mostrar-se bastante surpreendentes. Enquanto combinava o ritmo das quadras de Zito com o esquema sonoro da Ilíada, ia-se familiarizando com diferentes “retratos do Brasil”, produzidos desde o tempo das expedições científicas estrangeiras até Euclides da Cunha. Simulava querer extrair, de toda essa extravagante bagagem de informações, um saber atemporal e transcendente, mas, de modo sutil, produzia uma interferência na história presente, subvertendo projetos políticos de seus contemporâneos e pondo em questão a racionalidade prática estabelecida. Observem-se, por exemplo, suas relações com o velho amigo Pedro Barbosa, fazendeiro e empresário bem sucedido.

Colegas da Faculdade de Medicina e companheiros de pensão em Belo Horizonte, Pedro Moreira Barbosa e Guimarães Rosa corresponderam-se durante trinta e três anos. Pelo assunto da maior parte das cartas, sabe-se que, à medida que ampliava suas empresas, Barbosa ia-se tornando uma espécie de conselheiro econômico do escritor, que aplaudia, num tom entre invejoso e irônico, a riqueza do amigo. Ora, Pedro Barbosa, o homem de negócios, é justamente o escolhido para fornecer material informativo para a construção literária de um bobo – tratador dos porcos na fazenda —, que, como personagem-título do conto “Mechéu”, põe em questão, com seu comportamento desconcertante, toda a lógica da propriedade lucrativa. Antes de dizer de que forma Pedro Barbosa tornou-se co-autor da estória de Tutaméia, é interessante lembrar o convite, feito por ele a Rosa, no final de 1945, para uma viagem à Fazenda das Pindaíbas, em Paraopeba. Esse convite resultou na primeira excursão de pesquisa local sistemática, descrita, pelo próprio escritor, como “oportunidade para penetrar de novo naquele interior nosso conhecido retomando contato com a terra e a gente, reavivando lembranças, reabastecendo-[se] de elementos, enfim, para outros livros.” [Carta ao pai, 6/11/1945]

No arquivo do escritor, podem-se ler, compondo a pasta E-26 – “Notas da grande excursão a Minas” —, os registros, transcritos e já em processo de reelaboração, daquela estada nas Pindaíbas, onde um certo Tio Moreira chamou a atenção do escritor, autodefinindo-se, proverbialmente: “Moreira racha mas não quebra!” A maior parte do material recolhido diz respeito ao trato com os bois e à sabedoria tradicional da região, incluindo ditos, cantigas e festas cíclicas, como o batuque e a folia de reis. Mas é possível que, em meio a sua tarefa de etnógrafo amador, Rosa tenha-se deixado fascinar pelo apego à rotina diária e pela expressão intensa e enraivecida de Mechéu. Tempos depois, preparou um verdadeiro questionário sobre a aparência, hábitos, gostos e idiossincrasias do agregado “semi-imbecil” e enviou-o ao amigo Pedro Barbosa. A partir das respostas do empresário, foi construindo – como atestam as anotações dos Cadernos de Estudo 6 e 21, guardados no arquivo – a personagem e sua trama.

Limitado e ridículo, mas dotado de incompreensível dignidade, Mechéu suscita o riso e a reflexão, pois, se repete, em relação ao Gango (outro bobo da fazenda), a mesma atitude de desprezo superior com que o tratam, acaba perdendo toda a energia quando o Gango morre. A linguagem da narrativa impregna-se do mistério, que a épica – na versão culta ou popular – tem a tradição de perscrutar, pelos caminhos do maravilhoso e do humor. Nesse caso, “Mechéu”, o conto e a personagem, aproxima-se de “O recado do morro”, que reúne sete figuras excepcionais – bobos, loucos, criança e poeta – na função de receptores e transmissores da mensagem cifrada referente à vida e à morte. Assim, a temática e os processos de composição dos textos de Guimarães Rosa concentram-se no comportamento dos indivíduos marginais, que passam mensagens, ajudando a preservar uma sabedoria ameaçada. Trata-se de uma sabedoria composta de ruínas de diferentes culturas, desqualificadas ou esquecidas. Para que o escritor moderno possa apreender esse recado híbrido, é preciso servir-se das vozes mais improváveis e contraditórias. Se o vaqueiro trovador surge como emissário direto das palavras de sua comunidade, um empresário de raízes rurais pode ser levado a comunicar, mesmo involuntariamente, saberes regionais alheios a sua atividade. A centelha do humor, que transpõe o impasse, também resgata os saberes minoritários.

Guimarães Rosa desempenha o papel do intelectual que se prepara, no ambiente do conhecimento erudito moderno, para um trabalho ousado de desconstrução dos valores hegemônicos, tanto estéticos como epistemológicos. Recorde-se que sua tática envolve memória, invenção, raciocínio lógico e fantasia intuitiva, justamente para explorar os conflitos entre esses campos de produção dos artefatos culturais. Como se trata de tarefa gigantesca, o escritor, ambicioso e arguto, usa a artimanha de convocar, informalmente, uma série de parceiros para a boa realização de seu objetivo. No resgate da multiplicidade anônima dos transmissores do legado épico, a narrativa rosiana identifica alguns sujeitos com cujo discurso vai produzindo os fios de sua trama. Cada um desses, como representante de um tipo de estória ou cantiga, tem sua figura fundida à imagem do escritor, que, assim, assume diferentes faces, simultâneas ou sucessivas – a erudita, de “ledor de Homero”; a nacional, de discípulo de Euclides da Cunha; a boiadeira, andarilha, imitada do admirável guieiro Zito; e a de observador de seres excepcionais, espertamente captada num descuido do fazendeiro-empresário Barbosa. Somando-se a essa lista, outro alter-ego exige atenção cuidadosa, pois, sendo a presença mais constante na correspondência arquivada do escritor, torna-se figurante quase imperceptível na obra publicada. Trata-se de Florduardo Rosa, o pai de Joãozito, a quem este, por meio da troca de cartas, transforma no seu principal fornecedor dos casos do sertão.

Comerciante por profissão e caçador para diversão, nem analfabeto nem culto, Florduardo ocupa o posto estratégico de mediador entre os mediadores. Pela via da familiaridade, supre o filho literato de matéria narrável, quando este não pode sair a campo para suas observações etnográficas. Torna-se, assim, uma espécie de fonte secundária, não só porque registra sua experiência por encomenda, mas porque, com pretensões a bom contador de estórias, já apresenta um texto pré-elaborado. No trato com o discurso do pai, revela-se um aspecto interessante do Rosa-filho: quando jovem, João distanciou-se do modelo paterno para tornar-se capaz de receber e gerir uma herança – exemplares da épica sertaneja, preservados por narrador experiente – cuja enorme riqueza, o pai mesmo não poderia calcular. Nas raras entrevistas, o escritor demonstra, sutil e respeitoso, sua rejeição de menino às ordens do pai; na maturidade, no entanto, com esperteza produtiva, cultivada de propósito, estreitou relações epistolares com aquele sertanejo semi-letrado, que o acaso batizou com o nome peculiar de Florduardo Pinto Rosa. Incentivando o pai a colaborar no empreendimento literário, reconhece seus dotes narrativos: “Gosto muito do jeito d[e Papai] escrever (...). Fico pensando que a minha ‘bossa’ de escritor eu herdei dele, que maneja a pena com tanta facilidade, personalidade, vivacidade e graça.” [carta ao pai, 13/09/1962] Em quase todas as cartas, há comentário sobre as notas enviadas e pedido de outras: “Apreciei, muitíssimo, as notas que o senhor me mandou, sobre os enterros na roça. Aliás, o senhor não imagina como têm valor para mim essas informações. Pena é que o senhor não mande delas freqüentemente.” [9/7/1955]

As técnicas redacionais de Florduardo são dignas de comentário. Fica patente sua preocupação em distanciar-se da linguagem oralizada, variando sinônimos, usando torneios humorísticos e maneiras de produzir realce. Quando narra o primeira dos seus “três contos do papagaio”, descreve o dono do “bichinho” treinando-o com o propósito de “auferir alguma coisa que lhe avolumasse o bolso”. Lembra um freguês beberão, que o perturbava, nos tempos de comerciante em Cordisburgo: “Ai de mim o dia que o Tio Inocêncio estava de folga ou nos azeites e que resolvia sangrar a coruja encostado no balcão!...Santo Deus!...” Se colecionava provérbios antigos, metáforas pitorescas e expressões locais, a pedido do filho literato, como atestam os exemplos anteriores, não se contentava em simplesmente empregá-los, fazia questão de montar combinações dos mesmos, deixando na frase a sua própria marca. É o que se destaca na maneira de identificar de onde os ciganos traziam seus costumes: “lá de sua terra natal, lá da Sérvia ou lá dos calcanhares onde o diabo perdeu as botas.” Mostrando-se tão cioso de seu estilo, não deixa de comentar a produção do filho, onde não lhe passa despercebida a referência discreta, com que aquele o homenageia, através de um figurante de “O recado do morro”. Na carta de 27 de junho de 1956, acusa o “recebimento dos belos volumes do Corpo de baile e de Sagarana com sua roupa nova.” Depois acrescenta: “Tenho gostado muito do novo livro, do buriti bom, do buriti grande, apesar de que você não falou no buritizinho das mulatas, etc. Você escreveu muito, botou bastante malagueta no guisado, Frei Florduardo, etc.” [Pasta 42]

A tradição narrativa de encaixar estórias, umas dentro das outras, ou de ir desenrolando o fio das associações de casos está presente nas notas de Florduardo; por exemplo, quando contrasta os ciganos antigos e os modernos, não deixa de enxertar a estória do velho “cego de um olho”; também, na narrativa de suas caçadas, um episódio emocionante sempre puxa outro, engraçado ou inacreditável. Aí, certamente, Guimarães Rosa encontrou subsídio para revitalizar aquelas técnicas ancestrais. Mas, além da técnica ou dos assuntos encomendados, o escritor deve ter assumido para si a preferência do pai pelo enfoque de personagens engraçadas e incômodas, que brigam por seus desejos, mesmo na contramão do deboche e da exploração social. A constância com que Mechéu tomava-se “por infalível noivo de toda e qualquer derradeira sacudida moça vista”, assim como a “paixão” do Catraz — um dos sandeus, que transmite “o recado do morro” — pela “moça da folhinha” correspondem a adaptações e desdobramentos da narrativa em que Florduardo acompanha os lances do namoro, que o preto Tio Inocêncio imagina manter com uma das filhas de D. Isabel, “gente simples e boa”, moradora da roça. [Pasta 42]

O escritor considera as anotações de Florduardo como objeto de trabalho constante, no processo de produzir suas próprias narrativas. É o que diz, na carta de 5 de julho de 1956, a propósito do recém-publicado Corpo de baile: “Como o senhor não deixará de ter notado, ele está cheio de coisas que o senhor me forneceu (...). Agora estou justamente relendo as mesmas e passando para um caderno, classificadas e em ordem, (...) para serem aproveitadas em futuros livros.” Reescrevendo os textos do pai, Guimarães Rosa tem oportunidade de agregar suas lembranças à memória da família e da vila de Cordisburgo e arredores. Constrói, assim, — numa operação inversa àquela que descreve no conto “O espelho” — uma imagem compósita, pois delineia seu perfil, apropriando-se de traços dos antepassados e dos vizinhos e ainda inclui, no conjunto, características dos bichos domésticos, criados na infância. No entanto, quando se acompanha a saga cosmopolita e sertaneja dos “recados” transmitidos pela escrita rosiana, fica patente que “não se escreve com as próprias lembranças, a menos que delas se faça a origem e a destinação coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações.” ( Deleuze, 1997: 14 ) O povo, cujo devir se inscreve nessas “primeiras” e “terceiras estórias”, não forma uma nação nem reivindica uma verdade regional. Sua força política é, antes, da ordem fantástica das culturas diferentes, que se chocam e se entrelaçam. Em carta de 4/12/1963 a Edoardo Bizzarri, Guimarães Rosa diz escrever “como se estivesse traduzindo de um alto original, existente alhures”; em outra carta de 25/11/1963, descreve sua atividade narrativa como trabalho “mediúnico”. Se se descontar a artimanha mistificadora, que o escritor exercita, diante dos leitores, essas afirmativas explicitam o “agenciamento coletivo da enunciação” das estórias.

A escritura assinada por Guimarães Rosa, através da participação de seus vários co-autores, fez uso experimental da língua portuguesa, ao agregar aspectos morfo-sintáticos de outras línguas e de falares regionais, num desenho verbal híbrido, para propor, há cinqüenta anos, uma forma — inventiva e humorística — de convivência entre tempos disjuntivos e diferenças culturais. Seu paralelo contemporâneo é, por exemplo, o artesanato que resiste e se desenvolve, por essa América Latina afora, adaptando, com graça e malícia, a técnica e os modelos milenares à matéria industrializada e ao gosto do mercado internacional. Artesão das palavras, Rosa desenvolvia o relato, de modo a salvar do desaparecimento iminente as contribuições de Zito, Manuelzão, Florduardo e tantos outros contadores e cantadores anônimos. Superpondo fórmulas épicas, arcaicas e recentes, a técnicas da montagem industrial moderna, produzia, por processos de harmonização do heterogêneo, objetos verbais belos mas desconcertantes. Sua assinatura personalíssima, nesses objetos-estórias, não esconde mas põe em realce as marcas autorais de seus companheiros narradores, tenham eles sido identificados em livros canônicos, em cartas familiares ou nas conversas noturnas dos boiadeiros. Através do rastreamento das etapas de pesquisa, escolha, mistura e reelaboração das estórias — etapas guardadas nos registros do arquivo do escritor —, em confronto com a obra publicada, identifica-se, para além das tramas intertextuais ordinárias, a evidência de um trabalho composicional coletivo. Assumido como programa, tal trabalho confere à literatura um desempenho de ponta na reformulação das relações interculturais.

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