domingo, 15 de julho de 2012

Um Épico


entro numa farmácia
tenho 30 anos
entro para pedir um remédio
para calvície
não que seja calvo
mas um certo medo precoce
da idade
uma vaidade que a invenção
do espelho
nos impôs

não é culpa do espelho
antes todo mundo queria ser velho
logo
hoje todo mundo quer ser jovem
sempre

o fato é que peço o remédio
para calvície
o atendente é mais novo que eu
e careca
durante alguns segundos me olha
descrente
pega o remédio
pergunta se eu tenho o cartão de desconto
segue o protocolo
e me entrega o remédio
descrente

vou andando pela rua
de uma terra inventada
de uma terra sonhada
e olho o mundo que passa
a pé
de carro
bicicletas
skate
patins
para que tanta roda meu Deus?
o mundo passa
descrente
o meu remédio para calvície
sacoleja líquido na bolsa plástica
pedi para o atendente
não me entregar a bolsaplástica
mas ele seguiu o protocolo
descrente

olho a bolsa plástica
e penso no continente de plástico
que boia hoje no meio do pacífico
deserto de polímeros
lembro dos pássaros
encontrados mortos
com bolsas plásticas
no estômago
sempre me sinto um assassino
de pássaros
quando carrego uma bolsa plástica
matador de passarinho
sigo andando
e lembrando
que não é de hoje que me sinto assim
assassino
no primário uma professora
me olhou fundo nos olhos
com olhos lacrimosos
por uma vírgula
comida
ela contou que na segunda guerra mundial
um batalhão avançado perguntou
se deviam matar prisioneiros de guerra
NÃO TENHAM PIEDADE!
foi a resposta
mataram todos

mas faltou a vírgula
não, (vírgula)
tenham piedade.
Não era para matar ninguém
Sempre que erro uma vírgula
me sinto um assassino
um criminoso
de guerra
as vírgulas
balas perdidas
assassinando as frase
se um carro freia forte
assovia borracha no asfalto
buzina
me xinga
eu no meio da rua
distraído pelo plástico
pela vírgula

meu primo sempre diz
que eu não tenho medo dos carros
para mim parecem mesmo
burrinhos pacatos
ruminando piche
mas não são
alguns não freiam
outros comem piche
ou melhor
petróleo
e os pássaros com plástico no estômago
cobertos de petróleo
num acidente
ecológicoe os peixes tentando respirar
na superfície pastosa
deserto de piches
andar de carro é ser um assassinode peixes

tenho 30 anos
me chamo Domingos
sou um dia inútil da semana
caminhando pela utilidade
dos dias
as inutilezas que salvarão o mundo
a preguiça de um domingo
que salvará o mundo
sou Domingos
me chamam Dodô
sou uma ave extinta
de uma terra inventada
uma terra sonhada
num domingo de so
lquando Deus cochilou
inventaram o brasil.

Domingos Guimaraens 
 

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