segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Às moscas


Diante do álbum amarelecido pelos anos de clausura na gaveta dos esquecimentos, espantei-me ao ver radiante aquele garoto mirrado. Ostentava, do alto do trono da infância, um sorriso branco e sincero - ainda que incompleto e distante. Já não me recordava daquela felicidade sem pretensões. Daqueles olhos translúcidos, daquele peito aberto - daquele eu sem medo. Esbocei incrédulo, frente à fotografia gasta, um meio sorriso oblíquo. Não pelo que sou hoje - esse velho decrépito, lacrimejante de ontens em preto-e-branco - mas pelo menino inteiro do qual me vesti nos anos idos. Pelo que poderia ter sido e fracassei, acovardado. Por aquele que - pelo acaso dos passos na mata fechada dos sentimentos daninhos, que me atormentaram anos a fio - desencaminhou-se e perdeu-se para sempre de mim. Uma lágrima gorda atravessou-me os vales vincados do rosto. E apreciei, salivando, seu gosto amargo. Como quem arranca de uma vez um naco de vida dos dias mais verdes. Como quem inspira 50 anos de árvore em um só segundo. Eu não queria ter amadurecido. Poderia ter evitado as moscas asquerosas, flutuantes sobre a minha decomposição. Ainda assim, apodreci.

Sylvia Araujo

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