para Francisco Tito Yupanqui
Hoje saí de casa de camisola. Uma
camisola razoavelmente publicável, confundível com vestido, de um preto
comportado, mas com a qual sei que dormi, o que sonhei vestida dela, a coisa
mais distraída que faço, a coisa mais desastrada que faço, a coisa mais infinitamente
desejável que faço, dormir. Saí com a banana por terminar, pra comprar pó de
café que acabou, ando escrevendo até os pássaros adiantados das 4 da manhã e
isso só com café mesmo, que geralmente revezo com vinho pra amenizar os
sobrenados e ajudar minha cidade a guardar sua ordem nenhuma. Meu Deus, quanto
tempo faz que não corto as unhas dos pés. Saí pelo café e já voltando, a cica
da banana não sai mesmo, me lembrei de um livro fundamental, todos os dias
tenho um estalo de um livro fundamental, nunca terei tempo de ler todos os
livros que considero fundamentais às minhas plantas dos pés que se mantenham
calejadas e me conservem de pé diante do vermelho dos sinais. Peguei o metrô e
fui até a Travessa de Botafogo. De camisola. Botafogo é logo ali, quase uma
extensão da minha casa, eu geralmente caminho sobre o alívio de braços que me
estreitam em Botafogo, minha identidade não se desloca em Botafogo. Eu esqueci
que estava. Eu esqueci que estava de camisola fora do meu bairro, mesmo em
Botafogo, verão, uma água de coco de carrinho, máquina de costura, a gente não
é nada, pensei, por mim e pelas pessoas que me viam caminhar nua fora do meu
bairro, e sorri por mim e pelas pessoas que me sorriam sem qualquer domínio
sobre o desfecho de seus sorrisos, bocas se fechando trêmulas, o fim do sorriso
sem dar-se por ele é a maior distância possível entre dois habitantes. Já lavei
as mãos, a cica não tem jeito. Eu sorria de volta, mas não era verdade.
Aproveitei pra comprar uma canjica, pilhas palito e adaptador de tomada que
somem todas as tardes pelos cantos abstrusos do meu apartamento, e claro que
não me dei por satisfeita com 1 só livro fundamental. Agora eu era nua na
calçada com o peso da história que os escritores inventam para não morrerem sob
meus punhos, sob a história que invento para não morrer. A camisola não cumpria
qualquer papel de indumentária, não conversava por mim, não protegia minha pele
nem a carne, meu pulmão, minha garganta, a camisola era só o vento que ela
fazia entre as minhas pernas. Não tinha me dado conta da diferença que faz um
túnel entre uma casa e o objetivo, no tanto que pode interferir no despojamento
de um habitante. Entendi que a cara de qual o problema dos rapazes do bar
vizinho em Copacabana por onde passo todos os dias, e todos os dias com a roupa
que estiver mais perto, é por causa do costume que já têm em me ver de qualquer
jeito. Eu nunca durmo de roupa e era como se não tivesse excepcionalmente
dormido dessa vez, meu corpo estava ali completamente nu em plena Voluntários da
Pátria, amada Brasil. Temo um dia sair com a roupa nenhuma com que durmo em
Copacabana. Seria a mesma coisa que estar de camisola em Botafogo. Minha casa é
Copacabana, eu não ligo em Copacabana, tudo me é familiar em Copacabana,
carrego tudo na mão, é carteira é chave é celular, não há estrangeiros em
Copacabana, os estrangeiros de Copacabana são meus vizinhos, vizinho é uma
palavra mais forte que qualquer outra denominação pra gente desconhecida, minha
vizinhança é o que sopesa o templo do meu calendário, e Botafogo apesar de
bairro vizinho à minha vizinhança não é a minha casa, não é bonito igual, não
dá pra sair de camisola, não tem cavalos de madeira em tamanho natural, não tem
camelos, nem camelôs que se prezem, não descobriram o teclado no meio da rua,
não se vê resgate de princesas velhas que nunca existiram, os rapazes não estão
acostumados com o vento que a camisola faz entre minhas pernas em Botafogo, e
eu nunca fui boa em desviar de bueiros que ventam pra cima, eu não sou mulher
pra Botafogo. Quanto mais me sentia uma estrangeira naquele bairro, mais
arrumava função pra ver se o tempo dedicado a ele me fazia sentir como se fosse
meu, algum bálsamo da minha terra, Copacabana!, alguma calamidade de maresia
pelos orifícios. Costumo me sentir em casa em Botafogo mas é porque geralmente
estou de roupa de sair, em Botafogo. Ir a Botafogo é sair. Copacabana não. Me
pergunto se foi o que aconteceu comigo ou com Botafogo. A cidade já não é do
morador faz tempo, pensei sem meus botões, a carteira a chave o celular na
sacolinha de plástico das pilhas palito. A cidade do habitante é o bairro do
habitante quando não a rua dele, a casa, o quarto dele, o banheiro, a privada
dele, a cidade do habitante é o vaso sanitário do habitante, o chuveiro, as
gavetas, a cama, o travesseiro mais tardar. O poste do habitante é a luminária
de mesa dele, o abajur de cabeceira do habitante, a luz fria da cozinha, a luz
quente do computador, da cafeteira dele, do forno, do ferro de passar, da vela
de sete dias, do fogo soprado pelas bocas do fogão do habitante, do isqueiro,
do celular, da luz insolente do vizinho que entra pela janela mais tardar. O
corpo do habitante é o único vestíbulo unívoco do habitante. Não era nada disso
que eu ia falar.
Querido Rio de Janeiro,
estou apavorada com a
gentrificação de Botafogo. O Estação agora é NET, tem japonês com neon azul na
Arnaldo Quintela, um Zona Sul, uma Travessa, nenhuma locadora, 5 bares por
quarteirão, comprei laranja e não deu troco, couve já faz tempo, uma penca de
apartamentos a mais de 1 milhão vazios, não deu vazão para vender na planta,
tantas opções que os corretores tinham, mas eu juro que ainda compro tapioca
milho e churros na entrada do metrô, e canjica na saída do metrô, que daqui a
pouco, aos moldes madrileños, vai virar Metrô Vivo Botafogo. Viva Botafogo,
viva o Soho Botafogo, viva o Rio de Janeiro Manhatã, mãe ateia, quê que te deu
que eu não tava aqui pra ver?, que santo anda baixando nesse povoado?, você se
lembra do rapaz do abacaxi?, vê se não esquece o troco da pipoca, vê se não
esquece o cinema baratinho, vê se não esquece de me cumprimentar da próxima
vez.
Luana Carvalho
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