terça-feira, 5 de maio de 2015

3º Movimento - Nua na Voluntários da Pátria, amada Brasil


para Francisco Tito Yupanqui

Hoje saí de casa de camisola. Uma camisola razoavelmente publicável, confundível com vestido, de um preto comportado, mas com a qual sei que dormi, o que sonhei vestida dela, a coisa mais distraída que faço, a coisa mais desastrada que faço, a coisa mais infinitamente desejável que faço, dormir. Saí com a banana por terminar, pra comprar pó de café que acabou, ando escrevendo até os pássaros adiantados das 4 da manhã e isso só com café mesmo, que geralmente revezo com vinho pra amenizar os sobrenados e ajudar minha cidade a guardar sua ordem nenhuma. Meu Deus, quanto tempo faz que não corto as unhas dos pés. Saí pelo café e já voltando, a cica da banana não sai mesmo, me lembrei de um livro fundamental, todos os dias tenho um estalo de um livro fundamental, nunca terei tempo de ler todos os livros que considero fundamentais às minhas plantas dos pés que se mantenham calejadas e me conservem de pé diante do vermelho dos sinais. Peguei o metrô e fui até a Travessa de Botafogo. De camisola. Botafogo é logo ali, quase uma extensão da minha casa, eu geralmente caminho sobre o alívio de braços que me estreitam em Botafogo, minha identidade não se desloca em Botafogo. Eu esqueci que estava. Eu esqueci que estava de camisola fora do meu bairro, mesmo em Botafogo, verão, uma água de coco de carrinho, máquina de costura, a gente não é nada, pensei, por mim e pelas pessoas que me viam caminhar nua fora do meu bairro, e sorri por mim e pelas pessoas que me sorriam sem qualquer domínio sobre o desfecho de seus sorrisos, bocas se fechando trêmulas, o fim do sorriso sem dar-se por ele é a maior distância possível entre dois habitantes. Já lavei as mãos, a cica não tem jeito. Eu sorria de volta, mas não era verdade. Aproveitei pra comprar uma canjica, pilhas palito e adaptador de tomada que somem todas as tardes pelos cantos abstrusos do meu apartamento, e claro que não me dei por satisfeita com 1 só livro fundamental. Agora eu era nua na calçada com o peso da história que os escritores inventam para não morrerem sob meus punhos, sob a história que invento para não morrer. A camisola não cumpria qualquer papel de indumentária, não conversava por mim, não protegia minha pele nem a carne, meu pulmão, minha garganta, a camisola era só o vento que ela fazia entre as minhas pernas. Não tinha me dado conta da diferença que faz um túnel entre uma casa e o objetivo, no tanto que pode interferir no despojamento de um habitante. Entendi que a cara de qual o problema dos rapazes do bar vizinho em Copacabana por onde passo todos os dias, e todos os dias com a roupa que estiver mais perto, é por causa do costume que já têm em me ver de qualquer jeito. Eu nunca durmo de roupa e era como se não tivesse excepcionalmente dormido dessa vez, meu corpo estava ali completamente nu em plena Voluntários da Pátria, amada Brasil. Temo um dia sair com a roupa nenhuma com que durmo em Copacabana. Seria a mesma coisa que estar de camisola em Botafogo. Minha casa é Copacabana, eu não ligo em Copacabana, tudo me é familiar em Copacabana, carrego tudo na mão, é carteira é chave é celular, não há estrangeiros em Copacabana, os estrangeiros de Copacabana são meus vizinhos, vizinho é uma palavra mais forte que qualquer outra denominação pra gente desconhecida, minha vizinhança é o que sopesa o templo do meu calendário, e Botafogo apesar de bairro vizinho à minha vizinhança não é a minha casa, não é bonito igual, não dá pra sair de camisola, não tem cavalos de madeira em tamanho natural, não tem camelos, nem camelôs que se prezem, não descobriram o teclado no meio da rua, não se vê resgate de princesas velhas que nunca existiram, os rapazes não estão acostumados com o vento que a camisola faz entre minhas pernas em Botafogo, e eu nunca fui boa em desviar de bueiros que ventam pra cima, eu não sou mulher pra Botafogo. Quanto mais me sentia uma estrangeira naquele bairro, mais arrumava função pra ver se o tempo dedicado a ele me fazia sentir como se fosse meu, algum bálsamo da minha terra, Copacabana!, alguma calamidade de maresia pelos orifícios. Costumo me sentir em casa em Botafogo mas é porque geralmente estou de roupa de sair, em Botafogo. Ir a Botafogo é sair. Copacabana não. Me pergunto se foi o que aconteceu comigo ou com Botafogo. A cidade já não é do morador faz tempo, pensei sem meus botões, a carteira a chave o celular na sacolinha de plástico das pilhas palito. A cidade do habitante é o bairro do habitante quando não a rua dele, a casa, o quarto dele, o banheiro, a privada dele, a cidade do habitante é o vaso sanitário do habitante, o chuveiro, as gavetas, a cama, o travesseiro mais tardar. O poste do habitante é a luminária de mesa dele, o abajur de cabeceira do habitante, a luz fria da cozinha, a luz quente do computador, da cafeteira dele, do forno, do ferro de passar, da vela de sete dias, do fogo soprado pelas bocas do fogão do habitante, do isqueiro, do celular, da luz insolente do vizinho que entra pela janela mais tardar. O corpo do habitante é o único vestíbulo unívoco do habitante. Não era nada disso que eu ia falar.

Querido Rio de Janeiro,
estou apavorada com a gentrificação de Botafogo. O Estação agora é NET, tem japonês com neon azul na Arnaldo Quintela, um Zona Sul, uma Travessa, nenhuma locadora, 5 bares por quarteirão, comprei laranja e não deu troco, couve já faz tempo, uma penca de apartamentos a mais de 1 milhão vazios, não deu vazão para vender na planta, tantas opções que os corretores tinham, mas eu juro que ainda compro tapioca milho e churros na entrada do metrô, e canjica na saída do metrô, que daqui a pouco, aos moldes madrileños, vai virar Metrô Vivo Botafogo. Viva Botafogo, viva o Soho Botafogo, viva o Rio de Janeiro Manhatã, mãe ateia, quê que te deu que eu não tava aqui pra ver?, que santo anda baixando nesse povoado?, você se lembra do rapaz do abacaxi?, vê se não esquece o troco da pipoca, vê se não esquece o cinema baratinho, vê se não esquece de me cumprimentar da próxima vez.

Luana Carvalho

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