Estamos em guerra. Guerra contra os pobres, contra os negros, contra as mulheres, contra os indígenas, contra os transexuais, contra os craqueiros, contra a esquerda, contra a cultura, contra a informação, contra o Brasil. A guerra é econômica, política, jurídica, militar, midiática. É uma guerra aberta, embora denegada, é uma guerra total, embora camuflada, é uma guerra sem trégua e sem regra, ilimitada, embora queiram nos fazer acreditar que tudo está sob a mais estrita e pacífica normalidade, institucional, social, jurídica, econômica. Ou seja, ao lado da escalada generalizada da guerra total, uma operação abafa em escala nacional. Essa suposta normalização em curso, essa denegação, essa pacificação pela violência – eis o modo pelo qual um novo regime esquizofrênico parece querer instaurar sua lógica, onde guerra e paz se tornam sinônimos, assim como exceção e normalidade, golpe e governabilidade, neoliberalismo e guerra civil. Nada disso é possível sem uma corrosão da linguagem, sem uma perversão da enunciação, sem uma sistemática inversão do valor das palavras e do sentido do próprio discurso, cujo descrédito é gritante.
Diante desse panorama, qual a tarefa de um editor? Certamente não é o de corroborar a corrosão em curso, publicando frivolidades para um mercado bulímico que as deglute como entretenimento narcótico. Um livro pode ser muita coisa, entre outras uma arma, um instrumento em meio a um combate, uma ferramenta de análise, uma catapulta de idéias incendiárias e de afetos vários, coléricos mas também amorosos. Extraímos de um dos livros publicados por nós essa consigna: a revolução é da ordem da cólera e da alegria, não da angústia e do tédio. A cólera se dirige contra aqueles que destroem impiedosamente o que nos é caro, devastam nossa riqueza natural, social, subjetiva, afetiva, política. Brutalidade comparável, talvez, ao assassinato dos irmãos de Witte em 1672, que governavam os países baixos no século XVII e que fizeram Espinosa soltar o único grito urrado de que se tem notícia saído daquele homem que diziam ser tão suave e sereno. Cólera, pois, contra o cavalar revanchismo que vai destruindo dia a dia o pouco que se havia conquistado nos últimos 13 anos, numa sede insana de dilapidação, num desejo de extermínio vindo do conluio das várias máfias que se aliaram nessa política de terra arrasada. Laymert Garcia dos Santos escreveu a que ponto esse movimento visa a destruição de um País que tinha, por fim, conseguido erguer a cabeça na cena internacional. Ele tem mil vezes razão.
É preciso dar nome aos bois. O nome disso é guerra civil.
Ora, como entrar numa guerra sem necessariamente aceitar a belicosidade que dela emana? Como combater o adversário sem espelhá-lo? Trata-se de retomar o poder ou de expandir a potência? Não seria o caso, menos de tentar ocupar o lugar daqueles que tomaram de assalto o Estado do que ocupar ruas, praças, escolas, instituições, espaços públicos privatizados, experimentar novas formas de organização, de auto-organização, de sociabilidade, de produção, de subjetivação, mas também, e justamente isso é que parece o mais paradoxal, novas modalidades de despossessão, de deserção, de destituição, de dissidência, de esquiva, de dessubjetivação? Não é essa a combinação mais paradoxal e mais urgente? É preciso derrubar a corja de bandidos que sequestrou o Estado, quebrar o monopólio das corporações que os sustentam, mas como fazê-lo sem entrar no jogo em que saímos vencidos de antemão, já impregnados pela lógica do adversário, de seus aparelhamentos, das paixões tristes que isso suscita por toda parte? Talvez ainda não se tenham inventado máquinas de guerra à altura da eficácia da megamáquina financeira, policial, midiática, jurídica que se instalou. Mas tampouco se inventou um modo de combatê-la sem nelas nos enredarmos. Faltam-nos operadores de desativação, como diz Agamben, modos de tornar inoperante, um poder, uma função, não apenas desativando aquilo a que nos opomos, mas também desativando algo de nós mesmos que ainda permanece intacto e que se enreda nos mecanismos vigentes – o Estado-em-nós, o fascista-em-nós. Pois ficamos cativos do que nos aturde ou tortura, num automatismo de ação e reação que corre o risco de espelhar a lógica dos que comandam – somos impelidos a um tipo de revide que relança o jogo, ao invés de reinventar as distâncias, os hiatos, os descolamentos, as cesuras, as desmontagens de nós mesmos – um novo tabuleiro onde nem sequer houvesse lugar para um peão chamado eu, muito menos um bispo, um rei, uma rainha, e seus movimentos codificados.
Peter Pál Pelbart
Texto na edição 39 do Plástico Bolha
Nenhum comentário:
Postar um comentário