segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

A minha heroína


“De meu padrasto lembro o gosto
Colher, isqueiro, pedra, agulha
De minha mãe o sangue exposto...
E um fluido branco que borbulha,
Na vida eu creio, na virtude,
Feitos do escárnio deste mundo
Mas como a vida nos ilude!
Ferem, mas quietam o Eu mais fundo...
Fugi de casa, fui surrada
Os dedos fortes, mas tremendo
Porque, bem, sempre fui ousada...
Uma seringa vão enchendo...
Mas tudo passa, e eu logo esqueço
E pouco a pouco o vidro aviva...
Que a morte é só um recomeço!...
Por ter o braço em carne viva,
Garoto, a dor, se é grande, some;
Encontra um canto em seu pescoço,
Sei que perdi meu próprio nome,
Onde se fura, num caroço,
Mas me arde, da época de criança,
Ali, no meio dos inchaços,
Uma sagaz perseverança...
Dobrando o cotovelo em laços,
Necessidade, e o meu vazio,
Se dá ao fluido da seringa...
São por que aos clientes só sorrio...
Bem sob o queixo, então respinga
Olha, eu nem sonho, nem escolho,
Seu sangue, como o meu, vermelho,
Mas quando canso me recolho!
Que escorra, ruim, até seu joelho!
Eu sei que me acham vagabunda,
E a perna, um tanto amolecida,
Carne passada, de segunda...
Arqueia, trôpega e sem vida...
O mal, lembranças e o abandono
Suas palavras já confusas
Se vão conforme vem o sono!
Se erguem como entre exaustas musas...
Prefiro no êxtase as flebites
O seu torpor lhe leva ao chão,
Do que me atar a meus limites!
E ela descansa o coração...
Não sou vilã... nem sou Iansã...
Vai balbuciando a tal pequena
Não sou Iansã... nem sou vilã...”
- Por isso a vida vale a pena,
E tu, ó minha fiel menina,
Cais como toda boa heroína!


Guilherme Ottoni

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