segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

As cartas ou Do homem que foi engolido por uma mulher com dentes de liquidificador

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Meu melhor amigo do último quarto de hora acha espirituoso brincar de soldadinho com filósofos franceses — Imagine só: Deleuze contra Foucault, quem você acha que ganha?
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Assentamo-nos — um valete de copas, uma dama de espadas e um rei de ouros — nos vértices de um triângulo imaginário. Somos simpáticos. Trata-se de um senhor valete encantador. Dentro de um simples colóquio de três pessoas, consegue surrupiar, através da fixação do olhar acima de nossas cabeças, a intimidade e a aprovação de uma legião inexistente de seguidores. Orador de alcova, saberia fazer, creio eu, as confissões mais doces e íntimas com um megafone. Mas está constipado. Trata-se de um senhor valete que sabe fungar. Ela, dama por sua vez, mastiga cigarros num embevecimento que me comove.
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Meu melhor amigo do último quarto de hora gosta de seus escritores beatnik bem passados — O Henry Miller bailava no jardim de infância perto da vida que o Kerouac levava — ricto compenetrado — quero ser como o Kerouac quando eu crescer.
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Discorremos sobre signos, a nova geografia dos países da antiga Iugoslávia, ele gosta de culinária, os trágicos rumos do teatro, primos sifilíticos, ela também, acampamentos inundados em Bangladesh, deve ter o paladar muito apurado, as corruptelas do magiar, cortes de barba para ditadores, artrites, acha que tem apenas uma boca sensível, fertilizadores japoneses, o amor segundo as revistas, não duvida.
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Meu melhor amigo do último quarto de hora não fala de Balzac depois das seis da tarde – C’est fort, c’est excessivement fort.
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Temos pernas parecidas, ela e eu. Ambos cruzamos para a direita e só depois passamos para a esquerda. Direita e esquerda, esquerda e direita: e caímos na questão da tradução para o italiano. Ela afirma ter certeza de que é per favore. Ele discorda veementemente. Sibila que por favor é sempre prego. A legião invisível estremece, buliçosa: em casos mais formais se diz per cortesia, peeer cor-te-sii-aaaa. Ela recolhe, aos poucos, aos bicos: peeer cor-te-sii-aaa. Peeer cor-te-sii-aaa. Peeer cor-te-sii-aaa. Entendo que tenha gostado deste pequeno capricho.
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Ela se vira e esconde a boca atrás do espaldar de cadeira. Após um breve olhar de soslaio do senhor para mim, ela tem súbito interesse em me estudar fixamente. Um ‘já disseram que a senhora tem uns olhos de comer capim?’ me percorre a espinha, inconstante. Sinto nos nervos de trás uns floreios estranhos.
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Meu melhor amigo do último quarto de hora soletra o-t-á-r-i-o nas minhas costas com a ponta dos bigodes.
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Uma mandíbula descomunal se ergue detrás da cadeira, a boca de quarteirões de largura, que cresce, que cresce, me engalfinho à perna de uma mesa, o traço reto do batom nos lábios se difunde em rachaduras homéricas, que aumentam, que aumentam, vales nos cantos da boca dessa mulher, quero xingar todos em russo, mas não sei como, como se deleitam!, ela tem dentes de liquidificador, a goela agora é um mundo todo, não vejo mais nada, ela quer me comer, oh Deus, ela vai me comer, ela me comeu.
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Meu melhor amigo do último quarto de hora, do fundo do mundo, sussurra ao pé do meu ouvido que devo procurar um analista.
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João Francisco Costa Ribeiro já publicou dois contos no jornal Plástico Bolha e a equipe do jornal não vê a hora de receber mais de seus textos. Este, publicado na edição #15, de agosto de 2007, foi ilustrado pelo nosso super-ilustrador Angelo Abu.

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