segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Figurando um planeta


Houve um tempo em que tudo era mais simples e plano. Até o planeta era plano. Um mundo do tipo match column A and column B:

(1) céu                      ( 1 ) conecta duas unidades em uma oração
(2) da                       ( 3 ) para muitos, representa onde tudo começa e onde muita coisa termina
(3) boca                   ( 2 ) frequentemente aparece em caso de posse inerente

Nesse mundo, correspondências eram óbvias. Os nomes dados às coisas eram seus nomes certos, e era possível dizer por meio da palavra o que era e o que não era. Quanto às orações, não a todas cabia um julgamento entre verdadeira ou falsa: às orações, por exemplo, não cabia. Assim, os habitantes desse mundo não eram deixados cair na tentação de misturar da linguagem suas parcelas racional e poética; amém.

É importante (?) declarar qual seria a parcela racional e qual seria a poética, porque, estando em outro mundo hoje, pode ser que não tenhamos esses aspectos tão evidentes – não sei bem se algum dia alguém os teve de fato, mas sei que acreditavam ter. À parcela poética correspondem todos os usos metafóricos da linguagem: os usos escorregadios, bêbados, incertos, deslizantes. Um óbvio exemplo desses casos seria “Aqui minha nave se deteve”. Não pelo uso hoje bastante estranho da palavra nave (não significando uma nave espacial, mas sim um navio), ou por dizer que a própria nave se deteve, quando ela certamente foi detida por alguém, mas pura e simplesmente pelo uso do verbo deter-se. Sabemos, é claro, como falantes da língua, que deter-se é um termo genérico, e que a este caso melhor caberia o uso específico. Não sabemos? “Aqui minha nave ancorou” seria a forma literal de dizer tal frase; o fato de a nave ser personificada nesse caso deve ser, tal qual a resistência do ar, desprezado.

A outra parcela de linguagem, aquela que é racional, opera de modo diferente. Ela é simples, direta, e pode sempre ser julgada em verdadeiro ou falso. “Michel Temer exerce seu poder de modo ilegítimo”. Essa é uma declaração, puramente racional, suscetível a julgamentos subjetivos, desprendida de qualquer termo figurativo. Diferente de quando se diz que “Michel Temer, tal como um vampiro, suga nosso sangue”. Apesar de me parecer que essa também pode ser julgada como verdade, analogamente à primeira. Mas vai saber. Se são padrões tão bem delimitados e indiscutíveis, melhor não ficar procurando chifre em cabeça de cavalo.

Reasseguro aos leitores a certeza que esse mundo trazia de que as metáforas da linguagem são o simples transporte de nomes de uma coisa para outra. Claro, inteiramente controlado e regrado. O fato de a palavra “transporte” aqui ser usada também personificada e fora da sua forma mais tradicional e literal deve novamente ser descartado pelos leitores, mais perspicazes e atentos do que desejamos para o momento. Por enquanto fiquemos agarrados à impressão de que falas figuradas são erros em meio a um sem-número de absurdos, insinuadoras de ideias erradas e consumadas fraudes. Fora do meio poético, só servem para enganar e persuadir. Que nem os sofistas.

Mas eis que um dia o mundo arredondou. As pessoas também. Os entendimentos também. A linguagem também. Assim, ficava difícil definir tudo em termos diametralmente opostos, porque nada parecia ter só dois lados, como são as coisas planas. Ingenuidades precisaram sair de cena para dar lugar a dúvidas. E como dúvidas não têm valor em lugar nenhum, as explicações precisaram passar a ser tantas quantas pudessem ser as ocorrências. Precisamos das caixas. De muitas caixas. Nos munimos de um arsenal de caixas para fazer tudo caber e ser devidamente categorizado. Nunca esperamos nos deixar soterrar pelo excesso de possibilidades, nunca esperamos não estar num ponto alto o suficiente para recortar a onda e observar seu único movimento. (O leitor atento pode aqui observar que a ingenuidade nunca nos deixou inteiramente.)

A língua também foi vítima das caixas. A parcela racional foi lacrada e uma etiqueta que dizia GRAMÁTICA NORMATIVA foi colada bem na sua frente. Suas possibilidades de movimento foram lançadas ao mar aberto (e Palomar nem viu). Lá dentro dessa caixa, vários compartimentos foram colocados para delimitar bem o funcionamento de cada uma das partes. Tolinhos, nem viram que os conteúdos se liquefaziam e passavam por entre os compartimentos com muita facilidade. Os que não
se deram conta disso em momento algum seguiram firmes, acreditando terem resolvido todos os problemas da linguagem racional, sóbria e orientada, e partiram para a outra parcela.

A parcela poética, figurativa, periférica da linguagem também foi encaixotada. Na caixa, um papel que dizia METÁFORAS já vinha de fábrica colado. Consideravam que elas fossem um gênero do qual todas as ocorrências seriam apenas espécies; o guarda-chuva sobre o qual todas as emissões bêbadas se abrigavam. Depois parece que repensaram, encontraram mais umas classes que mereciam se juntar ao gênero, e mudaram para um nome mais genérico: FIGURAS DE LINGUAGEM. Diz-se também que no estágio inicial da caixa, não sentiram necessidade de colocar compartimentos, mas
depois viram que podia ser melhor ter lá um ou outro. Traçaram a princípio três: metáfora, metonímia e sinédoque.

Depois disso, parece que perderam o senso. Tudo desandou. Saíram dividindo e redividindo, e então dividindo uma vez mais para tentar abrigar caso a caso com a maior distinção e o maior detalhamento possível. Explodiram não sei quantas definições, e nunca deixam de surgir mais. Lembro-me que certa vez, pelos treze anos, dediquei dias ao esforço de redigir um resumo de toda a matéria do ano. Constavam lá as famigeradas. Eram, à época, onze: comparação ou símile (quem diria que comparar duas coisas era na verdade um recurso estilístico decorativo); metáfora; prosopopeia ou personificação; hipérbole; eufemismo; disfemismo; antítese; ironia; sinestesia; metonímia; antonomásia. A maioria delas era facilmente percebida em discursos correntes do dia a dia, portanto foi curioso perceber que seriam assunto de prova e tema de aprofundado estudo nos anos escolares.

Quando concluí que até tinha certo sentido debruçar algum olhar cuidadoso sobre esses fenômenos esquisitos, descobri que tinham mais casos: paradoxo; anáfora; pleonasmo; coisificação ou reificação. E mais: aliteração; pleonasmo sintático. E mais: silepse, catacrese, elipse, zeugma, quiasma. E hipérbato apóstrofe gradação assonância paronomásia onomatopeia polissíndeto assíndeto anacoluto perífrase e por aí vai aparentemente sem poder nem parar para respirar. Pausa.

Ouvi quinhentas vezes e disse aqui quinhentas e uma (hipérbole; zeugma) que as figuras de linguagem pertencem à parcela da linguagem poética. Ornamental. Figurativa. Decorativa. Talvez os habitantes do mundo plano olhassem hoje para o que fazemos com as metáforas e as enxergassem como golpistas que se apropriam de um lugar da linguagem a que não deveriam pertencer. Diriam: Não é certo que não encontremos outro nome para dizer pé da mesa ou céu da boca ou braço da cadeira sem que pareçamos ridiculamente desconectados da nossa própria língua. Não é certo que não encontremos força nas expressões literais para comunicar o que desejamos. Não é certo que não vejamos saída e forma de estar na língua que não envolva esta parcela que antes julgavam tão descartável. Não é certo que o inútil, recusável e imperfeito canto a que relegamos as figuras se misture e de repente seja tão racional quanto o campo racional.

Há algo que parece muito engraçado, curioso ou patético da parte dos que legislam sobre a língua (e aqui digo dos que de fato legislam, não de uma possível analogia com certo tear de que certa vez ouvi falar). Eles seguem buscando o estrito caroço de um conceito. Já existe uma palavra para falar sobre casos em que designamos a um ser um outro nome próprio para que se o reconheça, por exemplo. Não digo por isto chamar Montecchio de Capuleto; digo chamar Pelé de Rei do Futebol, chamar Rio de Janeiro de Cidade Maravilhosa. Mas alguém um dia achou que era bagunça colocar pessoas e tropos sobre a mesma classificação, e bipartiu: perífrase e antonomásia. Fez assim também para elipse e zeugma; metáfora, metonímia e sinédoque; e um bocado de outras variantes. Aliás, parece que fez assim para tudo. Explodiu em pormenores aquilo que nenhuma divisão ultradetalhada será capaz de encerrar.

Vazam. Vagam. Vagueiam. Esvaziam. Escorrem por entre os dedos as línguas os ares as mentes sem que sequer nos demos conta. Não damos conta. Nada dá conta. Talvez tentemos controlar a língua quando na verdade ela nos controla. Talvez tentemos chamar de metáfora uma parcela da língua quando ela é o todo e mais um pouco. Talvez pensemos no substitutivo em lugar de aditivo. Vai saber. Não sei. Concluo nada e penso muito. Deixo aqui em suspense o suspense de lidar com a linguagem figurada que talvez melhor seria dita linguagem protagonizada. Vai saber.





Caramba! Já agora, indo embora, me dei conta de uma falta gravíssima! Desculpe, leitor. Sabe o que é? Não me curei dessa doença de ser artista. Isso faz mal, a gente acaba imitando um pouco as coisas do mundo real sem nem perceber. É por isso que acabei copiando aqui uma frase ou outra de Platão, Aristóteles, Locke, Hobbes, Calvino, Eco, Helena Martins. Seria uma pena se eu ficasse de fora da República por um deslize desses... Mas, afinal, quem no Brasil hoje não está?

Yasmin Barros


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