segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O torneio


Foi na esquina da Marnoco e Sousa com a Dr. Júlio Henriques, no Bar do Borges. O ano, penso que 2015. Era a final do campeonato de sinuca e o pequeno estabelecimento mal suportava a quantidade de estudantes que se apinhava ali, uns em cima dos outros, ao redor da mesa. O barulho intenso de risos, gritos e choque de copos invadia a rua silenciosa, às duas da manhã, e ecoava por pelo menos dois quarteirões acima, subindo na direção do Penedo. Quem entrasse por último não acharia possível dar um passo a mais em meio aos corpos que se apertavam, mas no final, sempre cabia mais um. Uma vasta e densa fumaça de cigarros se acumulara no teto, dando ares de neblina às fracas luzes da casa. Todo ano seu Borges colocava os móveis nos cantos e trazia a mesa que jazia sob o pó da garagem. As bolas, de tão velhas, perdiam a tinta, e a branca tinha traços pretos e indeléveis que algum inconsequente havia desenhado.

Durava cada vez mais aquela confusão, porque todo ano aumentava o número de participantes. Havia estudantes, professores e funcionários da Universidade de Coimbra tentando a sorte. Neste ano cinco finais de semana foram necessários para se chegar aos dois últimos contendores. Arthur, detentor do título, graduando de História, jogava com os incentivos da namorada, a francesa Delphine, que com a cabeça cheia de imperiais consumidos ao longo de pelo menos cinco horas, soltava, vez por outra, palavrões em sua língua pátria, logo encobertos por uma saraivada de impropérios lusitanos. Jorge, quarto ano de Medicina, argentino alto como um tronco de árvore, nunca participara de uma final, mas tinha naquele ano eliminado com extrema eficiência todos os seus adversários, que não foram poucos, diga-se de passagem. Ao contrário do seu oponente, que começava a ficar um tanto vermelho por conta das taças de vinho consumindo ao longo do torneio, Jorge não ingeria álcool. Em compensação fumava um cigarro atrás do outro.

A excitação era intensa. A partida ganhara ares de final de copa do mundo. Delphine, namorada de Arthur, de postura selvagem por trás dos olhos pequenos e pretos, explodia a aproximadamente cada vinte minutos, para reclamar dos cigarros: Mais arretez cette fumée de merde, connards!, ao que se seguia um murmúrio incompreensível de expressões confusas, oooooeeeoopáááá, ôôôôconarda é tu, ó parva! – e a fumaceira continuava. A gritaria só se suspendia um pouco em duas ocasiões: quando chegava uma nova rodada de cerveja, que Maria trazia a muito custo equilibrando a bandeja acima da cabeça, sob as orientações já não tão seguras do velho Borges, bêbado, os cotovelos no balcão, a observar a partida com seus olhos turvos; ou quando um dos competidores se preparava para dar sua tacada. Era um instante de silêncio, como se estivessem todos na quadra de Roland Garros, só entrecortado pelas vozes da francesa, que nesse instante encontrava sempre o que dizer, ainda que ninguém a compreendesse. Depois tudo voltava ao normal, as mesmas vozes altas, o tilintar dos copos, os gritos e conversas intermináveis, a variação nos valores das apostas sendo lançadas aos gritos de uma ponta a outra do bar, com o Pedro, um sujeito de óculos embaçados pelo suor que se mantinha em pé em cima de uma mesa, a anotar no seu caderninho o aumento ou a redução de euros envolvidos na jogatina.

A partida estava difícil para Jorge. Nunca chegara tão longe no torneio e aquela euforia mexia um pouco com seus nervos. Começou sendo praticamente massacrado, o adversário distanciando-se com segurança na pontuação. Depois, da metade da partida em diante, Arthur perdera a concentração, permitindo que o argentino se aproximasse. De tal forma que a mesa agora se esvaziava com equilíbrio, bolas eram encaçapadas de ambos os lados. O nervosismo não permitia que qualquer dos oponentes se impusesse e terminasse o jogo de uma vez. Erravam-se tacadas fáceis, e em lances mais difíceis, algumas vezes, ocorriam pequenos milagres. A torcida seguia as emoções do jogo como o par de uma dança excitante, com rompantes de alegria e momentos de decepção, a depender das afinidades, e à medida que se reduzia quase a zero o número de bolas, a tensão atingia o ápice. 

Os derradeiros movimentos eram a partir de então acompanhados por um silêncio profundo. A bola branca batia com violência nas outras, ninguém queria deixar de graça os últimos lances ao adversário. Além dela, só mais duas restavam no tapete verde. Na vez de Jorge, o futuro médico conseguiu pôr na caçapa a penúltima esfera e ainda deixou a branca numa posição perfeita para finalizar a última – a preta. Um murmúrio percorreu o ambiente, cabeças viraram para não ver e, sobretudo, para não ter que desembolsar quantias financeiras já estratosféricas. Arthur recostou-se no banco alto, segurando o taco encostado no chão, entre os dois pés, a ponta na direção do teto. Delphine segurava seu braço. Cochichavam-se comentários técnicos. Jorge se concentrava, a boca contraindo-se em meia palavra dita para si mesmo. 

Contaria mais tarde que refletira bastante sobre aquela jogada pouco antes de executá-la. Deveria colocar suavemente a bola, como exigia, certamente, a situação, ou finalizar com violência, para causar um efeito na plateia? A proximidade da vitória, o rush de sangue que lhe correu pelas veias foi decisivo: terminaria com uma forte batida de mão esquerda (era canhoto), tomando cuidado, claro, para posicionar o taco de maneira a que a bola branca não seguisse a preta no buraco, mas retornasse de onde partira. Posicionou-se. Jorge pôs a mão direita firme sob o taco, fazendo um “v” com o polegar e o indicador, ao passo que com a esquerda movimentava, num pêndulo preciso e concentrado, o instrumento da vitória. 

Tudo ocorreu muito rápido – muito mais do que o ritmo de qualquer narração. A pancada veio violentíssima, acompanhada por um estalo característico, mas decuplicado em intensidade sonora, e pelo grito de Delphine: nom de Dieu! A bola branca não se movera um milímetro. Não é que Jorge não a tenha tocado, ao contrário: acertou-a em cheio, justo onde queria, mas ela se manteve ali, imóvel, sólida como uma rocha, e o resultado foi o estudante sofrer o imediato contragolpe daquela imponente inércia: foi jogado para trás com a mesma força que havia usado para atacá-la, o taco partindo-se em dois e o jogador caindo de costas no chão, não sem antes atropelar uma cadeira, cujos quatro pés se quebraram como frágeis palitos de fósforo.

O estrondo de um trovão fez tremer os alicerces do Bar do Borges. Era a gargalhada dos torcedores, misturada a copos estilhaçados no chão e a gritos ensurdecedores de gozo incontido. Riam a plenos pulmões, apontando para o infeliz, como teriam feito de alguém que vissem tropeçar e cair no meio da rua. O argentino, estatelado no chão com as mãos apoiadas para trás, olhava o pedaço de madeira partido com ar assustado. Fixando a bola branca percebeu, pela primeira vez e antes do seu lendário desmaio, que o desenho que nela fizeram eram dois olhinhos pretos e uma boca. Os olhos o encaravam; a boca sorria.

Bruno Mendonça

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