Eu não descanso à noite. Preciso ficar acordado, em
alerta, atento a todos os perigos que a escuridão pode propiciar. Todos os
dias, ao anoitecer, procuro um lugar seguro para não dormir. Eu moro nas ruas.
Antes que você se afaste de mim, deixa eu lhe dizer que, ao contrário do que
muitos pensam, cada um leva esse tipo de vida por um motivo diferente. Eu não
sou bandido, não uso drogas, não sou alcoólatra, não faço mal a ninguém. Sou
pescador e sou como todos os meus companheiros de calçada, um cidadão com nome
e biografia.
Deixei o meu rio para trás e caminhei por 18 dias
para mergulhar em outro Rio, o de Janeiro. Contudo, este aqui me recebeu com
tanta dureza quanto o de lá, que me expulsou com a sua aridez. As economias
para financiar a minha jornada acabaram e eu não consegui trabalho, roubaram
meus documentos, fiquei doente, acreditei em falsas promessas, me perdi,
literalmente, me reencontrei absolutamente e consegui sobreviver.
Estou acostumado com a incerteza do amanhã e com o
temperamento da natureza. Espectador de lindas madrugadas de boa pesca, já
adormeci sob um cobertor de estrelas, mas também rezei para acalmar um temporal.
Testemunhei alvoreceres dourados, mas já fervi dentro de um caldeirão refletido
no espelho d’água. Talvez fosse meu preparo para encarar a batalha diária para
me manter vivo nas ruas. Ancorado no meio do deserto de águas rasas em
silêncio, enquanto esperava um escasso cardume de piabas encontrar a minha rede,
eu lia histórias do mundo, poesias, contos, romances, atlas e até dicionários
de idiomas estrangeiros. A biblioteca da vila era tão importante quanto o
mercadinho, pois era de lá que eu conseguia alimento para a minha alma e me
nutria rumo ao êxodo. Posso dizer que a minha viagem começou nos livros.
Na cidade grande, sofri preconceito pela minha
origem humilde e pela falta de um diploma. No entanto, minha forte intuição e
alguma sabedoria natural me fizeram ir ao encontro de uma inusitada forma de
sobrevivência. Meu olhar de leitor assíduo, sentindo-se em abstinência, começou
a buscar nos lixos e descartes a literatura desprezada por alguns, mas preciosa
para outros. Comecei a recolher livros usados — num primeiro momento, para
consumo próprio — para revendê-los nas calçadas, expostos sobre a minha
inseparável rede de pesca, que funcionava como travesseiro, cobertor, assento
ou simplesmente amuleto da sorte.
As doações também começaram a chegar, assim como as
pistas de onde recolher mais tesouros abandonados. Precisei até de um carrinho
de mão para circular com o que passei a chamar de barcoteca ambulante. Fiz uma
proa colorida com recortes de revistas, uma cabine de garrafas plásticas para
proteger os livros, e escrevi na popa com as maiores letras das manchetes de
jornal: Barcoteca do Beto.
Jogava a minha tarrafa de livros onde o terreno
parecia mais promissor.As capas coloridas me lembravam da época em que diversas
espécies diferentes de peixes emergiam na trama que eu mesmo teci. Porém, quando
as vendas baixavam demais, navegava para outro porto, assim como fazia nas
épocas de baixa pescaria. Alguns clientes eram simpáticos, pagavam além do
valor, outros davam uns trocados mesmo quando não encontravam nada de
interessante e elogiavam meu trabalho. Todavia, sabia que também estava cercado
de olhares de intolerância, repulsa e desprezo. Ouvi palavras de ódio e ameaças.
Resisti algumas vezes, discuti em outras, mas decidi que sempre que me sentisse
indesejado, recolheria a tarrafa, moveria as rodinhas da barcoteca e iria desbravar
outros mares, pois os livros precisam estar onde são bem-vindos.
Certa vez, fiz parada em frente a uma linda
construção colonial, local de passagem de muitos estudantes uniformizados
acompanhados de seus professores. O lugar, além de cercado de verde, parecia-me
ideal para alavancar as vendas das coleções de gibis e histórias infantis
encalhadas há um tempo no meu acervo. A clientela de leitores deslanchou.
Pesquisadores, universitários e quase todos os visitantes do local davam uma
paradinha na minha rede, antes de entrar no magnífico quintal do paço. Por um
bom tempo, eu tive a honra de ser conhecido como o livreiro do Museu Nacional.
Às segundas-feiras, como não havia visitações, buscava mais livros para atender
aos meus pequenos leitores. Durante o dia, era protegido pela sombra de uma
árvore centenária à entrada da propriedade, de frente para um gramado verde que
me enchia de esperanças. Minha estada por lá foi a melhor de todas. Consegui
até um refúgio seguro e silencioso nos fundos do palácio — frequentado somente
pelos animais noturnos — para poder finalmente cochilar um pouco durante a
noite, tendo como vizinhança um jardim zoológico.
Numa madrugada, como de costume, despertei do sono
leve de quem consegue adormecer na rua e dediquei um tempo à vigilância noturna
da área. Não ouvi o som das sementes espalhadas pelos morcegos frugívoros
caírem pelas folhagens. A conhecida coruja estava agitada no galho como
cachorro dando sinal de invasor na casa dos donos e alguns gatos ariscos cruzavam
as divisórias de plantas como se partissem em debandada. Levantei-me voltado
para o habitual panorama da fachada traseira do museu e estremeci. A janela
mais baixa do lado esquerdo estava completamente vermelha e fumegante. Era fogo
e eu não sabia o que fazer. Em poucos instantes, a janela ao lado também
começou a queimar.
Corri até o telefone público mais próximo e tentei
falar com os bombeiros que, desconfiados, provavelmente pensaram se tratar de
um trote, afinal, quem seria o sujeito que pedia socorro sem ter sequer um
endereço para informar nos seus dados de identificação... Eu me desesperei a
gritar “Fogo! Fogo!”como se fosse o único habitante de um planeta oco. Foi
quando tive a ideia de lançar a maior pedra que consegui na janela de uma
residência próxima. Um homem acendeu as luzes da casa e esbravejou:
— Vou chamar a polícia, vagabundo!
Respondi prontamente aprovando o pedido numa
súplica desesperada:
— Chame rápido porque o Museu Nacional está pegando
fogo!
Ele, no entanto, fechou a janela e apagou a luz,
enquanto o incêndio do outro lado da rua tomava,a cada precioso minuto, a vida
do meu único porto seguro.
Aguardei estático por cerca de meia hora com os
olhos vidrados na transformação do palácio iluminado em uma gigantesca tocha
rúbea, ao som do tilintar cruel das chamas consumindo tudo o que podiam. Até
que a sirene dos bombeiros me despertou do estado de inércia para o choro
compulsivo de quem perde o leme mais uma vez.
2 comentários:
Comovente, Andréa, de um lirismo cativante.
Parabéns! Belíssimo conto!
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