Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Antonio Cícero
A questão que me pega é sobre o motivo que tenha conduzido Samuel Rawet a guardar seus recibos de tinturaria. Se eu fosse apaixonado pelo tintureiro, provavelmente guardaria aqueles papeizinhos. Guardaria, se tivesse, sua assinatura pela simples razão de, como paixão guardada no peito, me valer do risco em tinta no papel – com um toque distraído, descompromissado, mas toque. Colecionaria aqueles autógrafos pela casa. Dessa forma, tanto pareceria produto da minha bagunça, acaso, inadvertimento, quanto não teria a preocupação de manter meu amor e seus papéis todos selados numa caixinha no fundo do armário entre as roupas para que ninguém os descobrisse.
Propunha essas coisas enquanto tentava organizar o pensamento, escrevendo, sentado na sala 114. As janelas abertas, eram ainda 14h quando reparei que a sala estava vazia e entrei. Do lado de fora, a chuva caía de sua maneira peculiar de cair pela PUC: como uma pluma. Gotas levíssimas. O caso Rawet era minha preocupação havia um tempo. Em seu recém-montado arquivo, em meio a cartas, projetos de engenharia civil e produção intelectual de qualidade inédita, havia muitos recibos de tinturaria. De tudo quanto se podia guardar num arquivo (no de David Zingg tem um acervo vasto de negativos e um par de sapatos), a reunião daquele tipo de notinhas ainda causava estranhamento.
A sala estava zoneada. Ou melhor, organizada de outra maneira que não a de uma métrica rígida, repetida, apenas um ritmo diferente de se dispor as cadeiras e mesas. Tirando eu e elas, só o ar preenchia a sala. Estava sentado para perto da porta. Foi quando o ouvi limpando a calça. Seria Lúcio? Descruzou as pernas, as abriu, e passou a palma pela calça de algodão. A calça entre azul ou preto, a blusa de manga comprida azul marinho. Cruzou novamente as pernas e os braços. A cara de enfado. Mas não o vi. Sentado para perto da porta, mantive-me no trabalho de detetive. Queria esmiuçar outras possibilidades para o caso, mas só conseguia pensar em Rawet e seu tintureiro. No mais clichê de duas mãos se tocando e olhares se trocando, ou na aversão do tintureiro a alguma abertura dada por Rawet, ou no mecânico em que nada de esplêndido acontece mas o coração do escritor bate mais rápido e ele sai da tinturaria com o ventre apertado gaguejando o que nem tinha para falar. E então voltando ao lugar onde se hospedava. A cabeça no carinho, no medo ou na insegurança. Quem sabe um dia chegou a tomar coragem. É o que eu faria. Levaria tempo, colocaria o corpo todo em preparação. E quando falasse, seria correspondido? e talvez não precisasse mais pagar, uma vez que o namorado tintureiro faria aquilo por favor. E se não fosse? e se fosse repelido? teria que mudar rapidamente de tinturaria ou mesmo parar com o serviço. Para essas possibilidades, o fim indicava uma expressão nos dados retidos.
Como faz parte do meu método, eu iria começar (e comecei) a criticar os caminhos que tomavam os meus argumentos. Por que jogava toda a culpa sobre as paixões? Mesmo para o caso de alguns recibos recolhidos, botava na conta de um amor. O que, por sua vez, é culpa dos romances. Fui a Bolaño. É bem reconhecido o uso que ele fez do romance policial como recurso de alcance ao público. A mim parece que falam que o detetivesco de seus romances seja puramente a forma que encontrou de falar dos amores humanos sem ficar preso às prateleiras e aos rótulos do intimismo; que os amores humanos são sua questão fundamental, toda a intenção de suas obras e que usa do recurso policial com mero meio de chegar a esse fim. Porém mesmo os amores humanos são mote de muitos best-sellers. Claro que com uma outra configuração, algo por vezes mais melodramático ou apelativo. Contudo, da mesma forma que Roberto Bolaño pode reconfigurar o romance policial a seu serviço, também o pode ter feito com as paixões – deixando sua questão para outro traço ou argumento a ser descoberto. Da mesma forma, eu poderia estar atribuindo a razão de um amor à história para que ela pudesse se tornar atraente para mim. O fantasma de Lúcio Cardoso soltou uma risada irônica de canto de boca. Estava largado na cadeira.
Pensei então que podia seguir o método oposto: atribuir ao fato da reunião dos recibos um motivo que me fosse desinteressante. Difícil. Tento me esforçar para não engessar meus horizontes de perspectiva. Tento achar que tudo quanto exista possa ser atraente. Ou que não gostar de certas coisas é como uma violência e que devo me abrir à experimentação. Nisso, lembrei de uma conversa com Diam no bar. O “m” em Diam é pronunciado como em latim, logo, não seria algo como “Díão”. Ele contou de como havia sido lidar com o arquivo do Rawet enquanto o organizava. O que mais mexeu com ele era a paranoia do escritor. Disse, de camisa aberta, peito desnudo, e um copo de cerveja na mão, de um caso dele envolvendo polícia. Certa vez, o escritor chegou numa delegacia querendo denunciar todos seus vizinhos por estarem perseguindo-o. Todos os seus vizinhos. “Os problemas clássicos: álcool, xenofobia, sexualidade marginalizada. E problemas seríssimos com o conceito do judaísmo e com a família”. Eu acho que não falei mais nada. Mas agora essa pista me abre um caminho. Dentro das paranoias que vi de perto, algumas necessitavam da marca de estar vivo como fuga. Não cair na ilusão de ser si próprio um fantasma. Para isso, tomar do habitual. Pião da origem. Nesse caso, o costume de ir à tinturaria se transforma nesse denotável e ter isso guardado era para ele confirmação de viver. Lá fora, a chuva dava trégua – ainda que seu cair seja uma trégua ele próprio. Começava a decantar a luz do dia. Nesse instante, o balançar da perna cruzada do fantasma de Lúcio Cardoso fazia-se audível.
Minha caneta começou a falhar. Saí um pouco do ritmo da escrita. Olhei para fora e lembrei das vezes em que, nos primeiros períodos, abria o janelão, pulava e olhava para a enorme parede de mato. Podia-se facilmente passar dali para outro lugar, sair por outra sala. Mas isso não se fala. Depois fiquei olhando o quadro enquanto rabiscava o canto da página para que a tinta voltasse a correr. Não gosto de fazer isso, parece desgastar demais o papel e depois guardar nele tanto a marca de um erro quanto a marca do descontrole – da própria natureza do rabisco. Todavia, se incorresse em queimar a ponta da caneta (técnica infalível), deixaria o metal borrado pelo fogo. Como se rabiscasse também nele. No quadro, vinha escrito apenas o sobrenome de Ludwig Wittgenstein. Lembrei da parte de um sonho que tive. Estava na UERJ e comentava estar estudando-o com alguém. Um menino branco de cabelo ruivo então fala: “ah, até acho ele interessante, mas não me desce isso de que só existe uma opinião, um (esqueci), ou só a cor azul – e que o resto seja puro acaso”. Acho que Wittgenstein nunca falou isso. Ou que isso tenha de alguma forma a ver com seu pensamento. Falaram-me, não faz pouco tempo, que muitos animais, como peixes, não refletem a cor azul de fato. Têm apenas um pigmento chamado furta-cor que os dá essa tonalidade. Os gregos não tinham, nos cantos de Homero, uma palavra para azul. Na Odisseia ou na Ilíada, o mar é negro, o céu é branco. Nada de azul: só acaso? A caneta começa a soltar sua tinta. No fundo da sala, o fantasma de Lúcio Cardoso tem o braço direito pendido. Sente a dormência em completa inércia.
Matheus Ribeiro A. Lima
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