quarta-feira, 17 de julho de 2019

Um dia quente, de Irma Caputo - Menção Honrosa de Prosa do X PPBPP


Nossa, que calor. Esse cúmulo de cinza toda ainda quente em cima da minha cabeça. Quase me sinto de morrer pela segunda vez. Ainda me lembro quando escutei aquela voz de mulher gritando no meu ouvido, depois de tanto tempo sem som, sem ar, só acostumada àquele barulho abafado vindo de cima. A mulher gritou tão forte que me lembrei do meu último respiro antes de morrer. Gritei tão forte também, tão forte que saiu sangue do meu nariz. O medo faz gritar, se não faz gritar faz recuar e desmaiar. Eu arregalei os olhos, acho que gritei ao mesmo tempo, talvez segundos depois e sim desmaiei. Assim que quando abri os olhos novamente, vi exatamente o bicho levantar a pata para arrancar meu coração do peito. Fiz a tempo de desmaiar pela segunda vez. Assim que tenho uma vaga lembrança da minha morte, desmaiei, acho que foi uma espécie de autodefesa para não sentir a dor do coração arrancado. Que medo que me deu aquele bicho estranho. Hoje vocês chamariam de urso. Na época era algo similar, só que maior e com mais pelo. Também tinha patas que vocês nunca viram. Todo o mundo que passava por mim, antes dessa merda de cinza quente cobrir minha cabeça e aquela porra de calor danado se espalhar por todos os lados, dizia, comentando para os que não sabiam, que na minha época eram os homens que caçavam. Porra nenhuma, quantas vezes me torci por dentro e tive aquele desejo forte de língua e traqueia para voltar a articular som e dizer para todo o mundo que estavam enganados. Estudando estudando e só conjeturando coisas, querendo falar do que não sabiam. Se os homens fossem os únicos caçadores que não teria morrido com a tenra idade de 20 anos. Maldito o meu pai, malditos meus irmãos. Já na época as mulheres faziam tudo. Hoje vocês chamariam de trabalho doméstico e trabalho externo, na época era tudo junto e misturado e escandia o tempo do nosso dia. A gente não tinha relógios. Na minha época o tempo era medido por dentro, com base no que sentia o nosso corpo (a hora de comer, a hora de dormir, a hora de foder, a hora de cagar e de mijar), e por fora, com base nos movimentos do céu (o sol que nascia, a lua despontando na linha do horizonte, a treva chegando). Tudo. Eu fazia tudo. A porra toda. Pois, aquela desgraçada da minha mãe também havia morrido bem nova, meu pai matou ela. Na época isso se chamava de direito do homem, hoje ainda acontece, só que vocês chamariam de violência doméstica, embora alguns insanos inomináveis não achem. Sincronicidade do azar. O meu e o seu, ela morria e eu era condenada à escravidão dos machos que só matavam um bicho de vez em quando para poder se mostrar na frente dos outros, dizer que eram os mais fortes para eventualmente ter o domínio. Por quê? Para fazer ainda menos, mais poder tu tinha, menos trabalhava, o negócio era tu mandar os outros fazerem. Para as mulheres nenhuma chance de mandar, sonhei muito com uma tribo de longe, onde, contavam uns homens que haviam viajado, eram as mulheres que mandavam. Tribos matriarcais, vocês chamariam hoje, na época se chamavam bando de mulheres perigosas. Imagina se tivesse o facebook ou instagram, com a vaidade que os homens da minha família tinham, aposto que aqueles merdinhas publicariam fotos segurando os bichos mortos pelas cabeças, assim ficariam mais desejáveis para aquelas putinhas dos clãs mais próximos. Eu sei que não dá para entender nada, que passo de um negócio para o outro, é que o calor sempre me deixou louca. Louca, louquinha. Mesmo. E hoje aquele fogo da porra atingindo tudo, deixou tudo quente em cima de mim, quilos de escombros quentes. Minha cabeça ferve sozinha. Eu caçava, cozinhava, ajeitava aquela cova fria com paredes de pedra e terra batida onde a gente dormia. Os meus irmãos até ficavam em cima de mim, aqueles merdas. Nunca dei para eles. Na nossa época estávamos um pouco mais avançados que os antepassados, a gente já sabia guardar comida. A comida vinha da caça e da colheita, mas a gente não sabia plantar. Enfim cuidávamos do nosso canto, tínhamos um lar fixo, mas para alguns ainda não estava clara a diferença entre a irmã e outra mulher para satisfazer seus desejos. Nossa! Essas vozes de gente chorando... Que incômodo, não me deixam raciocinar. Dizem que não sobrou nada. Quanta interrupção. Enfim, vamos lá, mas é que o calor me deixa louca. Louca, louquinha. Mesmo. E essas vozes abafadas vindo de cima me distraem. Aquele dia, lembro como se fosse hoje, nenhum dos merdas dos meus irmãos levantou nem para ir pegar água. Acordei cedo com uma sede do cacete. Mandei eles se ferrarem, gritei que não teria pego água também para eles. Só curtindo o dia todo e eu ralando para eles. Fui pegar água. Bebi, me lembro aquele sabor de nada fresco, um nada fresco escorregando no meu esôfago. Havia sonhado que quando estamos prestes a morrer, tudo fica mais vívido. Senti cada partícula de água escorrer na parede do meu esôfago refrescando cada centímetro tocado. Não sei se foi a sede satisfeita ou foi presságio. Na época também achei que estivesse ficando louca. Louca, louquinha. Mesmo. Escutei uns moços comentarem dessa situação uma vez que haviam parado na minha frente para me observar. Era uma visita de escola e enquanto o guia falava, eles se haviam afastado para comentar do sábado anterior. Um deles disse que havia fumado um num show de reggae na fundição, e era toda erva natural, o negócio estava tão forte que começou a ter alterações dos sentidos, tudo mais forte, tudo mais à flor da pele, tUUUUUdOOOOOO mais AAAAAAAmplOOOOOOOOO, tUUUUUUUUdOOOOOOOO, mAAAAAAiOOOOOOOr e começou a visualizar a cerveja fria escorregando na garganta, sentia aquele rio de frescura invadir o estômago e cada órgão da ingestão se tornando gelado ao contato daquele líquido frio. Eu sei que não dá para entender, que passo de um negócio para o outro. É que o calor sempre me deixou louca. Louca, louquinha. Mesmo. Nossa! Essas vozes de gente chorando. Quanta interrupção! Dizem que não sobrou nada. Enfim, vamos lá, naquele dia também achava que estivesse ficando louca. Louca, louquinha porque o bofe do clã vizinho me queria, mas o meu pai e os merdas dos meus irmãos não me deixaram ir. Pois queriam algo em troca que não quiseram lhe dar. Queriam uma putinha loura que já estava nas graças de outro cara do outro clã. Toda politicagem. Mas eu gostava do bofe. Pensei que estivesse ficando louca. Louca, louquinha. Mesmo. Decidi ir buscar comida, como pode acordar um bicho sem nada para comer? Aquele dia estava um puta calor, como nesta noite de setembro em que morri pela segunda vez, aquela sensação de abafamento, de calorão. E hoje aquele fogo da porra atingindo tudo, deixou tudo quente em cima de mim, quilos de escombros quentes. Minha cabeça ferve sozinha. Pela segunda vez. Insuportável. Os cientistas dizem, isso sempre sei pelas conversas das pessoas que paravam perto de mim, que há umas mudanças climáticas em cada época, mas uma coisa é certa, um puta calor estava no dia em que o bicho arrancou meu coração, um puta calor estava hoje à noite no momento em que vi fumaças e chamas se aproximando sem um mínimo recuo. Não, na verdade não. Houve recuo sim. Acho que estou ficando louca. Louca, louquinha. Mesmo. Pois bem, em algum momento umas janelas explodiram e a entrada do ar frio gerou, depois de um primeiro recuo, um avançamento das chamas como um efeito pressão. Foi naquele momento que o fogo se espalhou por todos os lados. Alguém gritando, cadê a porra da água? Acho que estou ficando louca. Louca, louquinha. Mesmo. Andei horas redondas para achar um bicho pequeno, daqueles que não me davam trabalho para matar e para limpar. Achei finalmente, o negócio era correr mais do que ele. Caraca, pequeno e ágil, difícil de enfiar aquele bicho, minha lança era curta demais. Estava ficando louca. Louca, louquinha. Mesmo. Pensando no bofe me pedindo para namorar e o meu pai e aqueles merdas dos meus irmãos falando que não. Eu queria o bofe, mas na verdade o que queria mais era me libertar dos merdas. Fiquei pensando se um dia pudesse achar a tribo das mulheres perigosas, ou matriarcais se lhe agradar mais. Linda, livre leve e solta doida para beijar na boca, em vez de bela, recatada e do lar. Bela é o caralho. Recatada é o caralho. Do lar é o caralho. Que calor danado, porra! Minha cabeça está fervendo sozinha. Eles é que estavam me deixando louca. Louca, louquinha. Isso foi o último pensamento que tive antes do bicho vir em cima de mim. Urso, vocês chamariam hoje, se lhe agradar, só que na época era maior e com mais pelo. O medo faz gritar, se não faz gritar faz recuar e desmaiar. Eu arregalei os olhos, acho que gritei ao mesmo tempo, talvez segundos depois, e sim, desmaiei. Assim que quando abri os olhos novamente, vi exatamente o bicho doido levantar a pata para arrancar meu coração do peito. Fiz a tempo de desmaiar pela segunda vez. Assim que tenho uma vaga lembrança da minha morte, desmaiei, acho que foi uma espécie de autodefesa para não sentir a dor do coração arrancado.
Tive medo também nessa segunda morte. As chamas avançando, a porra do calor derretendo tudinho.
Só não tive olhos para arregalar, não tive coração para desmaiar. Só tive o medo.
Estava morrendo pela segunda vez. Condenada às trevas.
Luzia, condenada às trevas.
Aliás, todo mundo me chama de Luzia. Nunca entendi por quê. Que porra de nome é esse, hein? O meu nome até o momento da minha primeira morte sempre foi Ashaki. Acho que tô ficando louca. Louca, louquinha. Mesmo. Luzia, isso sempre sei pelas falas que escutei do povo de latim que parava perto de mim, significa portadora de luz. Engraçado uma pessoa que foi condenada às trevas duplas, 11.500 anos de primeira e agora de novo para quem sabe quanto tempo, se chamar assim. Luzia, portadora de luz. O povo tá de sacanagem mesmo com a minha cara. Deveria me chamar Mnesys. Pois guardo em mim as memórias do mundo. No lugar onde eu estava não tinha ser ressecado mais velho que eu. Eu, Ashaki ou Luzia, que lhe agrade, era a mais importante, mas juro que nunca fiz biquinho quando tiravam selfies comigo. Eles que faziam, eu não, aliás, que saudade tinha da boca. Esse calor danado tá me deixando louca. Louca, louquinha. Mesmo. Se vão me achar de novo será que continuarei sendo Luzia? Pensar que tinha me acostumado. Quase cheguei a gostar. Linha, livre, leve e solta, doida para beijar na boca, nem língua tinha mais. Acho que tô ficando louca. Louca, louquinha. Mesmo.
Mnesys, gostaria mais.

Irma Caputo

Um comentário:

Nivaldete Ferreira Da Costa disse...

"louca, louquinha. Mesmo" para ler também Ó de Nuno Ramos. Descobri-o por acaso ao ler seu estudo sobre essa obra (aliás, espero que você e a autora da tese sobre NR sejam a mesma pessoa...rs... caso não, peço desculpas). Bom "Um dia quente". Um abraço.