sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Clypeasteroida


Sob o rumor das ondas
irisadas pelo vento
uma bolacha-do-mar
oferece em seu centro
a solidão quase nua
despida pelo tempo.


Alexandre Bruno Tinelli

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

capítulo curto


releu Dom Casmurro:
todo patriarca é um corno


Lucas Viriato

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Incoerência


A tartaruga
chegou.

O passageiro
do avião
não!


Débora Novaes de Castro

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Quando chove


Em São Paulo, quando
chove,
chovem carros.

Tudo para:
pontes, viadutos, Marginais.

E a água retoma
seu curso original:
Anhangabaú, Sumaré, Pacaembu.

Ruas onde eram rios,
ex-rios, caminhos de rato, canais.
Rios sobre ruas,
Elevado, Via Dutra, Radial.

Em São Paulo, quando
chove,
chovem apocalipses
de quintal.


Frederico Barbosa

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Toda escola devia ser samba, a canção


Toda escola devia ser de samba
Toda escola devia ser assim
de cantar
de trazer você pra mim
Toda escola devia ter essa ginga
trazer essa parte
que é mais vida
que é arte

Toda escola devia ser criança
ensinando adulto

Toda escola devia ser silêncio
sussurrando música

Toda escola devia ser noite
tramando dia

Toda escola devia ser samba
toda semana devia ser seu
carnaval


Paulo D'Auria

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Goela


fale o que quer te venha a boca
com a certeza de quem só diz a verdade:
sou um ser sensibilíssimo, sim
até as estrelas me influenciam
passei a desconfiar mais
depois que o sino da igreja atrasou:
mas isso são só meus dentes
que se quebram sozinhos
se afiam nessa língua quase minha
em tempos de paz
guardo meu coração na goela
em tempos de guerra
guardo meu coração nas mãos
quando na goela sempre
embaixo das cordas vocais
para que não saiam sons
apenas engasgos
para que não saiam nomes
mas gemidos
aí sim
reparar no
brilho da faca
preso na minha retina
procurar na faca
justa-causa
retina minha


Ágatha Kreisler

sábado, 22 de fevereiro de 2025

A tempestade


Canibal, palavra latina,
à maneira de canis, animal
de fidelidade canina.

Nas Bermudas, sublime ironia,
será um vento cão e vai se chamar hurracán.

E quando o mar de lã
de repente apontar terra à vista
Então será Caliban.


Rodrigo Garcia Lopes

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Hanishira e a moto amarela sobre a mesa do imperador


Hanishira ouviu o ronco do motor e isso fez com que ela saltasse da cama, de um só pulo e 
se pusesse em frente ao espelho do banheiro. Jogou, com as duas mãos, água gelada no rosto para ativar-se.

Era ele, tinha certeza, acabara de dobrar a primeira ladeira, virara a esquina lá em baixo. 
Subiu e ela o ouviria mais uma vez quando contornasse a segunda curva. Ele contornou. Estava mais perto. É ele! Sem dúvidas é ele: ele e sua moto amarela. Pensou apertando involuntariamente as pernas. Que sensação gostosa que fazia o motor da possante amarela enquanto pousava nela sua buceta! Só de pensar nisso ficou com muito desejo. O que esse cara havia feito com ela? Que tipo de feitiço era aquele?

A água fria escorreu pelo seu peito que enrijeceu. Ela tirou a calcinha e a camiseta de malha e colocou uma camisola transparente e um roupão com motivo de gueixa, queria deixar bem entendido, que estava ali para servir. 

Ouviu o motor silenciar em frente à casa. Rapidamente aplicou um blush e um rímel, 
apenas para ressaltar o olhar e ganhar uma cor. Ele assobiou. Isso é bom, lembrou que a campainha está com defeito. É sinal que pensou em mim, que tá ligado. Hoje, nada daquele papo tântrico, hoje eu parto pra cima dele e com sorte ele será o cara que terei coragem de falar: Vai, come a minha buceta! Abre ela todinha! Pronunciar essas coisas lhe enchia de tesão. Mas raras foram as vezes que ousou pronunciar na hora do ato sexual a palavra buceta. Só na cabeça, pensava, mas sempre usava outra nomenclatura: periquita, pão doce, preciosa, nomes assim. Talvez porque julgasse que uma mulher não deveria gostar de buceta, que pega mal. Que esse é um direito apenas dos homens. Mas ela adorava essa palavra, ficava louca. Mas até então só conseguia pensar nunca falava.

Uma amiga dizia que quando ela encontrasse a pessoa certa ela teria coragem de ser ela mesma. De se entregar. E aí você não vai ter mais vergonha de nada. Pensava todas essas coisas que lhe traziam um sorriso tímido e safado à cara enquanto atravessava o corredor em direção a porta de vidro que deixava vazar a luz do sol, ela caminhou em direção a claridade até que nada mais pudesse ser visto. Ficou cega completamente ao abrir a porta. Ele entrou, ela abriu os olhos.

— Você me disse que acordava cedo.

— Tô acordada. Tava lendo na cama.

— Tem hoje tempo pra praticar?

Tomou Hanishira nos baços e a beijou. Quando esses lábios se desgrudaram ela pôde 
sentir, o gosto do abacaxi com hortelã e o celular de João vibrar no bolso. Ele desligou automaticamente o que fez com que ela se sentisse muito importante.

— Quer um café?

Ofereceu ao passar pela cozinha.

— Vim te levar até a Mesa do Imperador.

Ela teve um sobressalto. Não esperava sair, esperava voltar para cama e se enroscar com ele.

— Eu devo me trocar.

— Só se você quiser.

Ela adoraria ter coragem de montar na moto daquele jeito, mas não era assim tão 
descolada. Correu até o quarto e teve vontade de colocar o guarda roupa abaixo. Uma saia e uma blusa surgiram como num passe de mágica, meias e a calcinha. De volta à sala. João a tomou pela mão e a conduziu até a moto. Ele sabia a pressão certa ao lhe dar a mão. Na noite do último encontro enquanto dissertava baixinho em seus ouvidos as maravilhas do sexo tântrico. Ele segurava pressionando sua mão de tal maneira que a fazia delirar. E também teve aquele momento dos pés, onde se tocaram, pé com pé. Que só em pensar já fazia Hanishira ficar totalmente molhada. Ao sentar-se na moto, a sensação do motor
ligado, vibrando. Que delícia!

Sentiu sua buceta ser pressionada levemente como se no assento tivesse ali um encaixe perfeitinho então tudo que ela pode fazer foi prender seu condutor levemente com as pernas que sofriam pequenos espasmos e Hanishira abraçava João passando a mão em seus peitos peludos. O vento na cara e a sensação de liberdade. Ela usava uma saia de malha fina. Cortaram as ladeiras como quem corta nuvens. Cruzaram as montanhas das paineiras. As montanhas do Rio e seu cabelo sobrando em seu capacete coquinho amarelo. Ao vento. E Hanishira recebendo o perfume de seu shampoo de ervas.

João era um tipo diferente, parecia um indiano, tinha aquele moreno, negro meio cinza, meio cravo, meio canela. Um indiano mesmo. Só que brasileiro. Desde a primeira vez que Hanishira depositou os olhos nele, já ficou interessada. Seu palpite era de que ali tinha uma coisa gostosa.

De vez em quando ele falava algo para ela gritado para tentar ser ouvido apesar do barulho 
infernal que produzia a possante como ele mesmo a havia apelidado.

— Respira, deixa o ar entrar! Lembra da primeira lição do sexo tântrico?

Ela repetia.

— Deixa o ar entrar!

— Deixa tudo entrar!

— Aí que delícia!

— Vou te comer hoje todinha.

E ela tremeu. Pela primeira vez sentiu uma pontadinha de medo, mas tratou de afastar de si a síndrome de patrulha da cidade, de que todos os homens incríveis que se aproximavam de mulheres comuns são psicopatas em potencial, ou ao menos tem potencial para ser. E para aplacar o medo apertou mais forte seus peitos contra as costas de João, afastou-se um pouco e ficou lhe roçando os bicos e o pressionando com as pernas, aproveitando aquela trepidação do motor que para ela: Não vou esconder aqui, estava há alguns meses sem trepar, poderia gozar a qualquer momento. O que seria um milagre, por que ela não era assim de gozar rápido. Isso nenhum homem podia falar dela. Sempre dera trabalho aos amantes mais dedicados. Precisava ser trabalhada para gozar. Mas aquele a quem ela agarrava pela cintura agora, já havia lhe trabalhado toda uma noite, e nem se quer a tocara. Havia lhe revelado em segredo as doze lições do sexo tântrico. Em um livro de bolso que ele sacou da pochete. Esse sabia mesmo do que gosta uma mulher. Havia estado a ponto de derreter nos braços daquele homem, só de toques nas mãos, massagens energéticas. Hoje ela sentiria o gosto dele.

Assim que chegaram à pedra do imperador, o sol estava quente. Nem mesmo os lagartos, que são atração do lugar, se atreviam a transitar pelo local.

Ele lhe ofereceu um pouco de água que trouxera em um cantil. Eles beberam e beijaram. E aquela água que a princípio gelada pareceu transformar-se em ardente. Ficaram ali pegando fogo. Ele meteu a mão pela blusa de Hanishira e colocou seus peitos pra fora, enquanto os lambia. Seus peitos eram fartos, mas de bicos pequenos que ao enrijecer quase desaparecia. João dava pequenas mordiscadas puxando os bicos para fora.

— Pode chegar alguém.

— Se chegar alguém eu arranco a tua roupa toda.

Ele já falou isso metendo a mão por debaixo da saia e puxando sua calcinha para baixo pelo fundo, riu de satisfação ao perceber que aquela bucetinha já estava bem molhadinha em ponto de bala, como dizem os mais safados. Pediu que ela colocasse as mãos no chão, só pra que ele pudesse olhar por esse ângulo.

Porque contou para ele a fantasia de se exibir? Sentia-se amedrontada e excitada pela possibilidade de realizar uma fantasia. Nunca imaginou que tivesse coragem, mas estava ali, pronta.

Ele era muito safado e ela adorava aquilo. Não estava sentindo medo ou vergonha e ela estava ali na rua. Tudo bem uma rua deserta, mas é rua. E ela estava com as mãos no chão, sua bunda para cima com um cara safado passando mão nela. Será que teria coragem de contar para alguém? Mas se não o fizesse teria valido a pena? De certo suas amigas mais íntimas teriam dificuldades até mesmo de acreditar no acontecido. E até o momento quase nada havia acontecido. Mas o que ela esperava? Sua cabeça estava quente como se tomasse doses de cachaça ao meio dia. Estava vermelha de estar naquela posição que no fundo era ridícula, mas que não tinha mais saída a partir do momento que aceitou a brincadeira, estava com a cara toda vermelha e por certo também vermelha estava sua querida companheira buceta. Que pulsava ao sol, após ter sido raspada quase que por completo logo após o término do primeiro encontro. João havia dito que raspadelas eram de sua preferência, permitiam sensações mais próximas, deixou escapar fingindo sem querer. Fazia parte, esse sabe como jogar. Ela não se arrependeu, podia sentir o sol lhe queimar e as mãos de seu motoqueiro, dedo a dedo deslizando por sua buceta e agora não parava de repetir para si: Vai, desliza na minha boceta inchada e quente.

Falava baixo, mas desejando falar para fora, enquanto se mantinha de bunda para cima 
abriu os olhos e deu de cara com os olhos de João. Ele estava agachado olhando para ela, o mundo de cabeça para baixo, ela o via e sentia a sua mão. Ele colocou na própria boca uma folha de louro que tirou do bolso e levou uma outra a boca de Hanishira. 

Ela percebeu que ali, ele dava um salto a mais em suas etapas da conquista. O que ele 
poderia querer mais? Já estava semi nua, entregue. É por isso então, ele quer magia! E teve as mãos dele dentro dela. Enquanto mastigou o louro amargo.

— Vai te libertar.

Ele sumiu da sua vista e lhe chupou forte e demorado. Antes de ajudá-la a levantar, sorriu ao perceber que ela estava muito vermelha e teve vertigem quando o sangue voltou a circular para o corpo. Ele a aparou e a carregou até a mesa, a grande mesa do Imperador. Levou a mão de Hanishira em seu pau.

— A grande pedra!

Ela não teve tempo de falar nada, Ele tapou lhe a boca e ela gostou. E pedia para ela 
manter os olhos abertos e ela fazia esse esforço. E se esforçou tão bem que suas pálpebras pouco se mexiam, estavam fixadas nos olhos negros de João, que agora tinha olhos e pau. Para ela, ele tinha apenas olhos e pau. Ela deitada na pedra, ele segurou suas pernas no ar e com jeitinho nem muito delicado, nem muito bruto, certeiro, meteu seu pau que entrou deslizando, encaixando em cada curva por dentro dela. Momento já sonhado por Hanishira.

Ela então não conseguindo mais conter falou em boa altura: Mete na minha buceta! E ter 
dado esse grito à fez jorrar para fora, como se ele despertasse nela sua verdadeira vocação. 

— Tô metendo!

E meteu. Direitinho, encaixadinho como nunca houvera sido. Ela cravou os dedos sem unhas pelo vício de comê-las, nas costas dele. E acompanhava seus movimentos como se já tivessem dançado aquela dança muitas vezes. Os olhos dele brilhavam. Ela concentrada neles e dançando em movimento continuo com o pau de João dentro dela. Teve a sensação de estarem sendo vigiados, olhos para todos os lados. Ele dizia para que ela não se preocupasse. Seus olhos fecharam e se deixaram levar. Ele era como um polvo estava dentro dela, na cintura, na bunda, no peito, estava em suas orelhas, no pescoço, pressionava levemente os dedos em movimentos circulares passeando ora em seu clitóris, ora em seu prêmio, como fez questão de apelidar na primeira vez que tocou nele ainda quando estava com bunda para o alto.

O sol quente sobre a pedra e ela com suas costas sentindo isso como uma dose extra em seu prazer. O movimento foi ficando intenso e mais ritmado, era a primeira vez que mesmo por baixo tinha liberdade de se mover. Como ele conseguiu a aquilo? Metia nela e ela mexia esfregando-se de maneira que os dois foram levados ao momento mais sonhado dos amantes, morrerem juntinhos a sua pequena morte. Ela soltou um gemido agudo e abriu os olhos num estímulo ao êxtase daquele momento e percebeu os olhos na árvore que pendia sobre a ponta da pedra, um punhado de olhos de lagartos os olhando. Uma
árvore de lagartos. E foram abrindo os olhos um a um com o grito de Hanishira e se sentindo acuados mudaram de cor e saltaram sobre as costas de João e sobre as pálpebras coladas desta moça, e sobre suas pernas e braços e pisotearam o casal, numa chuva de lagartos. Os dois ficaram ali petrificados. Demorou ainda um pequeno tempo para que conseguissem levantar. Ele saiu de cima dela em silêncio. Ela colocou a roupa, mas não achou sua calcinha. Ele ligou a moto e a chamou para subir. Quando ela colou seus peitos nas costas dele, ele virou sua cabeça levemente para traz. E perguntou se estava tudo bem. Hanishira balançou a cabeça afirmativamente. Ele colocou o braço para trás e segurou-a na buceta. Deu três leves tapinhas. Hanishira sorriu.

— Isso nunca tinha me acontecido. Não tão assim.

— Você é esquisito. Adoro o medo que sinto de você, Imperador.

Ele arrancou a moto ladeira abaixo. De vez em quando entre uma curva e outra ele dava 
gritos.

— Lagartos filhos da puta! Eu sou seu imperador e lhes ordeno que cada um procure sua própria mulher para comer!

Hanishira ouvia essas besteiras e se apaixonava cada vez mais. Ria e sentia João escorrer de dentro dela, ia chegar em casa com a saia toda suja. O amor é sujo.

Na Jardim Botânico engarrafada, ela continuava seu ritual de roçar os peitos nas costas de 
seu condutor. Os dois riam de prazer.

Depois desta trepada nunca mais voltaram a praticar nenhuma das doze lições de sexo 
tântrico, mas enquanto juntos, mantiveram o habito de se devorarem em lugares públicos.


Luciana Bezerra

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Tormento


Coisas que hão de te atormentar:
as reminiscências de um passado que
remoídas foram, muitas e muitas vezes;
lembranças de uma vida que você nunca teve;
oráculos sobre os sonhos que nunca vai realizar.
São essas as coisas que, para sempre, 
irão te assombrar.


Thais Vicente

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Um poema de Roberta Lahmeyer


    O céu desce
fica a dez centímetros de mim
    Acho que se eu levantar a mão
posso alcançar uma estrela
     Mas continuo imóvel
Pensando


Roberta Lahmeyer

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Um poema de Iuri Mello


Eu odeio a métrica
porque o verso quebra
e eu fico na merda

uma hora penando
e a palavra não cabe 
a métrica que se dane


Iuri Mello

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Angra I


teu sono
que eu levo na esportiva
esse brinquedo de me deixar a sós
interpretá-lo

como as confusas placas que vão brotando
pela Avenida Brasil

por muito tempo indo
estávamos voltando


Ismar Tirelli Neto

 

domingo, 16 de fevereiro de 2025

CANÇÃO DO DESESPERO


Um homem bateu em minha
porta e eu abri. Senhoras e
senhores deitados no chão,
senhoras e senhores eu não
estou só, senhoras e senhores
meu filho está com fome e eu
moro na rua.


Daniel Viana

PLÁSTICO BOLHA: CHAMADA DE TEXTOS 2025!!!


O Jornal Plástico Bolha está com Chamada Aberta para o recebimento de textos para 2025! Todos os poemas, contos, ensaios, narrativas curtas, charges, divulgação de projetos serão bem-vindos. Estamos perto de entrar em nossa terceira década de vida com a alegria de seguir de portas abertas para autores, sem distinções! Leia, divulgue, escreva, envie, comente, participe! Ploct! 

Envie seu material pelo e-mail: jornalplasticobolha@gmail.com

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Adeus ao grande Cacá Diegues




Ontem, o Brasil foi surpreendido com a notícia da perda do cineasta e pensador Cacá Diegues. Em meio a tantas — e devidas — homenagens a este alagoano, ícone do cinema brasileiro, nós do Plástico Bolha nos sentimos no humilde dever de acrescentar esta nota de pesar, mas também de muita gratidão. Assim como muitos na cultura brasileira, o Jornal Plástico Bolha também teve a alegria de ser ajudado por Cacá na época de nosso financiamento coletivo. Para além do valor doado, a honra de ser apoiado por Cacá e de contar com sua confiança em nosso projeto é o que ficou de mais precioso para nós.

Fora isso, não podemos deixar de mencionar que sua filha, Isabel Leão Diegues, que hoje brilha nas edições da editora Cobogó, fez parte do time de autores/editores que fundou o Jornal Plástico Bolha, na PUC-Rio, nos idos de 2006. Nossa querida Bel participou com a publicação de seus textos, sua colaboração editorial, seus conselhos e inúmeras parcerias. Como o tempo sempre anda para frente, há poucos anos, tivemos uma nova alegria, ao passarmos a receber em nosso espaço, os textos e poemas de José (Diegues) Bial, filhote de Isabel e neto de Cacá, que hoje mantém a terceira geração desta linhagem viva e atuante nos espaços do nosso jornal.

Ao Cacá, nossa gratidão como brasileiros. À Isabel, ao José, e a toda família, o nosso sentimento e amor neste momento.

Um poema de Clara de Góes


Origami de silêncio
dobradura incomunicável
da morte _ a folha
em branco


Clara de Góes

O Céu da Língua, com Gregório Duvivier



Nosso querido parceiro e amigo, o poeta, escritor e ator, Gregório Duvivier estreia a peça O Céu da Língua, no Rio de Janeiro. Todos estão convidados para este espetáculo poético e imperdível!

O Céu da Língua

Local:
Teatro Carlos Gomes

Data/Hora:
até 23 de fev de 2025, 19:00h 

Classificação:
- Verifique Classificação -

Não é permitida a entrada após o início do espetáculo.


 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Os Ratos Embaixo da Cama de Selma


Encontrei Selma sentada no primeiro banco do Parque. Olhava fixamente para o portão, o braço sobre o encosto, os dedos com um cigarro espetado que se tragava sozinho, as pernas cruzadas, com uma sacola de compras, onde estavam suas roupas, repousando no assento. Apesar do rosto enrugado do tempo e dos abusos, seus olhos cor de mel lembravam uma beleza que ainda não havia se despedido por inteiro. Parei a sua frente, seus olhos continuaram no portão. Retornou de seus pensamentos quando o cigarro queimou seus dedos, mesmo assim, não expressou dor, havia superado a sensibilidade física desde muito tempo; arremessou o cigarro longe, puxou da sacola mais um, acendeu e não me olhou.

É de se entender porque não me olhava. Eu havia saído de casa há 2 semanas, sem despedida, sem comunicado, apenas o covarde desaparecimento. Correu os bares e muquifos por onde andávamos atrás do meu paradeiro. Me encontrou saindo do Cine Ópera, um cinema decadente no centro antigo da cidade, onde os desocupados iam para passar o tempo, praticar suas insanidades e enganar o suicídio; aliás, foi lá que nos conhecemos. Selma me seguiu até o quarto que eu estava ficando, colocou por debaixo da porta um bilhete escrito local, data e hora do encontro, “Sem reminiscências, Selma”. Quando a conheci, não era tão velha como agora, coisa de 8 ou 15 meses atrás. Se sentou ao meu lado por engano, me chamava de Herleson, os olhos a meia pálpebra, a cabeça mole caindo para os lados, o balbucio, a saliva seca nos cantos da boca... Me mantive ao seu lado conversando, chamado de Herleson. Quando nos entediamos, a levei para comer uma quentinha a 2,50 no restaurante na entrada do cinema, ela estava faminta, eu também. Em uma das colheradas, recobrou a consciência, me analisou por um instante e voltou a comer. Depois que terminamos, caminhamos em silêncio até a Praça da República. No caminho entramos em um depósito de bebidas, ela pediu duas buchudinhas e duas carteiras de cigarro e me olhou, consenti com um piscar de olhos. Sentamos em um dos bancos da praça e ficamos observando o movimento. Ainda era cedo, o trânsito ainda tumultuava, as travestis que circulavam pela praça ainda eram em pequeno número. Algumas passavam e nos davam boa noite ou pediam um gole da bebida, atendíamos a ambas solicitações. Quando aumentaram de número, eu e Selma começamos a brincar imaginando seus nomes, ela era muito boa nisso; me confessou que frequentemente tinha sonhos eróticos com travestis e que quando o realizasse, desejava que a chamasse de Cyla Summer; e também contou sobre um sonho estranho em que ela dava um seminário em um navio naufragando, sendo que ela não poderia terminar a palestra até que todos estivessem afogados, disse que isso lhe havia concedido a habilidade de respirar sob as águas. Selma tinha doutorado em Semiótica, e não importa como ela, ou eu, chegamos até ali.

Depois, novamente entediados, fomos atrás de um quarto para passar a noite. Perambulamos um bocado até encontramos um que os dois pudessem pagar, esses lugares eram abarrotados de pessoas que queriam apenas esticar as costas com a devida atenção, e assim fizemos. Nos deitamos, Selma se virou para o seu lado, eu para o meu, e adormecemos com as costas grudadas. Ao acordarmos, decidimos permanecer no Sete-Sete – esse era o nome do lugar –, dividindo as contas igualmente, nos despedimos e cada um foi cuidar da sua vida aquele dia.

Nunca me interessei em saber o que Selma fazia para conseguir dinheiro, ela também não me perturbava com o assunto, desde que ambos cumprissem com sua parte no acordo. Nosso relacionamento se resumia a companhia – nos admirávamos mutuamente – e uma fuga quase que incessante de ter que morar na rua. Talvez isso nos aproximasse. Sabíamos que a solidão, o abandono, às vezes são inevitáveis, isso não nos preocupava, talvez fossemos espécies que sabiam lidar com quase todos os tipos de adversidades – isso até mesmo nos alimentava – sem colocar em cheque nossa sanidade, mas inexplicavelmente ficávamos intimamente receosos com a chegada do momento em que nos sobrasse as calçadas e as marquises. Mesmo que não fosse uma situação inédita para ambos, a ideia nos deixava como crianças apavoradas e tínhamos vergonha de nos sentir assim. Quem sabe até merecíamos. Selma se dizia merecedora do infortúnio, que era um destino traçado a ela do qual não conseguiria fugir, não importava o que fizesse, estava jurada à rua, talvez por isso gostasse tanto de estar em bancos de praça.

Por semanas, meses, seguimos nosso acordo sem atrasos. O quarto do Sete-Sete, apesar das paredes mofadas e do banheiro alagado, era um bom lugar. Tinha um cheiro inusitado, as quintas e sextas cheirava a água sanitária, que eu passava por todo o quarto para que nos desse alguma impressão de limpeza e uma mínima noção de higiene; a partir do final da tarde de sexta às madrugadas de quinta, cheirava uma mistura de cigarro, amônia, éster, cerveja e buchudinha. Nosso lar, meu e de Selma.

A intimidade e a rotina, nos criou algum tipo de elo, passamos a nos preocupar um com o outro. Às vezes quando nos excedíamos ao ponto de prever a morte, acordávamos no dia seguinte com uma necessidade urgente de praticar exercícios. Dávamos longas caminhadas, evitávamos o cigarro, a bebida e qualquer tipo de entorpecente durante a semana, o que culminava em um final de semana desregrado e infindável. Certo dia, Selma voltou animada da rua, havia descoberto no parque aulas grátis de aeróbica para idosos, deitou a cabeça no meu peito e me aconselhou a ir, que eu precisava, que iríamos juntos. A joguei para o lado e tivemos uma briga ferrenha, a chamei de velha, era ela quem beirava os 70, eu estava no meio dos 50, ela quem precisava de muletas e filas preferenciais. Selma chorava copiosamente me chamando de covarde, de iludido, mentiroso. Nas duas semanas seguintes fomos religiosamente as aulas, eu me dedicava por uns 20 minutos, o restante buscava algum banco próximo e ficava lendo até a aula terminar; mesmo assim Selma ficava satisfeita, entendíamos o limite um do outro, assim como as implicâncias e as ilusões também.

Não demorava muito e voltávamos para nosso ciclo de sextas e quintas, e sextas às quintas. Assim como também, o tédio não demorou a nos atingir novamente. As caminhadas embriagados pelas praças diminuíram, as sessões de enlouquecimento em casa também ficaram rarefeitas. As preocupações diminuíram ao ponto de “até logo mais”. Não nos destratávamos, muito menos discutíamos, passamos a ser desdenhosos, mesquinhos, irritantes. Começamos a criar hábitos horrendos. Algumas vezes quando chegava da rua de madrugada bêbada, Selma tinha mania de mijar no meu sapato enquanto eu dormia, às vezes eu até estava acordado, abria um dos olhos e assistia a tudo, em outras até mijava propositalmente na cama. Eu respondia me excedendo cada vez mais, deixando a podridão no sanitário sem dar a descarga para que fermentasse, batendo eventualmente a bagana de cigarro em suas roupas. Não tínhamos coragem de aceitar nossas boas aventuranças, acreditávamos fazer parte de um desalinho que merece ser ejetado, e assim nos dedicamos.

Em um último suspiro, Selma apareceu um dia com um rapazote na casa dos 20 anos. Dizia que ele tinha um rosto familiar, ela aproximava seu rosto do dele, esbugalhava os olhos, e lentamente admirava cada detalhe. O chamávamos pelo apelido, Breu. Era um galego franzino de olheiras roxas sem hormônio suficiente para lhe criar pelos no rosto. Lhe servimos bebida, esquentamos os pratos, conversamos madrugada a dentro. Selma parecia feliz, nessa noite dançou.

Nos afeiçoamos ao garoto. Breu passou a morar com a gente, ia para todos os programas que eu e Selma fazíamos, como antigamente; mesmo assim eu não sabia dizer que tipo de relação era aquela. Eu sabia que Breu roubava Selma, eu não o repreendi, apenas o avisei que não me deixasse pegá-lo no flagra. Selma estava mais jovem, gargalhava à toa, cada vez mais se encantava pelo garoto. Ele, que antes dormia em cima das roupas no chão, passou a dormir com a gente na cama, entre eu e Selma, os três abraçados. Ela acordava fazendo carinhos no rapaz adormecido, brincava o colocando no colo lhe dando de comer, passou a chama-lo de molecote. Em uma noite em que eu estava me vazando por todos os orifícios, os dois saíram, não os vi chegar. Ao acordar, ainda fraco do dia anterior, vi Selma nua ao meu lado, o garoto dormia no chão sobre as roupas, também nu. Me levantei com muito esforço, arrumei as poucas roupas que tinha em minha sacola de compras e fui embora.

No reencontro do Parque, Selma disse que ficaria com o rapaz. Consenti em silêncio e perguntei onde ele estava, segundo ela, a esperava nos brinquedos do parque. Se despediu de mim ainda com o olhar fixo no portão. Esperei que ela tomasse certa distância e comecei a segui-la. Ao chegar nos brinquedos, Selma se sentou em um dos bancos e ficou observando as crianças que por lá brincavam, senti que sorria, Breu não estava lá. Selma começou a apalpar a trouxa de roupa, parecia cansada, a colocou na ponta do banco, olhou mais uma vez em volta, aconchegou a cabeça sobre a sacola e, finalmente, deitou.


Fabrício Pinheiro

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Um poema de Iuri Mello


O desejo é minha maldição
desejo tudo
desejo todo
desejo tonto


Iuri Mello

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Poeminha de Knorr


no dia D
na hora H
tudo ficou uma M


Knorr

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

POETINHA, de Daniel Viana


Tinha seis anos e recitava poesias
nas festas da escola, mas  se
escondia atrás da mãe quando
alguém desejava bom dia.


Daniel Viana

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

A minha heroína


“De meu padrasto lembro o gosto
Colher, isqueiro, pedra, agulha
De minha mãe o sangue exposto...
E um fluido branco que borbulha,
Na vida eu creio, na virtude,
Feitos do escárnio deste mundo
Mas como a vida nos ilude!
Ferem, mas quietam o Eu mais fundo...
Fugi de casa, fui surrada
Os dedos fortes, mas tremendo
Porque, bem, sempre fui ousada...
Uma seringa vão enchendo...
Mas tudo passa, e eu logo esqueço
E pouco a pouco o vidro aviva...
Que a morte é só um recomeço!...
Por ter o braço em carne viva,
Garoto, a dor, se é grande, some;
Encontra um canto em seu pescoço,
Sei que perdi meu próprio nome,
Onde se fura, num caroço,
Mas me arde, da época de criança,
Ali, no meio dos inchaços,
Uma sagaz perseverança...
Dobrando o cotovelo em laços,
Necessidade, e o meu vazio,
Se dá ao fluido da seringa...
São por que aos clientes só sorrio...
Bem sob o queixo, então respinga
Olha, eu nem sonho, nem escolho,
Seu sangue, como o meu, vermelho,
Mas quando canso me recolho!
Que escorra, ruim, até seu joelho!
Eu sei que me acham vagabunda,
E a perna, um tanto amolecida,
Carne passada, de segunda...
Arqueia, trôpega e sem vida...
O mal, lembranças e o abandono
Suas palavras já confusas
Se vão conforme vem o sono!
Se erguem como entre exaustas musas...
Prefiro no êxtase as flebites
O seu torpor lhe leva ao chão,
Do que me atar a meus limites!
E ela descansa o coração...
Não sou vilã... nem sou Iansã...
Vai balbuciando a tal pequena
Não sou Iansã... nem sou vilã...”
- Por isso a vida vale a pena,
E tu, ó minha fiel menina,
Cais como toda boa heroína!


Guilherme Ottoni

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Sintonia


Dentro de um profundo espaço,
Busco no fundo
De um grande vazio
Sua presença,
Que guardo em silêncio.

Nesta mansa manhã de verão,
Em que alguém que
Vagava sozinha,
De repente, encontrou
Você no caminho,
Com a doçura
Suave de uma grande melodia.

Eu, que bailava sem destino
No grito silencioso
Em busca de carinho,
encontro a felicidade
De ficar ao seu lado
A fim de aprender
A sintonia do amor


Marlene Reis

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Caligrafia, de Paloma Roriz


Ninguém via,
mas aqueles siris na praia
correndo, de toca em toca,
com as patas (pinças, remos, estilógrafos)
riscando a areia lisa, lousa em grânulo —
escreviam.


Paloma Roriz



sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Pixo, de Iuri Mello


O livro dos hieróglifos
se abre
nas sacadas altas regulares
como textos cuneiformes
runas, escrita disforme
nomes mágicos
que só é dado a ler
aos iniciados
culto rupestre de jovens calado
marcam seus nomes
no templo de asfalto


Iuri Mello

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Um poema de Roberta Lahmeyer


    Quando a poesia
atravessa a matéria e ilumina
    certos subterrâneos


Roberta Lahmeyer

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Para vovó, de Guilherme Ottoni


''_Vocês são_...'' - li-te, em meu primeiro verso -
Logo teu papo, qual de sapos-bois,
Tua risada, de um amor perverso,
Me advertiram: ''Um poeta põe _vós sois_!''

Posso ser o teu único reverso,
Aquele que buscou vadiar depois
De cair ao teu rigor incontroverso
Num poema onde negamos a nós dois!

Fossem outras as tuas mil certezas
E das minhas ridículas fraquezas
Sirvam a amorfa cinza do teu pó!

Mas hoje, escrevo tudo que me ulcera,
Muito apesar da tua luz severa,
Que se ora brilha, brilha aqui tão-só!


Guilherme Ottoni

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

E POR FALAR EM AMOR


Sebastião e Lourdes estavam casados
há exatos 27 anos. Amor? Não,
pirraça mesmo.


Daniel Viana

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Poeminha de Rodrigo de Souza Leão


será que eu sou tão claro
claralho


Rodrigo de Souza Leão

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Confidências Líricas


O que vou dizer
quando me perguntarem 
quanto vale a palavra proferida
por uma boca falaz e ambígua,
mesmo que seja minha  a boca?

"Não se fie no que diz a língua maldita.
Não dê valor a coisa tão vã e infeliz.
O ínfimo do infinito se fala,
mas o que se versifica
é aquilo que mais diz."


Thais Vicente

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Os pais devem seguir tentando, novo texto de Eduardo Moraes

Fui acampar neste último feriado. Na barraca ao meu lado do camping tinha um pai com seu filho de 14 anos. 


A dupla era simpática, educada, gente fina. O coroa me disse que era a segunda vez dos dois naquela praia. E notei o carinho dele com o garoto. O apreço que ele tinha por ensinar coisas valiosas ao seu “filhão”, como ele o tratava.

Não fiquei prestando muita atenção no conteúdo, mas fiquei imaginando o que eu falaria pra um moleque que um dia eu possa vir a chamar de filho. Ou filhão.

Falaria pra ele deixar o celular de lado e olhar um pouco o céu. Dar um mergulho, uma corrida, jogar uma altinha, trocar ideia com alguém.

Falaria para ele que as coisas custam dinheiro, normalmente não são baratas e que o presente momento é fruto do trabalho duro.

Falaria que tudo bem ele pintar o cabelo de roxo. Azul. Verde. Laranja. Porque o tempo passa, a cor vai embora, a vida acontece, novas cores aparecem e dá sempre pra colocar algo novo na cabeça.

Falaria pra ele que a vida não é fácil, mas que pode ser mais simples.

Falaria que o amor é complicado. Porque às vezes a pessoa não te ama de volta. E às vezes mesmo que ame, o amor não é suficiente.

Falaria que sentir alguns sentimentos é doloroso. Mas que outros são gostosos demais de experimentar.

Mas que amar é bom. Sempre bom, mesmo quando parece ruim.

E tudo isso entraria por um ouvido e sairia pelo outro.

Os pais tentam. E vão (e devem) seguir tentando.


Eduardo Moraes