sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Candombe


Põe o ombro na lua,
Mas levanta forte
que Zambi arrepia o sol.

Os velhos desfiam os dedos
e o tempo se assusta: “Auê,
quem vive tanto é de mistério”.

“Não, que o quê?— respondem.
Põe o ombro aqui, candonga
mas dobra forte
que Zambi engole o sol.

Uê, morde por dentro
cobra dormindo faz a cova.

Uê, quem sabe desses meninos
é Zambi que engole o sol
é Zambi que mata o sol.


Edimilson de Almeida Pereira

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Zumbi


Foi Zumbi:

Zumbi quem me ensinou 
a coragem e a esperança,
a força e a perseverança
que só conhece quem lutou.

Sim, foi Zumbi
quem me manteve acordada
azeitando as armas da batalha
para um dia feliz.

Tudo se fez madrugada
em abraços e tornados casa,
sendo tempo de raiz e asa
enquanto cerzíamos a alvorada.

E mesmo hoje,
com os sonhos desabrigados,
dançam os corpos marcados
de quem sabe acender a noite.

De quem pode virar o bote
e incendiar reinados
quando, de novo, acordados
para cessar o açoite.


Elaine Freitas de Oliveira

Mãe-Preta


— Mãe-preta, me conta uma história
— Então feche os olhos filhinho:

Longe muito longe
era uma vez o rio Congo…

Por toda parte o mato grande
Muito sol batia o chão

De noite
chegavam os elefantes
Então o barulho do mato crescia

Quando o rio ficava brabo
inchava

Brigava com as árvores
Carregava  com tudo, águas abaixo
até chegar na boca do mar

Depois…

Olhos da preta pararam
Acordaram-se as vozes do sangue
glu-glus de água engasgada
naquele dia do nunca-mais

Era uma praia vazia
com riscos brancos de areia
e batelões carregando escravos

Começou então
uma noite muito comprida.
Era um mar que não acabava mais

… depois…

— Ué mãezinha
por que você não conta o resto da história?


Raul Bopp


(Esse poema, assim como Bate-Pilão foi publicado em 1932, no livro Urucungo, pela Editora José Olympio, organizado por Augusto Massi.)

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Padrasto


Brasil, se tua mãe é África
e teu pai é euro,
se tua mãe, mágica
e teu pai dinheiro,
por que te afastas tanto do ventre,
por que tão patriarca se tornaste?

Se tua mãe é Oxum
e teu pai é culpa,
por que abandonaste teus filhos sozinhos na luta?

Brasil padrasto
não vês que não tem identidade alguma
um reflexo apenas no gasto espelho branco?
Brasil, pra onde ruma,
se renegas a mãe que só te ama?

Amor e respeito não se compra
nem com prata nem com arrogância.
A ganância , país ingrato, é um veneno
que mata teus filhos primeiros.

Perdoai, Mãe África, perdoai
este país sem passado e sem futuro
que abate seus filhos a tiros
na engrenagem cega do ouro.


Paulo D'Auria 

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Neguinho


Neguinho era branco, muito magro, baixinho, feio, narigudo, pé grande e pau pequeno. Detestava futebol, novela, praia, churrasco e pagode, ou seja, tudo em Neguinho era estranho. Gostava de cinema europeu que assistia desde criança na cabine de projeção do centro cultural onde o tio trabalhava. Na verdade, o tio dormia e ele tomava contada projeção.

Amava a escuridão da sala de projeção. Como não sabia ler, podia inventar as histórias que quisesse para aqueles filmes, o mesmo filme poderia ter enredos completamente diferentes e como a sala vivia vazia, muitas vezes, podia terminar o filme a hora que bem entendesse. Na tela podia viver outras vidas, ser alguém, ali era impossível viver sem ele. Neguinho era Deus.

Foda mesmo era quando tinha que voltar pra casa, geral tinha mania de falar que morar no morro era maneiro, maneiro é o caralho! Os vizinhos eram tudo um bando de filhos da puta! Só por que a caxanga dele era de telha, muitos ficavam esculachando. As outras casas eram de laje, tinham umas até com antena parabólica, mas de que adianta? Eles moravam na favela que nem ele! Era tudo um a mesma merda.

Do lado da casa dele era um terreiro de macumba que tinha batucada todo dia, do outro lado da rua uma igreja evangélica com direito à música ao vivo, mal tocada e mal cantada. De manhã cedo abria a birosca da Edna que só tocava e pagode. Pra completar, ainda tinha a oficina do Jô que tocava funk o dia todo. Aquela mistura de som alto deixava qualquer um maluco. Ainda mistura de som alto deixava qualquer um maluco. Ainda dizem que a favela agora é pacificada.

Teve um dia que tacaram um cano de ferro que quebrou a telha e caiu na cama, exatamente onde ele dormia. Já pensou se ele tivesse deitado na hora? Morria! Essas paradas são sinistras!

Os arrombados dos vizinhos ainda foram chamar a polícia! Os PMs vão fazer o quê?

— Tô lá em casa, tranquilão. Escuto bater na porta, me aparece o Abelha com os PMs dizendo que eu quebrei o vidro da janela da casa dele. Quebrei mesmo, mas falei que não quebrei. Ele não falou que ninguém viu ele tacando o ferro no meu telhado? Falei logo que ninguém tinha me visto jogando a pedra na janela. Até provar que berimbau não é gaita rolou o maior bate-boca e ficou tudo por isso mesmo. Tem dia que me vem uns pensamentos neuróticos, todo mundo me vê assim, magrinho, baixinho, mas eu sou ruim! Vai vendo!

Neguinho desceu o morro do Vidigal bolado e quando viu aquele monte de gente descendo pra pista pra fazer uma manifestação na rua do governador, foi junto, nem sabia o que era, mas foi.

Quando chegou lá o bagulho já estava doido, cheio de carro de polícia, rolava tiro, bomba, spray de pimenta. Neguinho tremia de excitação, nem sabia mais pra onde estava indo, aquilo tudo era lindo, se sentia o cão solto no meio do redemoinho, quebrava os vidros dos carros, das portas dos bancos, das lojas. Saqueava as mercadorias e não era para roubar, era só pra botar fogo e ver tudo arder. Nunca tinha visto uma fogueira tão linda.

As luzes do fogo e das câmeras de TV se misturavam e ele mostrava mais a cara, sorria, saiu no jornal com foto e tudo. Agora era o vândalo procurando: José Desidério da Silva.


Márcio Januário

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Bembé da liberdade


Os pretos todos novos
Jogados à terra em flor
Foram aterrados aos poucos
Não como gente de valor

As ruínas do cais do Porto
O Valongo que se mostrou
Vem revelar um passado
que nos é constrangedor

São camadas e camadas
De terra, tempo, rancor
Tentativas e descasos
Pra se esconder o horror

Congo, Angola e Benguela
Pedra do Sal testemunhou 
A diáspora africana
Roma Negra Salvador

Ben Ben Bembé 
Dá licença que me vou
Ben Ben Bembé
Ben Ben Bembé
Vou tocar meu Agogô

Ben Ben Bembé
Ben Ben Bembé

Dá licença que me vou
Ben, Ben Bembé
Ben Ben Bembé
Vou pro Bembé bater meu tambor

A história permanece
Não prescreve uma dor
Deixa rastro sobre o lastro
Do chão em que se pisou

Hoje eu canto a minha graça
O meu credo, o meu valor
Não vou deixar barato
Qualquer preconceito de cor

Reafirmo a minha presença
Com toda glória e vigor
Grito forte, canto alto
Foi o Bembé que me ensinou


Osvan Costa

domingo, 16 de novembro de 2025

Flor de Luanda


Meus escritos estão na Lua, penso em Lua. Viajo à Luanda, para recordar o sorriso da noite de Luanda. Lembro de agosto, quando a Lua sorriu para meus olhos. Dedico à Lua este poema. Preocupo-me com o tempo. A Lua e o poeta.

A Luanda, mulher encantadora. Que, apesar de não guardar suas ansaiedades, encantou-me com seu sorriso das nuvens de África.

Comprar-lhe-ei uma flor
Uma flor de Luanda
A mais remota das Áfricas
A flor que da areia molhada pelas lágrimas
desabrocha na guerra e semeia esperança

Meu impasse é errar teu sorriso
e confundi-la com a flor
São Luandas
Luas de África
Amarradas às armas não tão brandas
Mas brancas.

Ei de dá-la uma flor
para matar sua dor
afogar o desamor da noite que lhe sufoca, flor.


Manoel Canuto 

sábado, 15 de novembro de 2025

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Guimarães Rosa é humanizado na cena minimalista de "Pormenor de ausência"


Giuseppe Oristanio interpreta João Guimarães Rosa 
em Pormenor de ausência


O escritor mineiro João Guimarães Rosa (27 de junho de 1908 – 19 de novembro de 1967) está entronizado no panteão dos imortais da literatura brasileira por livros como Sagarana (1946) e Grande sertão: veredas (1956), obras-primas referenciais pelo estilo inovador da prosa de Rosa. 

Na cena de Pormenor de ausência, espetáculo que vem rodando o Brasil desde 2022 e que no momento está em cartaz no Teatro Vannucci, no Rio de Janeiro (RJ), em temporada às segundas e terças-feiras, Guimarães Rosa aparece humanizado na pele do ator paulistano Giuseppe Oristanio. 

Sob direção de Ernesto Piccolo, o ator interpreta o escritor nos últimos anos de sua vida, em saga para se tornar um imortal da Academia Brasileira de Letras e, na luta por uma cadeira na ABL, o romancista se despe da aura sagrada e se mostra um homem picado pelo bichinho da vaidade. Se a obra já estava consolidada, a alma do escritor ainda estava insaciada, movida pelo desejo de uma imortalidade que os livros já haviam lhe garantido, mas que Rosa enxergava somente na vaga da ABL.

Com boa caracterização, Giuseppe Oristanio interpreta Guimarães Rosa na primeira pessoa, dando voz ao texto escrito por Lívia Baião a partir de pesquisa sobre a vida do escritor, o que deu à dramaturga acesso a cartas, documentos e textos de ficção do autor que debutou no universo literário em 1936 com um livro de poesia, Magma.

Em Pormenor de ausência, Guimarães Rosa é o narrador da própria história, de uma saga que mistura vaidade, obsessão e morte. Na encenação minimalista, calcada no texto e no ator, a luz e a música entram somente no fim da peça, para realçar um desfecho já notoriamente trágico. 

Como se sempre pressentisse que a chegada à ABL fosse o ápice e o fim da saga existencial, Rosa de fato morreu três dias após tomar posse na cadeira de número 2 em 16 de novembro de 1967, em cerimônia pautada por elogios superlativos de apoiadores, como o jurista Afonso Arinos de Melo Franco (1905–1990).

Pormenor de ausência retrata um Guimarães Rosa às voltas com crenças religiosas, sérios problemas de saúde e dilemas comportamentais. A cena enfatiza que a grandeza da obra muitas vezes contrastou com a dimensão ordinária de uma alma humana como muitas, vítima das armadilhas do ego. É o homem que está em cena, com inseguranças e medos.

Essa humanização de Guimarães Rosa ao longo da hora de duração do monólogo contribui para dissolver qualquer aura mitológica da imagem do autor que desbravou as grandes veredas do sertão mineiro. A recorrente perspectiva da morte talvez seja a senha para o entendimento da obsessão do escritor pela imortalidade intelectual conferida com a entrada na Academia Brasileira de Letras.

Com um fardão posto em cena em uma das extremidades do palco, como a lembrar para o espectador da saga particular de Guimarães Rosa, Pormenor de ausência descontrói a imagem sertaneja, ruralista, que talvez ainda persista no imaginário de quem desconhece as múltiplas atividades desse escritor que também foi diplomata e médico. Mas que passou para a história como um escritor grandioso, visto em cena com as pequenezas comuns a toda a gente.


Mauro Ferreira

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Oxumaré


Senhor que une a terra
Suas cores incendeiam os céus
Céus e terra
Terra e céus
Serpentes que giram
Entrelaçam mundo 
Fio de contas amarelo e preto
Todas as cores são Suas são
Ri dos gêneros humanos
Feminino e masculino
Para Ele não há 
Apenas existir
Infinitamente
Cobrarcoíris
Apenas É
Arroboboi Oxumaré!
No fim do arco-irís
Tem riqueza
Quem é digno de ir lá?
E se tudo mudar
E se tudo muda
Deixe a roda girar
A vida é pra dançar


Guaiamum 

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Àquela de cabelos d'África


Tal qual a árvore do Éden me instiga o pecado
Teus cabelos de lúbrica trança baiana
Me seduzem os olhos na noite, espantado,
Com o toque sublime da dádiva humana!

Reprimidos por todo o labéu do passado,
A elegância que deles agora se emana,
Como um céu sem igual de virtude estrelado,
A coragem reflete da Mãe africana!

Ah! Que amores desenham-se neles ocultos,
E que prantos, que angústias se escondem sepultos
Nos cabelos de alegres e jovens matizes?

Contemplando os teus cachos mergulho inocente
Na ondulante beleza da força inerente
À mulher que enaltece no corpo as raízes!


Guilherme Ottoni

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Dias de Kizomba


Ab(dias) de lutas e não dias de luto.
Um homem como Abdias,
estrela incandescente,
não morre.

A sua luz
cor negra zagaia
feriu a branca consciência
de uma democracia racial
nula e vil.

Um homem como Abdias,
estrela Nascimento,
Zumbi eternizado,
não morre.

A sua luta
Ziguezagueia
d'África à diáspora
espalhando sementes baobás
em cada uma/um de nós.


Conceição Evaristo

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Um poema de Vic Torinno


Sempre disseram que preto não pode falar
Preto não tem voz
O preto que tem voz é sempre calado

Mais um sorriso preto apagado
Mais uma esperança preta tombada
Mais um corpo preto no chão
Mais sangue preto que escorre
Mais uma preta pra estatística
Mais um dos nossos mortos.
Descansa
Luz no teu caminho porque o povo de Aruanda te abraça e te ilumina
Descansa.


Vic Torinno

domingo, 9 de novembro de 2025

Um poema para Xangô


um poema bravo que cante o fogo & busque
um olhar que leve
a caminhar sem treva
a estar completa e tocar
o outro apenas como um campo de força
ereto
amigo,
perder é um pavio
é osso
cante o fogo & busque
um poema novo


Juliana Bernardo

sábado, 8 de novembro de 2025

Prece de areia


Ogum Beira-mar
corre maré solta
traz faísca no olhar
quebra a louça

Ogum Beira-Mar
vem navegar
no fio da navalha
nos olhos de Mãe Iemanjá

Ogum Beira-Mar
vou contigo, não arrisco

caio no mar
vou navegar

Sétima onda
rajada de vento
Iansã no terreiro
na água e no mar

Dá passagem
Ogum Beira-Mar

Armadura prateada
búzio em flor
água salgada
na ronda da Calunga Grande
Seu Beira-Mar faz morada

Como bravos navegantes
de destino incerto
pedimos sua proteção
nos caminhos dos mistérios

Ogum Beira-Mar
vou contigo, não arrisco

caio no mar
vou navegar


Karina Gercke 

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Milionário do sonho


É o que eu digo e faço, não suponho, sou milionário do sonho
É o que eu digo e faço, não suponho, sou milionário do sonho
É difícil pra um menino brasileiro sem consideração da sociedade
Crescer um homem inteiro, muito mais do que metade
Fico olhando as ruas, as vielas que ligam meu futuro ao meu
passado
E vejo bem como driblei o errado, até fazer taxista crer
Que posso ser mais digno do que um bandido branco e becado
Falo querendo entender, canto pra espalhar o saber
E fazer você perceber que há sempre um mundo, apesar de já
começado
Há sempre um mundo pra gente fazer
Um mundo não acabado, um mundo filho nosso
A nossa cara, um mundo que eu disponho agora foi criado por
mim
Euzim, pobre curumim, rico, franzino e risonho
Sou milionário do sonho

Ali vem um policial que já me viu na TV espalhar minha moral
Veio se arrepender de ter me tratado mal
Chegou pra mim sem aquela cara de mau: Fala, mano, abraça,
mano
Irmãos da comunidade, sonhadores e iguais, sei do que estou
falando
Há um véu entre as classes, entre as casas, entre os bancos
Há um véu, uma cortina, um espanto que, para atravessar, só rasgando
Atravessando a parede, a invisível parede
Apareço no palácio, na tela, na janela da celebridade
Mas minha palavra não sou só eu, minha palavra é a cidade
Mundão redondo, Capão Redondo, coração redondo na ciranda
da solidariedade
A rua é nóis, cumpadi!
Quem vê só um lado do mundo só sabe uma parte da verdade
Inventando o que somos, minha mão no jogo eu ponho
Vivo do que componho, sou milionário do sonho

Vou tirar onda, peguei no rabo da palavra e fui com ela
Peguei na cauda da estrela dela
A palavra abre portas, cê tem noção?
É por isso que educação, você sabe, é a palavra-chave
É como um homem nu todo vestido por dentro
É como um soldado da paz armado de pensamentos, é como uma
saída, um portal, um instrumento
No tapete da palavra chego rápido, falado, proferido na velocidade do vento, escute meus argumentos
São palavras de ouro, mas são palavras de rua
Fique atento
Tendo um cabelo tão bom, cheio de cacho em movimento, cheio de armação, emaranhado, crespura e bom comportamento
Grito bem alto, assim: Qual foi o idiota que concluiu que meu
cabelo é ruim?
Qual foi o otário equivocado que decidiu estar errado o meu cabelo enrolado?
Ruim pra quê? ruim pra quem?
Infeliz do povo que não sabe de onde vem
Pequeno é o povo que não se ama, o povo que tem na grandeza da mistura o preto, o índio, o branco
A farra das culturas
Pobre do povo que, sem estrutura, acaba crendo na loucura de ter
que ser outro para ser alguém
Não vem que não tem
Com a palavra eu bato, não apanho
Escuta essa, neném, sou milionário do sonho
Por isso eu digo e repito: Quem quiser ser bom juiz deve aprender
com o preto Benedito

O mundo ainda não está acostumado a ver o reinado de quem mora do outro lado da ilusão
A ilusão da felicidade tem quatro carros por cabeça, deixando o planeta sem capacidade de respirar à vontade
A ilusão de que é mais vantagem cada casa, mais carro que filho
Cada filho menos filho que carro
Enquanto eu com meu faro vou tirando onda, vou na bike do meu verbo tirando sarro
Minha nave é a palavra, é potente o meu veículo sem código de
barra
Não tem etiqueta embora sua marca seja boa, minha alma é de boa marca
Por isso não tem placa, tabuleta, inscrição
Meu cavalo pega geral, é Pegasus, é genial
A palavra tem mil cavalos quando eu falo
Sou embaixador da rua, não esqueço os esquecidos e eles se lembram de mim
Sentem a lágrima escorrer da minha voz, escutam a música da minha alma
Sabem que o que quero pra mim quero pra todo o universo
É esse o papo do meu verso

Mas fique esperto porque sonho é planejamento, investimento, meta
Tem que ter pensamento, estratégia, tática
Eu digo que sou sonhador, mas sonhador na prática
Tô ligado que a vida bate, tô ligado quanto ela dói
Mas com a palavra me ergo e permaneço, porque a rua é nóis
Portanto, meu irmão, preste atenção no que vende o rádio, o jornal, a televisão
Você quer o vinho, eles encarecem a rolha
Deixa de ser bolha e abre o olho pra situação
A palavra é a escolha, a escolha é a palavra, meu irmão
Se liga aqui, são palavras de um homem preto, samurai, brasileiro, cafuzo, versador, com tambor de ideias pra disparar
Não são palavras de otário, já te falei, escreve aí no seu diário:
Se eu sou dono do mundo, é porque é do sonho que eu sou milionário!


Elisa Lucinda e Emicida


(Ouça aqui a canção cantada e rimada pelos artistas!)

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Dia a dia


Um dia vi meus amigos jogando ping pong numa
travessa da Rocinha II do Karatê na Cidade de Deus.
Parei, observei e fiquei por um instante imensamente
feliz porque sorriram juntamente comigo.

Outro dia avistei diversas minas gatas da comunidade
tomando açaí e sentadas numa mureta. Elas sorriram
pra mim e sorri pra elas também.

Daí, avistei jovens tirando uma partida de futebol
numa quadra. Eles acenaram pra mim com respeito
e emocionadamente chorei. Hoje escrevo, publico e
divido esses momentos com todos vocês.


Nélio Fernandes

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Mamãe mar


Mãe d'água
Rainha sereia
A balançar no vem e vai que embala
Fica doce feito bala
Peixinho ele é
Quando visita mamãe
Viaja nas profundezas azuis 
Belezas do mundo fundo do mar
Tem areia, conchas, corais
Peixes, tartarugas, golfinhos, baleias
Navios e mistérios ainda mistérios
O menino a sonhar...
Coisas para lá... 
De um horizonte além mar...


Banditt

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Monjolo (Chorado do Bate-Pilão)


Fazenda velha. Noite e dia
          Bate-pilão

Negro passa a vida ouvindo
          Bate-pilão

Relógio triste o da fazenda.
          Bate-pilão

Negro deita. Negro acorda.
          Bate-pilão

Quebra-se a tarde. Ave-Maria.
          Bate-pilão

Chega a noite. Toda a noite
          Bate-pilão

Quando há velório de negro
          Bate-pilão

Negro levado pra cova
          Bate-pilão

                         (1926)


Raul Bopp

domingo, 2 de novembro de 2025

Negra, sim!


Nas minhas vivências 
As potências e os afetos adotaram uma postura
"Quero ser livre com sentido"
Sou intensa, tenho um coração que pulsa, pulsa, pulsa...
Não quero dormir, não quero fugir...
Só quero viver, viver!
Eu me construo, eu me reconstruo.
Eu vivo!
Sou mulher negra, sim
Enxugo lágrimas e só caminho quando sei onde vou chegar
Meu mundo é um sonho real
Nele construo ideias,
Crio sonhos e meu ego se enaltece!
Sou a união estável entre seres que se amam
Quero a paz entre os povos
a harmonia para o planeta em que vivemos.
Não tenho dúvidas em meu "Ser"
Só tenho garra e vontade de "Ser", de querer, de saber,
de vencer!
Sou negra cheia de graça
Não digam para mim: ponha-se no seu lugar!
O meu lugar é onde eu quiser estar!
Negra, sim!


Mery Onírica

sábado, 1 de novembro de 2025

Vera Fischer se espelha no jogo de cena da peça "O casal mais sexy da América”

Vera Fischer e Leonardo Franco vivem par amoroso
em O casal mais sexy da América / Foto: Carlos Costa 

Comédia escrita pelo dramaturgo norte-americano Ken Levine com fidelidade às regras do playwriting, America's sexiest couple estreou em julho de 2022 nos Estados Unidos, pondo em cena temas como etarismo e abuso sexual, a partir do reencontro de um casal de atores em fase outonal de suas carreiras.  


Três anos depois, o texto ganha a primeira montagem brasileira em adaptação fiel de Tadeu Aguiar, também diretor da encenação, que vem percorrendo capitais do Brasil ao longo de 2025. No momento, O casal mais sexy da América está em cartaz no Rio de Janeiro (RJ), no Teatro Clara Nunes, um dos palcos do Shopping da Gávea, espécie de Cinemark do teatro carioca.

 

O grande atrativo da peça é a presença de Vera Fischer no papel de Susan White, atriz veterana que fez muito sucesso nos anos 1990, ao estrelar série de TV com o ator Robert McAllister, personagem de Leonardo Franco. Três décadas depois, enquanto luta para se manter em cena, Susan reencontra casualmente Robert em um dos quartos do hotel onde estão hospedados para ir ao funeral de um colega da mesma série. O encontro traz à tona memórias dolorosas, em jogo de cena armado para provocar o riso do espectador, com direito a uma cena de sexo confeitada com o humor pastelão das comédias mais populares.

 

Com elenco completado por Vitor Thiré, bem aproveitado no papel de um jovem millennial que trabalha no hotel, O casal mais sexy da América se escora na presença magnética de Vera Fischer. Uma das referências de beleza feminina no Brasil, a atriz catarinense, ao longo de sua carreira, lutou para provar que tinha talento. Esse talento é comprovado na pele de Susan.

 

Vera Fischer festeja 74 anos neste mês de novembro, precisamente no dia 21, e enfrenta há anos o mesmo ocaso de Susan White no mercado do audiovisual. Outrora protagonista de novelas como Coração alado (1980) e Laços de família (2000), sem falar em séries como Desejo (1990), a atriz já não encontra espaço no mundo das novelas e séries. E volta e meia se queixa disso em entrevistas.

 

Dessa forma, a encenação de O casal mais sexy da América se alimenta de um jogo de espelhos entre atriz e personagem. É como se Vera se visse refletida em Susan. E, quando a personagem desabafa sobre os efeitos do etarismo na profissão, é quase inevitável que o espectador interprete as falas como queixas da própria Vera Fischer em curiosa interseção entre ficção e realidade.

 

Com montagem de contorno realista, O casal mais sexy da América sustenta a atenção do público como esse jogo de cena ancorado na presença luminosa da impagável estrela Vera Fischer.


Mauro Ferreira

Mês da Consciência Negra no Plástico Bolha


No Plástico Bolha, a diversidade é naturalmente uma questão de ordem, cotidianamente. Buscamos publicar autores das mais variadas localidades, nacionalidades, etnias, credos e orientações de gênero, sem distinções etárias, exibindo lado a lado autores inéditos e consagrados. Porém, neste novembro de 2025, separamos uma seleção mais do que especial. Nossa antologia está voltada à consciência negra, e traz poemas de muita força, alegria, resistência, negritude e muita ancestralidade. Esperamos que todos vocês sejam tocados como leitores tanto quanto nós fomos nesse processo de edição.

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Um poema de Carlos Orfeu


o edifício
arquitetura-niemeyer
fauna pétrea com salas
escadas/elevadores/funcionários

engole o poente
em  sua concretude
e desce todos os andares
na pupila

entre a efusão da realidade
pessoas perambulam na vertigem
com seus relógios de estimação
nas coleiras rosnando
tempo


Carlos Orfeu

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Canto, de Paloma Roriz


Certas palavras brilham.

Abertas em voo,
encostam velozes nos objetos.
Encontram nos rostos,
desenham linhas ao redor da boca,
tocam a ponta dos dedos,
como se vertessem azeite antigo.

Palavras fibrosas, que curam as horas.
Palavras pétreas, que antecipam o silêncio.


Paloma Roriz

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Ferimento


um corte nos olhos
hemorragia no peito
amor coagulado no bar


Knorr

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Ettore com Lucas


Enquanto a gente discorre
entre lascas de queijo
acompanhadas de mel
Heineken e pão fresco
sobre a febril atividade
humana, na rua que vejo
pela vidraça o verão
tem pernas de modelo.

Até que escorrendo do sol
feito uma espécie de cera
e atravessando a conversa
com o rumor da abelha
que prepara o aguilhão
para ferroar suas presas
a tristeza cai ardente
sobre a tarde atrás da mesa.


Alexandre Bruno Tinelli


segunda-feira, 27 de outubro de 2025

noite-se


teu ventre azul,
seco de poesia
feito rio manso
em que foi deitar
ao estilo falo,
no trincar dos dentes
como um pau na
boca, que riça
sua pele e que
vai morrendo
pra enfim, gozar!


Anelise Freitas

domingo, 26 de outubro de 2025

um poema de Thiago de Freitas Peixoto


Sobre a sujeira
eu não sei o que mais incomoda
a poeira sobre quem se acomoda
ou quem fica passando pano.


Thiago de Freitas Peixoto

sábado, 25 de outubro de 2025

Um poema de Beatriz Bastos


Desde que nasci
te escrevo
estas palavras
seus olhos, algo seu, algo meu
que ao escrever
te prendo, te liberto,
para sempre
na minha pele
como em palavras
nuas.


Beatriz Bastos

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Luz acesa


No seio profundo das trevas da noite
ainda há uma luz acesa
desafiadora de toda escuridão.


Ẹgrium Tạdrel

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Carnicidades


É Rio de Janeiro e tarde cai
no céu dourado que arde o grito
mudo sufoco pensamento sexo.

sigo ambulante e só
vejo a pedra talhada pela fome
em pleno êxtase do riso enganado e seco
prenhe de janelas ovos uivos vivos e mortos
na noite em que mora o silêncio feito de estrondos
consertos  comícios de cometas comércios.

Vago livre num voo breve
pairo desprovido desprevenido
desatino a língua escolhida pelo deus
que são tantos que são todos
todo mundo a cidade e a carne.


André Vinícius Pessôa

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Haicai de Verão


de infinitas lágrimas
e farelo de polvilho
são feitas as praias


Lucas Viriato

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Rua Debret


Há muito tempo,
eu diria milênios,
que não abraço o meu amor
como abracei aquele dia
na rua Debret, quando dentro
dos bolsos os ingressos do cinema
suspiravam pelo
que ali acontecia,
e dentro das bocas os beijos
Dançavam,
pasmos com tamanha alegria.


Hudson Pereira

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Cloe, de Carlos Andreas


Banhada por canais
concêntricos
sobrevoada por pipas
de cidade grande
as pessoas
não me reconhecem
nas ruas
com o
guepardo
na coleira,
mesmo
aqui entre
os pórticos
onde por acaso
me abriguei
da chuva


Carlos Andreas

domingo, 19 de outubro de 2025

Um poeminha de Alvaro Posselt


Essa tá no papo
A mosca pousou
na sopa do sapo


Alvaro Posselt

sábado, 18 de outubro de 2025

Via indireta


Às vezes não amo as rosas,
mas as mesas que as sustêm.

Mas me dirijo às flores
num engano que convém.


José Irmo Gonring

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Exemplos


Um mal exemplo
ainda sim serve de
Ex: emplo.


Márcio Kozlowski

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Marco Nanini é fiel a um teatro de ideias ao reencontrar Gerald Thomas em “Traidor”

Marco Nanini em Traidor | Foto de Matheus José Maria

Vinte anos após armar a cena com a reflexão política de Um circo de rins e fígados (2005), Marco Nanini continua em cartaz com o espetáculo em que reencontra Gerald Thomas, um dos encenadores mais potentes do teatro brasileiro. A reunião de ator e diretor acontece em Traidor. Em rotação pelo Brasil desde novembro de 2023, mês em que estreou em São Paulo (SP), o espetáculo aterrissa no Teatro Luiz Mendonça, no Recife (PE), para duas apresentações agendadas para 18 e 19 de outubro.

Traidor tem texto escrito por Gerald Thomas a partir de observações ácidas sob o fervente caldeirão em que está mergulhado o mundo contemporâneo. Na cena, marcada pela exuberante estética visual criada pelo diretor que se alterna entre Brasil e Nova York, Nanini personifica um ator que, às voltas com o mundo em ebulição da própria cabeça, reflete com certo ar nietzschiano sobre os (des)caminhos do Homem, enquanto permanece isolado em uma ilha, cercado de indagações existenciais.

“Se houvesse um cruzamento entre Kafka e Shakespeare, então esse seria Traidor, uma espécie de híbrido entre o Joseph K de O Processo e o Próspero de A Tempestade, cuja mente renascentista olha para o futuro da civilização, perdoa os detratores e os absolve", sintetiza o encenador.

Na encenação de Gerald Thomas, o mundo é um reino em desencanto, terreno fértil para o cultivo de questionamentos e reflexões existenciais de um ator que se sente estranho no ninho da era digital e das redes nem sempre sociais. Um ator que, no delírio da mente, mostra resiliência na defesa e manutenção da emoção. “A gente se emociona, sim”, repete o ator, em elo com o espetáculo de 2005, encerrado com frase similar.

O ator está só em cena. Nem a presença do coro masculino que encorpa a encenação ao transitar pelo palco dilui a sua solidão na dramaturgia fragmentada e intencionalmente desconexa de Gerald Thomas. Povoado por destroços, sinais da decomposição do mundo contemporâneo, o cenário entroniza o ator ao mesmo tempo em que o desnuda diante do público. O ator-rei está nu, incapaz de se vestir com a bestialidade cotidiana que o assombra como um fantasma.

Traidor se conecta com a obra do escritor tcheco Franz Kafka (1883 – 1924) porque põe em cena a angústia do homem moderno — no caso, um ator, mas poderia ser qualquer homem —  diante do absurdo da condição humana. Teatro do absurdo?  Sim: há muito de Samuel Beckett (1906 – 1989) na medida em que o texto não está lá para ser “entendido” como uma apostila ou uma cartilha da dramaturgia convencional, e sim para ser sentido como um turbilhão de sensações aflitivas que traduzem o descontrole da existência humana no caos apocalíptico do século XXI. Se o teatro por vezes soa absurdo, é porque a vida é absurda.

Totalmente entregue ao jogo cênico proposto por Gerald Thomas, Marco Nanini expõe em Traidor a fidelidade a um teatro de ideias em que música, iluminação, cenografia — todas exuberantes, como de hábito nos espetáculos de Gerald — enchem olhos e ouvidos sem atenuar o desconforto da mente do espectador.

Diante do apocalipse iminente, o dramaturgo aposta na colagem de cacos (em afinidade com o cenário em ruínas) e de ideias encadeadas com certo humor e sem lógica aparente no texto provocativo. Em Traidor, o trabalho de Marco Nanini está posto a serviço do teatro de Gerald Thomas. O que somente engrandece o ator no exercício inquieto do ofício.


Mauro Ferreira


quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Poeminha de Rodrigo de Souza Leão


cavo o meu espaço
cavando a sepultura
buraco nas alturas

Rodrigo de Souza Leão

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Rocinha


Olhar a favela
Assim tão bela
Dessa grande janela
Me mostra as sequelas
Expostas
À mostra
Os tais pormenores
Como num entalhe 
Falam por si só
Aonde a vida 
Aberta em ferida 
É de deus um milagre
Da bala perdida
Ou do pó
Bela favela
Favela bela
São becos, ruelas
Atalhos, vielas
Nascida dos passos 
De desbravadores
De amores e desamores
Dos que foram empurrados
Morro acima
Deletados
Marginalizados
Eu ouço o seu grito
Às vezes aflito
Às vezes tristão
Ou então
Eufórico
Estúpido
Melancólico
Na ânsia de só querer chamar atenção
Eu vejo a sua luta
Eu vejo a batalha
Na eterna permuta
De guerra e de paz
Na vida favelada
Que cresce aos centos
Ao longo do tempo
Frágil
Fugaz
Favela moleca
Favela sapeca
Malandreada
Morena ondulada
Bailando com a gente
De frente pro mar
Eu cresço a te observar


Kell

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Cacoete


todos os poemas
são inconfessáveis
mas pensando bem
não faz diferença
acho que ninguém
revira esta gaveta
à procura de pistas
de que importa um tropeço
na sapatilha ou o cacoete
daqueles que desviam
os olhos
dos olhos?


Alice Sant'Anna

domingo, 12 de outubro de 2025

Descaptura de um órgão


isso merece o medo
se você disser que não está com medo
está mentindo
é como descer uma montanha gigante
sem experiência alguma


Mauro Santa Cecília

sábado, 11 de outubro de 2025

espantalho vespertino


amarro meu pulsos num laço
à boca, coração de veado e uma fita
tapo minhas orelhas com mato

vendo meus olhos com trapo
esqueço meus pé no telhado
com suspiro, um segundo e acabo.


Ana Salek

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Mineiridade


Quando chego de Minas
trago sempre na boca um gosto de terra.
Chego aqui com o coração fechado,
Um trem esquisito no peito.
Meus olhos chegam divagando saudades,
meus pensamentos cheios de uais
e esta cidade aqui me machuca
me deixa maciça, cimento
e sem jeito.
Chegando de Minas, 
trago sempre nos bolsos
queijos, quiabos babentos
da calma mineira.
É duro, é triste
Ficar aqui
com tanta mineiridade no peito.


Conceição Evaristo

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Um poema de Carlos Orfeu


vejo (me)
imagem

vórtice
(dis-
farce)

trajado
de
vidro


Carlos Orfeu

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Cafeterias


Colombo
Gioconda
Starbucks
Cafeína
Esch Café
Manon
Casa Cavé
Argumento

(nobres endereços para sofrer em silêncio)


Hudson Pereira

terça-feira, 7 de outubro de 2025

O nada


Nada vi nada sei
Nada me interessa
Nada é normal
Nada é tão tudo que eu chego
A não ver nada
Nada dá medo
Nada é ver ouvir e calar

O nada é não se incomodar com nada
Pra viver nesse mundo de covardia é preciso
Muitas vezes você ser surdo

Portanto o nada não ouve, não vê
Não sabe de nada


Lindacy Fidelis

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Oração sem sujeito


Oh grande ácido acetil-salicílico,
em nome do paracetamol,
nos dê vinte miligramas de boa vontade.
Livrai-nos de todo omeprazol
e de toda receita de meia verdade,
e não nos deixeis cair no zolpidem.
Mandai todo voltaren pra farmácia que o pediu.
Benzetacil.
Amém.


Ẹgrium Tạdrel

domingo, 5 de outubro de 2025

Felina, de Noélia Ribeiro


you
beside me
inside me
behind me
hiding me
near me
hear me

you and me
you all me
me all


Noélia Ribeiro

sábado, 4 de outubro de 2025

a pedra tão longe


a pedra, tão longe
reluz e me introduz
segredos de monge


Marcela Sperandio

Um poema de Luana Carvalho


Todos  os dias me sujo de coisas eternas café preto
Vinho tinto shoyo sono horror saudade 
sombra chama chuva brita
parasitas labirintos
lestrigões 
livros discos organismos
hemisférios centenários água sorte
soro cores casas brancas com varandas 
variantes armaduras sonhos seivas céu você


Luana Carvalho

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

3x4, de André Vinícius Pessôa


Que tempo é esse?
Que medida da esperança deitada na grama?

Que é desse jardim das delícias?
Mil e uma noites com seus dias quentes?

Mergulhar no fado
atravessar a nado
criar o verso fátuo:
a tão pequena gota.

3x4
meu retrato
minha cara à tapa.

Mão no leme:
a hora é nua.

Saravá
a terra treme.

Minha tara
sua lua.


André Vinícius Pessôa

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

“O motociclista no globo da morte” expõe o estado-violência do ser humano

Monólogo escrito por Leonardo Netto e estrelado pelo ator Eduardo Moscovis, sob direção de Rodrigo Portella, impacta ao mostrar a ebulição da humanidade através da história de um homem comum diante da barbárie.


Eduardo Moscovis em O motociclista no globo da morte | Foto de divulgação

O poeta e dramaturgo Bertolt Brecht (1898 – 1956) já alertou que “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém reputa como violentas as margens que o comprimem”. No monólogo O motociclista no globo da morte, escrito por Leonardo Netto e encenado pelo ator Eduardo Moscovis sob direção minimalista de Rodrigo Portella, a violência espreita o espectador como um bicho acuado, pronto para atacar a qualquer momento. Só que o ataque, previsto desde o início do monólogo, é desferido ao fim de forma surpreendente e atinge o espectador como soco no estômago que chacoalha a mente e provoca a reflexão sobre um mundo em permanente estado de violência na vida cotidiana.

Na cena orquestrada por Rodrigo Portella, a violência é de início interior e tem a semente escondida na alma do personagem de Moscovis, Antônio, homem pacífico que vê o mundo implodir por força de circunstâncias trágicas provocadas por atos contínuos de misoginia e de crueldade com um animal. Nesse contexto, Antônio poderia até ser visto e saudado como herói, mas, como também lembrou o escritor e filósofo francês Jean Paul Sartre (1905 - 1980), toda e qualquer violência é sempre uma derrota.

Antônio sai derrotado do embate com outro Antônio, um ser humano como ele, um homônimo, um semelhante. Mas a sensação de derrota é geral ao fim da cena muda em que impera um incômodo silêncio. E até no silêncio ator e texto se agigantam no espetáculo em cartaz de quinta-feira a domingo no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro (RJ), até 26 de outubro.

O motociclista no globo da morte chega à cena com o mesmo impacto de Prima facie (2024), monólogo blockbuster da temporada anterior estrelado por Debora Falabella sobre a injustiça praticada pela Justiça contra mulheres vítimas de violência sexual. Há um elo entre os dois espetáculos porque Rita, personagem citada inúmeras vezes no texto de O motociclista no globo da morte, mas invisível aos olhos do espectador, também é vítima psicológica da espiral de violência misógina.

Mas é Antônio, o homem em tese pacífico vivido por Moscovis, que exterioriza e põe em prática uma violência que, afinal, reside e lateja dentro de todos os seres humanos, espectadores de videogames e de filmes sanguinários. Mesmo porque, nesse globo da morte chamado planeta Terra, já é difícil saber até que ponto a violência da vida real é potencializada pelos estímulos da violência da ficção.

Antônio derrapa e perde o controle no globo da morte. No momento do acidente, a iluminação de Ana Luzia de Simoni deixa o ator com menos luz na cena intencionalmente casual, reforçando a ideia, proposta pelo diretor Rodrigo Portella, de que Antônio é homem comum, ordinário, o que também se traduz visualmente pelo figurino de Gabriela Marra.

O espetáculo se impõe pela força do texto, da interpretação do ator (especialmente comovente na descrição do ato de violência) e da direção acertadamente crua. Todos os acessórios, como a trilha sonora de Muato, corroboram a sensação de que o sucedido com Antônio pode acontecer com qualquer um, a qualquer momento. E é essa consciência crescente ao longo do espetáculo que atiça a reflexão do espectador, capturado para olhar para dentro de si mesmo e detectar os polos potenciais de violência internalizada.

O motociclista no globo da morte reforça o dedo na ferida social. E a mente arde, ciente de que todo mundo pode ser Antônio se comprimido pelas margens estreitas da barbárie. Até porque, em última instância, como já sublinhou um líder budista da linhagem do dalai-lama, a violência interna ou externa é um sinal de desespero.


Mauro Ferreira

África


África,
Tão exótica na forma:
Os imensos embondeiros,
As resinas de acácia
E, nas planícies,
Os ungulados,
As placas de búfalo,
As patas de elefantes,
O satãs rebelados.

África,
Tão rica:
Os rios em delta,
Os lagos brancos,
Os oceanos largos
E, no deserto,
As pirâmides colossais
Observando os séculos

África,
Tão melancólica  no fundo:
Gemente,
Dolorosa,
O choro engolido
Pela areia ardente,
Pranto da prole desgraçada
Que nutriu com seu sangue
A América.

África,
Tão grotesca:
O cavalo do beduíno,
O guizo das cascavéis,
O sudário do Saara
Amortalhado de suplícios,
O canal de Suez
Amarrando os seus pés.

África:
Forma e fundo,
Alimária do mundo.


Raquel Naveira

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Pranto


nada machuca tanto
(e gera mais espanto)
do que este curto corte
da fina folha em branco


Lucas Viriato

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Evaporar, de Bruna Escaleira


tua língua 
          breve
minhas costas
                leves


Bruna Escaleira

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Um poema de Thiago de Freitas Peixoto


Em legítima defesa
oito tiros para derrubar a presa.
Todos na altura do peito.
do suspeito de ser culpado
de estar no lugar errado
e não portar certas respostas.
Quem viu atura calado.


Thiago de Freitas Peixoto 

domingo, 28 de setembro de 2025

Um poema de Paulo D'Auria


embora cheio
de fome
seja uma figura de linguagem
é também uma realidade
onde não cabe
poesia alguma


Paulo D'Auria

sábado, 27 de setembro de 2025

Um poema de Adriano Lobão Aragão


longe das vitórias
cultivamos batalhas
e com mãos vazias

te oferecemos esses tesouros:

a entrega dos dias
cercados de solidões companheiras

o que a vida nos der de dádiva
chamaremos amor


Adriano Lobão Aragão

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Cartilha


não
se aproxime
(estou
entre
parênteses)


Ramon Nunes Mello

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Um poema de José Elvis Ermano


nem sangue
nem hóstia
era mel de babaloo
na boca da beata


José Elvis Ermano

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Mar da noite


A fenda crescente
da lua minguante
ancora uma estrela.

Ao largo da noite
um errante cometa
singra o quadrante.

No céu de água negra,
preciso sextante,
a mente navega.
O pio da coruja
é farol de tormento!
Um amor flutuante.


Tânia Pagano 

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Descoberta

nada detém do tempo
tudo flui
num átimo

cabe à vida o fardo
de carregar a lágrima
superposta em cruz

as alegrias não tecem mais
o sentido dos dias
à espera do homem
o inexorável fim


Luiz Otávio Oliani

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Wit, de Eduardo Tornaghi


As coisas não são o que vemos
As coisas nem são o que são
Toda certeza que temos
É vaidade
Qualidade do que é vão


Eduardo Tornaghi

domingo, 21 de setembro de 2025

(mensagem na garrafa)


S.O.S
Me deixem.
Estou perdido.
Favor não me encontrar.


Pedro Tostes

sábado, 20 de setembro de 2025

sombra


como pode o sol debaixo da pedra?
toda sua giganteza atrás dum  pedregulho tão pequeno
pedrinha de ladrilhar a rua pro meu amor passar
o amor é traiçoeiro


Bruna Escaleira

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Um poema de Frederico Barbosa


mundo inundado de
filme negro fumaça morcego no ar
antena de rápido radar
anda
por ecos ondas e nós


Frederico Barbosa

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Salto ornamental


os poucos segundos diante da câmera
não fariam jus aos anos (uma vida
inteira) de ensaios e dores musculares
e alimentação regrada e tantas outras privações
os poucos segundos mostram
a atleta no trampolim
ela se prepara para o salto
ornamental que quem sabe
vai lhe render uma medalha
uma vaga nas olimpíadas
a consideração de alguém tanta coisa
o treinador apreensivo finge


Alice Sant'Anna

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Um poema de Daniel Pereira


beijos e abraços
sabor babaloo
dedo na boca, pose
ares de mon amour
faz e acontexe
cresce e aparexe,
tipo assim, bye-bye
ai, ai, sai
é luxo, não é lixo
sacou, bicho?


Daniel Pereira

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Vilarejo


Pessoas apenas passam
Assim como os ventos
No vilarejo
Do esquecimento


Arnoldo Pimentel

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Seppuku


Rendidas sob a katana
e a flor da honra, as mãos
se preparam para esculpir
o fim:
         toda a luz do vivido —
agora — entregue a lâmina
e ao eterno sono. Exceto,

a cerejeira escarlate
na lã do kimono.


Salgado Maranhão

domingo, 14 de setembro de 2025

Um poema de José Elvis Ermano


urubus e andorinhas
decidem na porrinha
a cor do entardecer


José Elvis Ermano

sábado, 13 de setembro de 2025

Zezé Motta faz do mundo ativista de Maya Angelou um templo de delicadeza

Crédito: Reprodução Facebook CCBB RJ / Ariel Cavotti

A escritora e poeta norte-americana Maya Angelou (4 de abril de 1928 – 28 de maio de 2014) deixou rastro de luz e ativismo no mundo ao perpetuar em relatos autobiográficos a força perene do povo negro diante dos abusos cotidianos da branquitude dos Estados Unidos. Essa luz tem sido espalhada nos palcos do Brasil pela atriz e cantora Zezé Motta com o espetáculo Vou fazer de mim um mundo, monólogo ora em cena no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro (RJ), até 5 de outubro, após passar por Brasília (DF) e Belo Horizonte (MG).

 

Em Vou fazer de mim um mundo, primeiro monólogo da carreira da atriz fluminense de 81 anos, Zezé Motta interpreta trechos do primeiro livro autobiográfico de Maya Angelou, Eu sei porque o pássaro canta na gaiola, publicado em 1969. No livro, obra-prima de literatura calcada na resistência e no humanismo que se agigantam em oposição à brutalidade do racismo e da violência sexual praticada contra mulheres negras, a escritora relata o estupro que sofreu aos oito anos em St. Louis (EUA) e uma série de abusos cometidos nos Estados Unidos segregacionistas dos anos 1930 e 1940.

 

Na voz e no tempo de delicadeza da interpretação de Zezé Motta, as palavras de Maya Angelou calam fundo na alma do espectador. Sem carregar no tom, a atriz concentra e interioriza a emoção de um relato que combate o horror com a poesia. Aliás, foi pela poesia e pela literatura que a escritora saiu do estado de mudez — no qual permanecera por anos, refugiada no mundo interior — e que recuperou a voz. Voz que se tornou ativista com a escrita de livros autobiográficos e que levaram Maya — nascida Marguerite Ann Johnson — a ser condecorada em 2010 com a Medalha Presidencial da Liberdade pelo então presidente dos Estados Unidos Barack Obama.

 

Em Vou fazer de mim um mundo, Zezé Motta aproxima o universo ativista de Maya Angelou do Brasil, com a consciência de que, parafraseando verso de música do grupo Titãs, miséria humana é miséria humana em qualquer canto do mundo. Maya Angelou foi brutalizada na infância por uma miséria humana recorrente no cotidiano brasileiro, historicamente regido pela violência e pela injustiça social. 

 

No monólogo, encenado por Zezé sob direção de Elissandro de Aquino, o paralelo entre Brasil e Estados Unidos é feito não somente pelo canto de temas afro-brasileiros entre temas norte-americanos, mas também pela citação de nomes como Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977) e Elza Soares (1930 – 2022), cantora brasileira que também transcendeu os abusos sofridos ao longo da vida pela força da palavra, no caso da palavra cantada.

 

Na cena de Vou fazer de mim um mundo, a música executada pela percussionista Mila Moura e pelo guitarrista Pedro Leal David (diretor musical arranjador do espetáculo) embala o canto transcendental de Zezé Motta. Mas é a palavra de Maya Angelou a força motriz do monólogo em que Zezé se eleva com voz ativa, pronta a neutralizar o horror do racismo com a resistência do humanismo, espalhando a luz irradiada pela escrita ativista da autora norte-americana.


Mauro Ferreira

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Enfim


Quanta coisa fiz
quando tudo impedia
que a felicidade, alegria
quantificasse em mim

Enquanto fingia
sentir o que eu sentia
tanta coisa mudou
que acabou, enfim

Quando não mais quis
querendo você, veio e diz
o quanto gostaria
que a gente fosse feliz


Mariana Teixeira

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Quinta


Sempre quinta.
Primeiro: um breve intervalo,
uma conversa distraída
uma pausa do dia-a-dia.

E uma quinta...
Um dia foi mais longa,
porque eu aceitei deitar para descansar.


Rosilene Jorge dos Ramos

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Matrimandir


arquitetura que é poema
de água luz pedras
cristal e silêncio
— beleza

lugar idealizado
construído imaginado
a duras custas
— dedicação

reflexo no espaço
dos sonhos da Mãe
centro da galáxia
— Auroville


Lucas Viriato

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Da inocência


No abatedouro das línguas
não vibra palavra encaroçada:
                doce no tacho,

olhar de criança cobrindo ossos de galinha
no chão de domingo
                               - anúncio de dança:
                                                   amarelinha
                                                   goiabada
                                                   e o gosto do verbo nos dedos


Carolina Barreto     

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

azulão


nenhum não trava a boca do céu


Naila Rachid

domingo, 7 de setembro de 2025

Soneto social


É sete de setembro. E em muitas valas
Mil bocas putrefatas negam hinos...
Olhando o céu enxergam só senzalas
E a fúria sentem dos grilhões divinos...

É sete de setembro. E queimam balas
De fuzis que hoje marcham sob os sinos
Da catedral. Mil corpos sem abre-alas
Enfeitam de revolta seus destinos!...

É sete de setembro. E da avenida
Se sente a aura de um cuspo contra a vida
Na povo ali a se acenar, absorto!...

Hasteada sobre o curso do desfile,
A auriverde Bandeira envolta em bile
Fede ao cadáver de seu filho morto!...


Guilherme Ottoni

sábado, 6 de setembro de 2025

Um poema de Isabel Diegues


intuo
tua boca
carnuda
dando
(doce
cena)
na maior
orgia
a língua
a alguém
enquanto
todo mundo
doido
duvida
da tua
aliteração


Isabel Diegues

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

pelé


dê um soco no ar e comemore até segunda-feira


Augusto Guimaraens Cavalcanti

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

O quarto azul


No abismo oco o mundo exausto
Alto e forte o choro guerreiro
Tatuado e recluso em números
A fantasia de porta em porta
Disfarça ao mutante o preconceito
O quarto rosa é de algodão
O bebê no colo sacia a vida
Nos bicos de mel da enamorada 
A mulher ciente olha o tempo
O quarto azul é indicador 


Neuza Ladeira


quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Como fugir


(decúbito frontal,
boca de gruta pro mar,
reunidos sal, dente-raiz,
concha e estrela morta)
           como o silêncio reconstruído
           na lenta aproximação dos minérios.

           como esfinge sem jurisdição,
           porto de um tétano intocado.

           como habitante - sem trabalho -
           do intestino de um colosso náufrago.


Daniel Valentim Mansur

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Cantata pra Mnemosyne


finalmente li o poema "quando eu tinha seis anos"

era o paraíso. mesa para quatro, comida pra dois
os meus olhos correndo as antigas avenidas. solidão

tão espessa a chuva, para tão curto encontro, senhor

— senhor, era como chamava, em mania
senhor, era o que escorria fogo dos lábios.

o poema inesquecível, chuva de zeus sobre dânae
os dedos perdidos em algum buraco. ponte preta, manicaca.

tão perenes os traumas, pra o dilaceramento tão breve, senhor.


Nina Rizzi

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

País


Quantas Igrejas de São Francisco
no topo de tantas ladeiras de pedra
e sem calçamento...

Quantas Sebastianas e Antônios
caminham até elas de olhar baixo,
desde o fundo mais fundo
do tempo mais antigo...


André Giusti

domingo, 31 de agosto de 2025

Desejo


Despistando o mar nos olhos
riria
e diria
ainda que nas entrelinhas
que um desejo assim
desse tamanho
não cabe no peito
e só um leito
acalma a alma
de quem ama


Mariana Teixeira

sábado, 30 de agosto de 2025

poema escarrado


este poema saiu assim porque eu queria cuspir na sua cara


Bruna Escaleira

Grupo Galpão parte da obra de Saramago para pôr em cena um ensaio sobre a miséria humana

(Um) Ensaio sobre a Cegueira | Foto © Guto Muniz


Publicado há 30 anos, em 1995, o romance Ensaio sobre a cegueira contribuiu para consagrar em escala mundial o escritor português José Saramago (1922 – 2010), laureado em 1998 com o Prêmio Nobel de Literatura. Nas páginas da obra, Saramago expôs a brutalidade da alma humana ao narrar o surgimento e a expansão de uma epidemia de cegueira que escancara a podridão das estruturas sociais calcadas na opressão e na colonização. 

 

A partir do livro de Saramago, o Grupo Galpão — fundado em novembro de 1982 em Belo Horizonte (MG) e, desde então, uma sólida referência de bom teatro em todo o Brasil — põe em cena um ensaio sobre a miséria humana. (Um) Ensaio sobre a Cegueira é o 27º espetáculo desse grupo mineiro que já contabiliza mais de dois milhões de espectadores e mais de 100 prêmios ao longo de 43 anos de existência.

 

Após passar por Belo Horizonte (MG) e Porto Alegre (RS), o espetáculo está em temporada no Rio de Janeiro (RJ), cidade onde ficará em cartaz até 14 de setembro no Teatro Carlos Gomes, de quarta-feira a domingo. 

 

A direção e a dramaturgia contemporâneas de Rodrigo Portella tomam algumas liberdades em relação à escrita de Saramago. Há falas em que os atores explicitam o fato de estarem fazendo teatro, em comunicação direta com o público, olho no olho. Mas a essência da obra de Saramago está lá, intacta. A narrativa é fiel ao livro.

 

E o que se vê é um espetáculo altamente potente, daqueles que grudam nas retinas e provocam reflexões nas mentes. O despojamento do início é como o começo silencioso de uma epidemia. Ninguém imagina o que vai acontecer em cena em um futuro muito próximo. Mas o futuro chega e instala o caos social no palco. No caso, a partir da disseminação do “mal branco”, nome dado à epidemia de cegueira em que os que perdem a visão passam a “ver” tudo branco.

 

À medida que a epidemia se alastra, o individualismo predador do capitalismo se espalha entre os sanatórios controlados e vigiados com armas por militares. Fica claro que o “mal branco” pode ser visto também como analogia para os sistemas ditatoriais que aprisionam e aniquilam todos os que podem prejudicar a “ordem social”.

 

É no aliciante segundo ato, situado nos sanatórios, que a encenação do Galpão se agiganta. Há forte teatralidade nas cenas em que as misérias humanas começam a aparecer com a escassez de comida e as exigências de um chefe miliciano para que as mulheres cegas o sirvam. É quando os silêncios impostos pelo diretor Rodrigo Portella dizem tudo.

 

A opção por trazer alguns espectadores literalmente para a cena — retirados da plateia e com os olhos vendados assim que sobem no palco — contribui para a sensação de que ninguém ali, no palco ou na plateia, está imune à cegueira. A epidemia pode atingir qualquer um a qualquer momento.

 

Entre os cegos, há a “mulher que vê”, personagem da atriz Fernanda Vianna. E é especialmente emblemática a cena em que ela vê a traição do marido no sanatório e essa visão expõe o que dói ser visto. No fim, a moral da história é que ver, enxergar o outro como ele é, é uma benção que não depende somente dos olhos, mas sobretudo de um estado de espírito, de uma predisposição para não se deixar enganar pelas convenções sociais. Como diz o dito popular, o pior cego é aquele que não quer ver. Com a peça do Grupo Galpão, tudo fica às claras. Principalmente a miséria humana e as corroídas estruturas de poder da sociedade do século XXI.


Mauro Ferreira

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Lumbini


cidade de Lumbini
um mosaico de templos
e monastérios budistas
que parece não ter fim

as variadas vertentes
da religião precisam
marcar seu ponto em
algum lugar por ali

patrimônio histórico onde
as distâncias são longas
e caminha-se bastante
entre um canto e outro

e como um poema
no epicentro de tudo
está o lugar preciso do
nascimento de Buda


Lucas Viriato

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Uno, um poema de Paulo D'Auria


tem o elo
e a corrente
a ponte
e o muro
tem a mão
e o murro
o são
e o burro
vivendo dentro
da gente

tudo tem dois
lados
inclusive
o uno.


Paulo D'Auria

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Contato


seu corpo
sobre o meu
se espalha
feito
água
da chuva
na calha.


Hudson Pereira

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Lançamento do novo livro de Fred Coelho na casa da Editora Cobogó ✨





Um fio gelado


Um fio gelado
Laminado
Desliza suave
Sobre a fase seca
Corta e revela
O guardado
Sagrado
E na terra fértil da memória
Brotam os espinhos
Que escondi de mim
De ti


Regina Mello

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Abissais


No abismo desses teus olhos
cristalizo meus ais.
Percorro luzes e sombras.
Em cada penumbra
deixo meus delírios
acontecerem.
Abro e fecho portas e janelas.
Esquecer-te?
Impossível jogo: te vejo na luz dessa foto por entre labirintos.
Portas e janelas te espelham
Sou cego de ti.


Vera Casa Nova

domingo, 24 de agosto de 2025

Para Woody Allen


Trago em mim 
Tuas mulheres
Todas
Só para te divertir 

Sou tua maravilha
Tela
Oitava arte
Barba Azul

Por outro lado
Tens todos os homens 
Que quis
Quando te quero
Só para eu te querer

Portanto
Não temos o que temer
Quando eu te amo
E a mim tu amas
Nós te queremos
Vós me quereis


Rosália Milsztajn

sábado, 23 de agosto de 2025

Muralha


Passam-se horas,
dias,
meses e anos
e eu aqui,
nesse compasso de espera...
Contagem regressiva
e prenúncio de longa viagem
sem retorno.

Atormentada,
ébria de desejos,
esbarro-me na miragem
de reflexos indefinidos
da minha própria imagem
destorcida e sufocada
pela ânsia de viver!


Lenita Holtz

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Bruma


Neblina na retina
turva a visão
embebeda o dia
e faz do passo
compasso sem harmonia

A via, que não via
me atravessa
enquanto tropeço
no passo
na fala
no verso


Mariana Teixeira

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Um poema de Thiago de Freitas Peixoto


Se fosse possível viver
das coisas que dão prazer
e não dinheiro ou poder.
a vida teria mais nexo.
Seríamos poesia e sexo.


Thiago de Freitas Peixoto

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

abducción con cumplicidad


eu trago a palavra
na ponta da língua
lambida sugada
molhada em saliva

se queres sabê-la
beija-me a boca
depois cala o bico
pois isso é segredo
é pacto é acordo
fechado com lacre
entre bruxa e corvo

abracadabra


Líria Porto

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Loop


Quando você coça
o queixo esquece
é real na cena
ou na tela

Quando você coça
o queixo na tela
e repete anula
ou recria


Otávio Campos

Simone Leitão e Plástico Bolha convidam a ouvir a Academia Jovem Concertante 🎹🎹🎹

 

Simone Leitão é pianista de longa data e também a mais nova parceira do Jornal Plástico Bolha. Alertamos: ela é fera! Não percam a oportunidade de ouvir a Academia Jovem Concertante:

21/8 — Mossoró (RN)
22/8 — Natal (RN)
24/8 — Vitória (ES)
27/8 — Sala Cecilia Meireles (RJ)
28/8 — Mangaratiba (RJ)

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Yoga, de Luiza Mussnich


estique os braços como lanças
abra os olhos dos joelhos
conte cinco respirações
na posição do coração
cobra
elefante
golfinho
cachorro
com as pernas em ângulo de noventa graus
expire nas costelas
procure sentir a carga de energia
do ponto que há entre as sobrancelhas
relaxe a relação do maxilar com a mandíbula
alivie a tensão da lombar a cada respiração
entregue seu corpo ao chãohmmm

Luiza Mussnich

Escrita de Clarice Lispector reina em cena nas vozes das atrizes Beth Goulart e Ester Jablonski entre o mito e o mistério


Simplesmente eu, Clarice Lispector

Que mistério tem Clarice – prosadora nascida na Ucrânia, mas naturalizada brasileira e de fato e de direito uma das maiores escritoras do país – para mobilizar tantas mentes inquietas com a sua escrita? A obra literária de Clarice Lispector (1920–1977) é a base de dois textos encenados por duas atrizes simultaneamente, em palcos do Rio de Janeiro, de sexta-feira a domingo, até 31 de agosto.


No Teatro Fashion Mall, Beth Goulart encarna a escritora de forma (in)crível – e também interpreta trechos de textos da autora do romance Perto do coração selvagem (1943) – em Simplesmente eu, Clarice Lispector, espetáculo que estreou em 2009 e que, 16 anos depois, vem arrebatando novas multidões no retorno à cena desde o primeiro semestre de 2025. 


Orquestrada pela própria atriz, hábil na seleção e costura dos textos, a peça de Beth Goulart é sinfonia exuberante em que gestos, falas, expressões, canto – a atriz dá voz a um tema sacro – e luz se afinam e contribuem para manter a aura de encantamento em torno de Clarice, personificada na exímia caracterização de Beth. 


No porão da Casa de Cultura Laura Alvim, Ester Jablonski interpreta quatro contos de Clarice no monólogo Silêncios claros, sob a direção de Fernando Philbert, com cena mais despojada, calcada nos textos das narrativas breves. Como o espetáculo de Beth Goulart, o solo de Ester Jablonski está voltando à cena. Estreou originalmente em 2013, no Rio de Janeiro, e retorna aos palcos cariocas pela eterna magia que envolve Clarice Lispector. 


Silêncios claros

Os contos são “O grande passeio”, “Uma tarde plena”, “A fuga” e “Uma galinha”. Todos se situam na cidade do Rio de Janeiro (RJ), mas os temas são universais e os textos, escritos sob ótica feminina. 


Clarice Lispector entendia muito da solidão e da opressão femininas. “A fuga”, por exemplo, flagra uma mulher em momento breve e fugaz de liberdade, numa válvula de escape do casamento que a esmaga por 12 anos. Doze anos que pesam como quilos de chumbo, como ressalta Clarice na voz de Ester. Enquanto a atriz descreve a fuga não concretizada, menos por medo do que pela falta de dinheiro, para embarcar no navio que a livraria do peso daquela união, o espectador viaja pela imaginação daquela mulher através da voz de Ester, que encena Clarice sem afetações.


“O grande passeio” sobressai na costura fina de Silêncios claros ao lado de “A fuga”. No conto que abre a peça, Ester Jablonski narra a história de Margarida, idosa que vive de caridade e é conhecida por Mocinha. A senhora, que causa espanto ao se dar ao luxo de passear, convive com fragmentos da memória e com migalhas da compaixão alheia desde que veio parar no Rio de Janeiro, vinda da Maranhão natal. Clarice Lispector descortina a intensidade do sentimento que banha o mundo solitário de Mocinha às voltas com fantasmas do passado. 


No palco, a literatura de Clarice ganha certa teatralidade, mérito do diretor Fernando Philbert na condução de Ester Jablonski em cena. Silêncios claros, afinal, não é um recital de contos, mas uma peça viva como a escrita de Clarice Lispector. A Clarice que procurou desmistificar o ato de escrever em entrevista reproduzida em cena por Beth Goulart na pele da romancista em um dos grandes momentos de Simplesmente eu, Clarice Lispector. Mas é que há tanta densidade no fluxo do pensamento literário de Clarice que talvez haja a necessidade de criar um mito em torno dela para tentar explicar um mistério insondável.


Que mistério tem Clarice para guardar-se assim tão firme no coração dos atores, dos poetas, dos compositores, enfim, de todos os brasileiros? A pergunta já foi feita em 1968 através de um poeta, José Carlos Capinan, letrista de “Clarice”, canção de Caetano Veloso. Talvez ninguém saiba responder a contento. 


Desde que irrompeu em 1943 como grande expoente da geração de autorias brasileiras da década de 1940, Clarice Lispector vem se perpetuando na memória nacional sem jogadas de marketing. Natural, a força da obra da escritora vem mesmo e tão somente da escrita densa, intensa e poética que ora reverbera nos palcos cariocas em dois monólogos que merecem ser vistos. Cada uma a seu modo, as peças “Simplesmente eu, Clarice Lispector” e “Silêncios claros” perpetuam a escrita, o mito e o mistério de Clarice.


Mauro Ferreira

domingo, 17 de agosto de 2025

Um poema de Clara de Góes


Opacidade cega
das manhãs em teu olhar
perdido.
A fúria dos esquecidos
flagelo de troianas
cassandras caladas.

Carrego meu corpo partido entre ruínas.


Clara de Góes

sábado, 16 de agosto de 2025

Poeminha de Rodrigo de Souza Leão




eu luto
contra
o luto


Rodrigo de Souza Leão



Relembramos sempre que Rodrigo de Souza Leão não fez parte diretamente do Jornal Plástico Bolha, mas foi por um triz: surgimos um pouco depois de sua partida, mas temos a certeza de que viria uma parceria interessante (caso as décadas tivessem colaborado). Contudo, anos mais tarde, via nosso querido amigo Ramon Nunes Mello, e com o aval da família e editores, temos hoje a hora de trazer um pouco da obra poética do autor para a mídia do PB. Achamos que ele ficaria contente em estar conosco, pois são muitas as similaridades em nossa forma de ver a Literatura como uma forma de vida, acima de tudo. Mesmo não estando aqui fisicamente, e apesar de não termos o hábito de publicar autores não vivos por aqui, julgamos que RSL está entre nós, vivo e atuante. Rodrigo, onde quer quem você esteja ou não: deixamos registrado a honra em publicar seus poema e em te ter conosco nessa grande e louca aventura no mundo das palavras. A seleção publicada aqui no blog está todinha reunida no livro LowCura, do selo Demônio NegroComprem Rodrigo! Leiam Rodrigo! Viva Rodrigo!