domingo, 15 de fevereiro de 2009

Os gestos — um texto de Adriano Espínola

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Imantado de solidão, caminho pelo centro da cidade. A multidão em torno. Cumprimento alguém, olho uma vitrina, passo a mão no rosto suado, aliso os cabelos. Dobro uma esquina. Adiante, as mãos penetram no bolso, examinam objetos, seguram chaves, papéis, dinheiro. Pairam no ar.
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Os gestos! Como bóiam anônimos e silenciosos dentro da tarde, tão imperceptivelmente meus que parecem fora de mim, misteriosos.
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Em que cidade teria aprendido a carregá-los? Ou serão eles que me conduzem a mim, prosaico caminhante da tarde?
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Súbito, escapam, viajam.
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Quem os possuiria além? Teócrito, o pastor grego? Ali está ele (vejo-o na imaginação), caminhando pelo mercado de Corinto. Cumprimenta o louro Hilas, que passa com o cântaro e a sua morte para o festim da noite. Dobra uma barraca.
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Com ele, os gestos desaparecem risco na água. Vão dar de beber aos mortos na curva dos rios. (Ali, onde o meu avô genovês nada no esquecimento e em silêncio empurra os gestos, ondas, que pelos dias vou refazendo.)
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Sim, os gestos caminham com as águas. Porejam no tempo. Circulam, úmidos, por entre objetos, corredores, portas, desejos. Por entre corpos que avançam e recuam feito marés.
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E quem, noutra esquina ou noutra tarde, colherá a forma fluida dos meus gestos e os repetirá, surpreso, assim banais, assim obscuros?
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Adriano Espínola é poeta, ensaísta e professor da UFRJ. Autor de Em trânsito - Táxi/Metrô(1996), Fala, favela (1998), Praia provisória (2006), entre outros. Este texto "Os Gestos" ele nos enviou exclusivamente na época em que o entrevistamos para a edição #10 do jornal Plástico Bolha. Quem quiser, pode ler a entrevista completa aqui.

2 comentários:

Eduardo Tornaghi disse...

Muito bom.

Eduardo Tornaghi disse...

Obrigado.
Estava caçando algum material sobre o Adriano e você apresentou essa entrevista ótima. Soube que o Secchin gosta dele e fui investigar.

Agora, gostaria que êle soubesse que digo poemas na rua e junta gente pra ouvir, que nem juntava pro Homero e pro cego Aderaldo. (bom talvez um pouco menos, mas aí sou eu não é a poesia). Talvez o estrangulamento esteja nos veículos.

A partir de agora tenho mais um poeta pra dizer. O povo vai adorar o jangadeiro.
Obrigado,
ET