Era uma vez uma mulher que odiava apenas uma vez e que gostava de tudo ao mesmo tempo, mas não gostava de si. Sua cor favorita era a solidão, e se vestia dela todos os dias. Sua música preferida era o silêncio do ritmo do jazz. Contudo aconteceu o dia do “de repente”: se despiu pela primeira vez e a solidão tomou a cor da carne, do gozo. E se sentiu completa.
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Caminhava a ermo tentando procurar não sei o quê. Nua, não percebia o quanto era despercebida. Não se importava com isso e nem com o que não tinha. Queria apenas estar plena de si. Entrou em uma loja de roupas, escolheu a mais indefinida e cara vestimenta e se olhou no espelho: não adiantava, sua nudez ainda estava lá, intacta. Não se incomodou de não chamar a atenção da vendedora e nem se importou com o olhar aterrador dela ao ver a roupa sair esvoaçante para a rua. Mesmo assim, deixou o dinheiro lá, no balcão.
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Entrou em um bar repleto de homens. Já fazia algum tempo que não consumia um. Serpenteou-se serenamente por entre as cadeiras mexendo nos ombros de um, nos braços do outro, sorridente e cativante. A sua nudez molhava translucidamente as pernas. Olhava para todos, sedenta e triste, sentada no balcão. Esperava apenas um para tomar a coragem. Apenas um.
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Foi difícil chamar a atenção de todos aqueles pobres coitados, vidrados na tela da tevê, em um jogo miserável entre dois times da segunda divisão. Olhou para o garçom, para o balconista, tentando atrair a atenção de ambos para o início do ritual. Não conseguiu. Ociosa, levantou-se da cadeira para ir embora, quando sentiu uma pressão no braço esquerdo e dois olhos reluzentes a encará-la. Virou rapidamente a cabeça, mas já era tarde. Ele estava intimamente voluntarioso, tentando dominá-la pelas mãos, pelas pernas, pelo pescoço. Animado, sabia exatamente o que fazer, deslumbrado com tamanha sorte. Ela ainda tentava lutar para ver o seu rosto, que há tanto tempo procurava na multidão. Mas já era tarde. Sabia que tinha sido achada, até o momento em que se perderiam novamente. Não se importava, sempre foi assim, desde o início dos tempos, desde antes de Caim matar Abel. Pobre Abel.
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Ele ainda brincava com o seu corpo, liberado propositalmente, até chegar ao ventre. Era o sinal para a entrega. Ela, suavemente, envolveu os braços do homem com os seus, passando pela cintura, forte, até chegar lentamente às costelas. E sentiu, na esquerda, a ferida aberta e pulsante, como uma boca aberta a devorá-la. E pensou aliviada e feliz: “Ah, Adão... Porque demoraste tanto?...”
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Verônica Ferreira
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Um comentário:
Adorei. Sensual, delicado e arrebatador. Parabéns!
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