(por Felipe Aguiar Chimicatti)
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Coetzee, J. M. Desonra. São Paulo. Companhia da Letras, 2000.
.Não é de admirar que sejam tão veementes contra
o estupro, ela e Helen. Estupro, deus do caos e da
mistura, violador da reclusão. Estuprar uma lésbica
é pior que estuprar uma virgem: o golpe é maior.
.o estupro, ela e Helen. Estupro, deus do caos e da
mistura, violador da reclusão. Estuprar uma lésbica
é pior que estuprar uma virgem: o golpe é maior.
Um romance desconcertante. John Maxwell Cotzee — sul africano de dupla formação, lingüística e matemática — começou a escrever há algum tempo, tendo seu primeiro livro publicado em 1969: Dusklands. Em 2003 recebeu o prêmio Nobel de literatura. A partir da leitura de Desonra é possível perceber a importância de seus escritos, de raro valor contemporâneo: viés sólido, de pungente crítica sócio-política enfiada na alegoria da personificação, cara demais à literatura. David Lurie é um professor acadêmico da Escola Técnica da cidade do Cabo (Cape Town), na África do Sul. É adorador do literato William Wordsworth e estudioso de Byron. Oscila seu tempo entre estudos sistemáticos de literatura inglesa e o magistério. Sente-se, entretanto, recorrentemente pungido ao sexo, e não hesita em fazê-lo, mesmo que acarrete em depressões morais: “Fui um servo de Eros: é isso que ele quer dizer, mas será que tem coragem? Era um deus que agia em mim”. Justifica-se nas razões da carne, razão dum cinismo mantenedor e vigorosamente coerente. Em ação motivada pelo acaso acaba se envolvendo com uma aluna, experimentando pelo sexo a interferência do seu ofício: chega ao ponto de, através das avaliações, construir a relação sexual de posse e domínio — relações erógenas que partem dos números (a nota dos testes). Ao referir-se a Melanie, sua aluna e amante, no dia em que perdeu uma aula e um teste, posiciona-se: Ao preencher a ficha de depois, ele marca uma presença para ela e dá-lhe nota sete. Ao pé da página, a lápis, anota para si mesmo: ‘provisório’. Sete: nota dos indecisos, nem boa, nem má”.
Explode a imprecisão acadêmica. Ele é acusado pela Universidade por intermédio de uma queixa da própria aluna. Pais, amigos e um suposto affair da garota atribulam-lhe a vida. Passa por um processo interno da instituição de ensino, assumindo os erros por completo, recusando, inclusive, ler o processo e as acusações. Sente-se velho demais para mudar ou se retratar. Consiste em sua existência um depreciado pedantismo acadêmico, da vernácula verdade de crer nos livros acima de tudo, nos recursos poéticos com lições prontas da vida. Tem cinqüenta anos e bastante restrição à sociedade, quer o mínimo de hipocrisias em seus modos, mesmo que eles o coloquem assim em posições desconfortáveis e aviltantes. Não que não se faça hipócrita — por vezes é —, no entanto, impõe seus próprios limites às explicações que residem dento da moral e dos bons costumes.
Muda-se para a África interiorana, África pós-apartheid, África das disputas pela terra, dos embates raciais. Sua filha — lésbica e quase camponesa — recebe-o cordialmente, mesmo sabendo do caso de assédio que revira as manchetes dos jornais. Em conversas esporádicas, faz-se tentar compreender ao menos à filha: seus diálogos têm algo da sinceridade paternal. A casa de Lucy — sua filha — é assaltada por três negros. David fica preso no banheiro enquanto os três estupram a filha. O trauma, desde então, passa a ser o incidente da convivência. Lucy se recusa a sair de sua terra; seria acovarda-se frente a uma questão social, recolocar em prática o apartheid, fugir, por medo da morte. O pai tenta-lhe convencer das facilidades da mudança, da importância de exorcizar seus fantasmas: nada adianta.
As relações se engalfinham em terras longínquas, onde o poder público toca, quando muito, só com os olhos. Petrus, seu vizinho e caseiro, faz confortável a situação; a terra que lhe foi cedida aos poucos se expande e divide cerca com a propriedade de Lucy, cerca que sequer existia. Suas ambições começam a fenecer; o conflito histórico se mostra maior que as pretensões de uma geração inteira. A terra e o embate de raça; tônus recíproco das relações sociais.
Coetzee, em uma narrativa retrátil e novelesca, faz um texto visceral. A atenção à história dá-se nas proezas estilísticas do texto entrecortado e sarcástico; realista e questionador. “Soraya é alta e magra, de cabelo preto comprido e olhos escuros, brilhantes. Tecnicamente, ele tem idade para ser pai; só que, tecnicamente, dá para ser pai aos doze”. São postas, então — neste linguajar —, as condições da disputa, e não as resoluções: este romance não quer achá-las, elas não existem nas enfermidades opressivas; não há simplesmente como desfazer de um dia para o outro o ódio que ronda gerações. Brancos versus negros; moralidade versus imoralidade; segurança versus insegurança; literatura versus vida real: todas as ambivalências deste livro são feitas não enquanto elegíacas, somente. São construções que não querem se colocar em posições hierárquicas, em pólos distintos: trata-se de ordens filosóficas imbricadas na imprecisão gerativa da condição humana, no conflito cotidiano insurrecto pela posse. Não há solução para o trivial das tragédias cotidianas.
Na Grécia, nos tempos da República, a tragédia exercia peremptória razão social. A partir da sublime desgraça, do fardo dos deuses e semi-deuses, os homens aprendiam. Faziam dos seus atos espelhos atrozes dos ensinamentos das artes, de modo geral. A desonra de um estupro figura nas estatísticas da África do Sul. O joguete moral do ato consiste numa dominação fálica, sexual. Os homens negros ao estuprarem Lucy dão provas de uma das opressões sul-africana; querem além do roubo um outro apetrecho, sádico e pernicioso. Imprimem-se na tragédia dos jornais, na fúria das gerações, querem para além da posse física, a posse existencial: apoderam-se da vida da mulher com imagens que lhe vão correr o imaginário por toda a vida, como uma cicatriz. A colonização africana foi bem mais que um povoamento mal medido, foi um estorvo. A tragédia grega, nesse romance, é o nódulo que indica o tumor, entretanto, sua aparência é meramente alegórica, serve para compor o cenário e condenar a arritmia das questões sociais. O ensinamento só pode valer partindo de um surto reacionário.
Explode a imprecisão acadêmica. Ele é acusado pela Universidade por intermédio de uma queixa da própria aluna. Pais, amigos e um suposto affair da garota atribulam-lhe a vida. Passa por um processo interno da instituição de ensino, assumindo os erros por completo, recusando, inclusive, ler o processo e as acusações. Sente-se velho demais para mudar ou se retratar. Consiste em sua existência um depreciado pedantismo acadêmico, da vernácula verdade de crer nos livros acima de tudo, nos recursos poéticos com lições prontas da vida. Tem cinqüenta anos e bastante restrição à sociedade, quer o mínimo de hipocrisias em seus modos, mesmo que eles o coloquem assim em posições desconfortáveis e aviltantes. Não que não se faça hipócrita — por vezes é —, no entanto, impõe seus próprios limites às explicações que residem dento da moral e dos bons costumes.
Muda-se para a África interiorana, África pós-apartheid, África das disputas pela terra, dos embates raciais. Sua filha — lésbica e quase camponesa — recebe-o cordialmente, mesmo sabendo do caso de assédio que revira as manchetes dos jornais. Em conversas esporádicas, faz-se tentar compreender ao menos à filha: seus diálogos têm algo da sinceridade paternal. A casa de Lucy — sua filha — é assaltada por três negros. David fica preso no banheiro enquanto os três estupram a filha. O trauma, desde então, passa a ser o incidente da convivência. Lucy se recusa a sair de sua terra; seria acovarda-se frente a uma questão social, recolocar em prática o apartheid, fugir, por medo da morte. O pai tenta-lhe convencer das facilidades da mudança, da importância de exorcizar seus fantasmas: nada adianta.
As relações se engalfinham em terras longínquas, onde o poder público toca, quando muito, só com os olhos. Petrus, seu vizinho e caseiro, faz confortável a situação; a terra que lhe foi cedida aos poucos se expande e divide cerca com a propriedade de Lucy, cerca que sequer existia. Suas ambições começam a fenecer; o conflito histórico se mostra maior que as pretensões de uma geração inteira. A terra e o embate de raça; tônus recíproco das relações sociais.
Coetzee, em uma narrativa retrátil e novelesca, faz um texto visceral. A atenção à história dá-se nas proezas estilísticas do texto entrecortado e sarcástico; realista e questionador. “Soraya é alta e magra, de cabelo preto comprido e olhos escuros, brilhantes. Tecnicamente, ele tem idade para ser pai; só que, tecnicamente, dá para ser pai aos doze”. São postas, então — neste linguajar —, as condições da disputa, e não as resoluções: este romance não quer achá-las, elas não existem nas enfermidades opressivas; não há simplesmente como desfazer de um dia para o outro o ódio que ronda gerações. Brancos versus negros; moralidade versus imoralidade; segurança versus insegurança; literatura versus vida real: todas as ambivalências deste livro são feitas não enquanto elegíacas, somente. São construções que não querem se colocar em posições hierárquicas, em pólos distintos: trata-se de ordens filosóficas imbricadas na imprecisão gerativa da condição humana, no conflito cotidiano insurrecto pela posse. Não há solução para o trivial das tragédias cotidianas.
Na Grécia, nos tempos da República, a tragédia exercia peremptória razão social. A partir da sublime desgraça, do fardo dos deuses e semi-deuses, os homens aprendiam. Faziam dos seus atos espelhos atrozes dos ensinamentos das artes, de modo geral. A desonra de um estupro figura nas estatísticas da África do Sul. O joguete moral do ato consiste numa dominação fálica, sexual. Os homens negros ao estuprarem Lucy dão provas de uma das opressões sul-africana; querem além do roubo um outro apetrecho, sádico e pernicioso. Imprimem-se na tragédia dos jornais, na fúria das gerações, querem para além da posse física, a posse existencial: apoderam-se da vida da mulher com imagens que lhe vão correr o imaginário por toda a vida, como uma cicatriz. A colonização africana foi bem mais que um povoamento mal medido, foi um estorvo. A tragédia grega, nesse romance, é o nódulo que indica o tumor, entretanto, sua aparência é meramente alegórica, serve para compor o cenário e condenar a arritmia das questões sociais. O ensinamento só pode valer partindo de um surto reacionário.
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Por fim, toda a narrativa termina como começou — num gesto prosaico, sem mesura. A vida das personagens recai sobre suas rotinas e frustrações: a condição humana é se degradar ante a morte, pouco a pouco, como um estupro faz com a lembrança, ligada, quer queiramos, quer não, aos conflitos humanos que espoliam a sensação letárgica de ser feliz num mundo de contradições. Coetzee nos choca por sua sinceridade, nada mais.
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2 comentários:
Saudações literárias!
Desejo muito enviar poemas para este espaço, um dos mais democráticos. Como faço? Envio para qual e-mail?
Forte abraço.
Aguardo notícias,
Rudinei Borges
www.rudineiborges.blogspot.com
www.aruasetima.wordpress.com
Olá, Rudinei,
basta enviar seus textos para redacao@jornalplasticobolha.com.br
Participe mesmo!
Abraços,
equipe Plástico Bolha
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