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Eu costumava ir para o sítio dos meus avós em Vassouras. Lá, havia muitos garotos da minha idade e, mal eu chegava, eles já batiam palmas na frente do portão para pedir consentimento para irmos brincar. Jogávamos bola, fazíamos competição de cuspe à distância, subíamos em árvores, comíamos jabuticaba na propriedade da vizinha... e, às cinco da tarde, parávamos o que estivéssemos fazendo para ir à beira da estrada de terra esperar o coxo passar.
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O coxo era um velho cego que possuía pés tortos e andava apoiado sobre uma bengala. Seus pés se arrastavam pelo saibro da estrada, deixando um rastro largo até o seu simples casebre que ficava em frente ao sítio dos meus avós. Por covardia, eu nunca havia me aproximado dele. Diziam que, no passado, ele cometera crimes horríveis, vetados para os ouvidos de menores, razão pela qual minha solta imaginação me levava a cenas dos piores filmes de terror. O velho homem ignorava os que ousavam se aproximar dele e lhe dizer idiotices. Às vezes, parava e, junto com seus passos tortos, parava a minha respiração e a dos moleques de Vassouras. Uma nuvem de silêncio nos envolvia. O coxo virava em nossa direção e, pelos seus olhos cegos, ele nos enxergava. Era apavorante perceber as cicatrizes profundas que lhe desenhavam a face.
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Eu sentia um frio em minha barriga que ia subindo e sufocava a minha garganta. Minhas imóveis pernas tremiam diante da imobilidade do coxo. E, quando ele se mexia novamente, para voltar o seu caminhar arrastado, eu e os moleques nos mexíamos também, corríamos alimentados pelo medo.
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À noite, eu ia escondido para o quarto dos meus avós. Minha avó já deixava um pequeno colchão preparado para receber o covarde neto. Meus olhos se arregalavam até as pálpebras se renderem e se juntarem.
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Um dia, meu avô reuniu a mim e aos moleques e disse que estava na hora de nos contar uma história. Contou sobre um rei de pés tortos que, ao descobrir que havia assassinado o pai e se deitado com a mãe, furou seus próprios olhos e partiu para o exílio. Na mesma hora eu e os meus amigos nos olhamos com olhares falantes. O coxo! Eu quebrei o silêncio perguntando quando que aquilo havia acontecido. Meu avô riu e disse que a história era sobre um mito de mais de dois mil anos. Meu primeiro pensamento foi que o coxo possuía mais de dois mil anos, porém, meu segundo pensamento, aproximou-me da realidade, não há ninguém que viva tanto tempo. Uma dúvida começou a vagar pela minha mente, quem era aquele coxo?
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No dia seguinte, dei uma desculpa aos moleques, não estava com vontade de brincar. Fiquei olhando, do sítio do meu avô, o casebre do coxo. Imbuído de um impulso nada familiar, fui andando em direção à casa do velho. Assim que cheguei, abri a estridente porta, pisei na madeira barulhenta do chão e entrei. A porta se fechou. Levei um susto. Fui andando pela sala e vi uma foto de um bebê, ao lado, havia uma outra foto, a de duas meninas em pé e, logo depois dessa, havia uma outra, a do coxo. Aproximei-me para observá-lo melhor na foto.
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De repente, senti algo apertar o meu pescoço, era o velho que havia me imobilizado com uma corda. Comecei a chorar. O coxo apertou mais forte o meu pescoço e ordenou que eu parasse com aquele choro de menina. Em seguida, desafiou-me “Decifra- me ou te devoro”. O pavor se revelou em lágrimas atropeladas na minha face. O velho, mais uma vez, ordenou que eu cessasse aquele choro. Eu obedeci. Então, veio a pergunta enigmática “Que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e à tarde tem três?”. Eu, sem conseguir raciocinar com a corda em meu pescoço, detive meu olhar sob as fotos. Elas dialogaram comigo. Foi então que percebi que o bebê da foto engatinhava com quatro apoios, as duas moças andavam com duas pernas e o velho se apoiava em uma bengala e em suas duas pernas. A minha boca soltou a resposta “O homem”.
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Senti a corda afrouxar. O velho, arrastando seus pés, andou em direção ao seu quarto. Fiquei ali esperando ele parar. Ele parou. Fiquei esperando ele se virar para mim e me enxergar através de sua cegueira. Ele se virou e me enxergou com seu olhar cego. Permanecemos em silêncio. Quando ele voltou a se mexer, eu não corri. Uma pergunta saltou pela minha boca “Qual o seu nome?”. O velho sem se virar, respondeu “ Édipo”.
Senti a corda afrouxar. O velho, arrastando seus pés, andou em direção ao seu quarto. Fiquei ali esperando ele parar. Ele parou. Fiquei esperando ele se virar para mim e me enxergar através de sua cegueira. Ele se virou e me enxergou com seu olhar cego. Permanecemos em silêncio. Quando ele voltou a se mexer, eu não corri. Uma pergunta saltou pela minha boca “Qual o seu nome?”. O velho sem se virar, respondeu “ Édipo”.
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