quinta-feira, 24 de junho de 2010

Fahrenheit 451: Quando o cinema de Truffaut encontra a literatura de Ray Bradbury

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Sua mão,
com um cérebro próprio, com consciência
e curiosidade em cada dedo trêmulo,
tinha se tornado ladra.
Montag sabia que isso era loucura, suicídio,
mas era também um começo.
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A primeira edição de Fahrenheit 451 apareceu no mercado de livros de ficção científica, antes de 1955, com o título de Fire man. É só partir de 1953 que o nome foi enfim trocado, simbolizando – como apontado logo no título da ficha catalográfica -, a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima. Seu autor, Ray Bradbury, foi radicado no campo da ficção científica, e é este o livro que o lançou efetivamente no cenário, embora já tivesse escrito ficções anteriores.
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O romance se passa em uma sociedade futurista onde os bombeiros são chamados para queimarem livros, objetos proibidos pelo Estado. O protagonista Guy Montag exerce essa profissão há 10 anos, quando conhece uma menina de 17, Clarisse, que começa a lhe questionar a validade do que faz, a despeito do pensamento de todos que lhe cercam. Basta algum tempo e a jovem some junto com a família; Montag ainda presencia uma cena em que uma velha é queimada pelos próprios bombeiros junto a sua biblioteca. Toda a conjuntura leva Montag a assumir a leitura para si mesmo, a roubar livros, pouco a pouco, enquanto executa-os em seu próprio ofício.
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Há uma explícita relação entre 1984, de George Orwell, e Fahrenheit 451: Ambas as obras são compostas por enredos conspiratórios em que um indivíduo se vê despregar da multidão social e perceber o esquema manipulador que o envolve; uma já anunciada alegoria crítica ao esquema bipolar pós-segunda guerra mundial aonde imperavam a guerra fria e seu esquema de aparências. Há ainda de se pronunciar a respeito do escritor inglês Aldous Huxley e de sua obra Admirável Mundo Novo, também integrante deste gênero ligado a "romances de censura", mesmo ainda que tenha sido escrita antes da segunda Grande Guerra. Enquanto Fahrenheit 451 teve sua primeira versão lançada em 1953, Orwell teve sua obra vista pelo publico em 1949 e Admirável mundo Novo ainda antes, em 1932. É particular da narração de Bradbury, entretanto, uma maior força na entrega ao gênero ficção-científica do que no caso de Orwell. Enquanto 1984 usa a estrutura futurista para compor o cenário da sociedade controlada, e, fatalmente, endossar sua pontual crítica, Bradbury o faz mais preso ao ímpeto do fascínio pelo gênero: Ler Fahrenheit 451 não é de perto intenso quanto 1984.
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Mas é no filme de 1966 do cineasta francês François Truffaut que o enredo ganha permanente imagem, projeta-se para fora do livro. Mesmo não seguindo rigorosamente a trama de Bradbury, o roteiro criado consegue dar conta da idéia principal: Algo na ordem de um livro tratando sobre uma sociedade que queima livros a fim de mostrar quão essenciais eles são e quão agressiva é a censura. Truffaut faz isso por imagens, deixando as folhas de papel se queimar vigorosamente em slow motion, pagina por pagina, criando fascínio e repulsa: a forma atraente do papel se queimando em oposição ao estúpido ato de fazê-lo.
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Por fim Montag integra a sociedade secreta de estudiosos que, ao invés de portarem os livros, são eles mesmos as próprias obras. A fim de fugir da censura, os estudiosos se empenham em decorar seu exemplar, exercendo o papel de transmiti-lo até a morte. As imagens dessa sociedade idílica que fica nos rumos dos trilhos enferrujados dos obsoletos trens, de alguma maneira, superam a descrição de Bradbury, dão o tônus que o livro não consegue criar, muito por ser uma ficção científica dos anos 50 percebida por leitores do século XXI: O futuro do passado. E Truffaut recria o ambiente ficcional ao seu modo, sem a obsessão americana pela tecnologia, mas atento à mensagem interna da realidade desdobrada pelos absurdos fascinantes que a ficção se propõe a criar.
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Fahrenheit é, portanto, um bom livro a ser lido e percebido hoje: carrega intensa carga crítica e faz refletir sobre os processos em que estamos envoltos, talvez bastante avessos aos processos que imaginávamos que estaríamos há 50 anos atrás. Entretanto, assistir em seguida ao filme de Truffaut confere mais imagens à narrativa, talvez perdida nas lacunas das mais de cinco décadas que separamos nós do lançamento.
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No posfácio da versão brasileira da editora Globo, com a primeira impressão em 2003, Bradbury confessa que a única forma que encontrou de escrever o livro foi recorrendo a maquinas de datilografar movida a fichas: ao se inserir uma moeda, o cronômetro e seu barulho relógio contavam o tempo restante. Logo, um romance contra o tempo e de alguma maneira para ele. É o que Fahrenheit nos dá, uma denúncia de como correu o tempo há algum tempo atrás.
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Finalmente localizei o lugar exato, a sala de datilografia no porão da biblioteca da Universidade da California em Los Angeles. Ali, enfileiradas havia vinte ou mais velhas maquinas de escrever Remington ou Underwood, que eram alugadas a dez centavos por meia hora. Você enfiava a moeda, o relógio tiquetaquiava feito louco, e você datilografava furiosamente para terminar antes que se esgotasse a meia hora. (...) Terminei a primeira versão em cerca de nove dias . Com 25 mil palavras, era metade do romance que acabaria se tornando”. (Trecho do posfácio)
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