Tinha
aprendido com o tio falecido o ofício: pegava a peça com a mão esquerda
enquanto a direita já empunhava a machadinha, sempre afiada. Cortava primeiro
as laterais, onde havia mais músculos. Em seguida, com o caminho livre até o
centro, o sangue quente escorrendo pela bancada de mármore, metia a mão e
arrancava o osso maior. Dalí em diante era mais fácil. Ia cortando em pedaços
mais ou menos iguais, e embrulhando em saquinhos plásticos. Os saquinhos eram
então pesados na balança adulterada (O que são 100 gramas a menos?) e empilhados
na vitrine congelada do pequeno açougue do português.
Para o galego
era quase de graça o funcionário: pagava-o com um café com leite e pão na
manteiga, um prato de comida e alguns pedaços de carne de 2ª para ele levar
para a mãe, uma senhora de 63 anos, mas que achava que tinha 19. De lambuja,
ainda oferecia a experiência no serviço, uma grande reputação no bairro e uma
promessa de viagem a Braga, onde trabalharia numa futura (e utópica) filial
daquele açougue de esquina.
O jovem
açougueiro, no entanto, precisava ganhar mais. A sua mãe viu em uma revistinha dessas de R$ 1,99, que
uma máquina de fazer chinelos bordados com miçangas podia render até 10 mil por
mês. 10 MIL! Imagina que já no primeiro mês eles poderiam cobrir o preço da
máquina, comprar outra e ainda faturar muito mais? Era garantido que até o
final do ano pudessem mudar de bairro, comprar um carro, fazer um cruzeiro e
ter um poodle de estimação.
A ocasião para o dinheiro rápido veio mais
cedo do que o açougueiro pensava. Numa tarde, enquanto misturava gordura com
acém que ia ser moído, o português foi até o fornecedor para revolver uns
assuntos. Como alguém que espera a oportunidade certa, um senhor, todo
engravatado, coisa rara naquele bairro, entrou no estabelecimento procurando o jovem
artista dos cortes de carne.
- Você é o
jovem açougueiro com maestria na arte de desossar, cortar e estripar carnes de
diversos tipos, daqui deste bairro?
O jovem
respondeu um tímido sim. Não havia entendido a maior parte da pergunta do
engravatado, mas assimilou as palavras “jovem”, “açougueiro” e “carnes” e
entendeu que aquele homem procurava por ele.
- Então tenho
uma proposta de emprego para você.
O trabalho era
bem simples, mas sujo. O engravatado era advogado de uma organização de
matadores de aluguel do bairro vizinho. De acordo com ele, estavam tendo
problemas para esconder tantos indícios depois de feitos os trabalhos, o que
poderia dar problemas futuros com a lei. Ouviram falar da maestria do jovem
cortador de carnes do outro bairro. Daí em diante foram feitas as negociações.
O português
teve que se virar sozinho. O jovem apareceu uma semana depois dizendo que não
dava mais. O gajo até disse que podia pagar a passagem do moço, mas este estava
decidido: iria sair dali e seguir em uma carreira que pagava o quanto ele
merecia pelo seu duro trabalho.
Não demorou
mais que um mês, e os corpos, previamente embrulhados em papel alumínio e
envoltos em grandes sacos pretos de lixo, foram entregues de táxi na casa do
açougueiro. O taxista, um russo que não
falava bem o português, não sabia o que carregava e tampouco queria saber: era
bem pago para isso e fazer contas era uma língua universal que ele conhecia
bem.
Com a vinda do
primeiro pagamento, a mãe conseguiu realizar o seu desejo. E como o dinheiro
era mais do que ela precisava comprou duas máquinas logo de uma vez, para o
lucro ser maior, de acordo com a revistinha. Não sabia bem o que o filho fazia
no novo serviço, mas quando este, que lhe poupou de alguns detalhes mais
inescrupulosos, contou que foi contratado por uma organização bastante
eficiente e importante do outro bairro, ela sentiu orgulho da educação que dera
a ele e agradeceu a memória do irmão falecido por ter ensinado a profissão ao
sobrinho.
Um acaso no
entanto surgiu. Era certo que o jovem carniceiro não tinha problemas no que
estava fazendo: era só fingir que se tratava de uma pata de boi, ou um lombo de
carneiro e fazer o serviço. Mas o volume do que resultava do trabalho era
grande, e estava sendo conservado na geladeira de sua própria casa. O
congelador estava agora abarrotado e a mãe por várias vezes se confundia e
quase acabava assando a tal “carne proibida” da qual o filho havia alertado
para ela não mexer.
A primeira
saída de início foi procurar o advogado e contar que os indícios, mesmo
cortados, estavam começando a acumular e poderiam levantar suspeitas da tal
lei.
- A parte do
corte e do armazenamento estão sob sua responsabilidade. Está no contrato que
você assinou na cláusula referente aos serviços que irão ser prestados.
O jovem, que
não sabia ler, teve que se contentar com as palavras do advogado, que deveria
ter razão no que estava falando. Ele era um homem bastante estudado e ainda se
vestia de terno e gravata, então deveria ter algum crédito de que falava a
verdade.
A máquina de
chinelos também não vingou: não demorou muito para a mãe descobrir que chinelos
com miçangas não poderiam ser vendidos pelo preço que a revistinha de 1,99
sugeria. Assim, eles acabaram sendo repassados para as comadres e para as irmãs
da igreja pelo preço de custo. Agora a casa da família do jovem carniceiro
estava com restos de carne para todos os lados e duas máquinas de fazer
chinelos encostadas.
A mãe, no
entanto, tinha um espírito empreendedor. Cansada das peças de carne espalhadas
até mesmo debaixo de sua cama e do cheiro de podre que começa a exalar de
algumas partes da casa, ignorou o pedido do filho de não mexer em nada e pensou
no que havia lido na última revistinha culinária que comprara. Em dois dias,
ela já havia preparado 500 salgadinhos que variavam em rissoles, coxinhas,
empanados e empadinhas. Todos com destino certo e pagamento adiantado.
O filho, que
andava muito ocupado em negociações com o dono de um terreno baldio com o
intuito de fazer a desova das peças, demorou a constatar o que a mãe havia
feito. Conseguiu, contudo, parar o empreendimento da mãe antes dela fechar
negócio e ser a fornecedora oficial dos salgadinhos da cantina do único colégio
particular da região.
A mãe, que
teve outro grande empreendimento de sucesso fracassado, comentou com a mulher
do português, que era uma velha amiga, o quanto o filho, apesar de estar num
ótimo emprego, havia mudado muito desde de que saíra do açougue, e agora criara
o hábito de estocar carnes em casa, colocando até mesmo nos vasos de plantas
dizendo que era um ótimo adubo natural.
A esposa do português que não tinha fama de
ser uma pessoa reservada, foi logo contar ao marido como andava seu
ex-funcionário. O galego, que andava de
mal a pior depois que perdera seu pupilo e
agora vivia a trancos e barrancos com o fornecedor (- 6,99 O KILO DA
MOELA? - É a crise portuga!) teve uma ideia e procurou seu ex-açougueiro para
lhe propor um negócio.
Depois de 6
meses, o jovem carniceiro, virou um jovem fornecedor. Depois de acertar as
contas, ele e seu ex-patrão agora estavam em uma sociedade. O português
finalmente conseguiu abrir a filial em Braga, na Rua do Souto, a principal da
cidade. A mãe estava orgulhosa do desempenho do filho, e ajeitava as últimas
questões para um novo investimento: uma
loja ao lado do açougue do filho, onde ela venderia suas exclusivas criações
nos mais variados pontos-cruz, que ela aprendera no último manual da Trico
& Crochê.
Judite Cypreste
Judite Cypreste
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