I
Esse homem que não acerta, "que não tem que" fazer
nada, escreve revive e repete os dados
do seu inconsciente em um caderno de notas, sobrepondo nomes de pessoas, nomes
de ruas, em pequenos espaços compartimentados (ele sempre escreve em cima de
uma comoda de gavetas), esse louco lento produz teias de corda e monta quebra
cabeças, assim como monta suas memorias; ele tece sua teia, sem saber se é real
ou sonho o que vive, magnifico exemplo humano que não consegue ser desfigurado
pelo tecnicismo heroico e superlativo. essa vida tosca, de andar a esmo em si,
vivendo na revivência, só esse louco conhece; só ele relembra de que já passou
por aquelas gavetas, buscando a saída, o estar aí dos loucos quando vem ao
mundo, e que de tanto investimento já toma toda a sua vida, não sobra mais nada
, na casa, no quarto, tudo é lembrança em movimento, calma nervosa, agitação. O
coração distraído pelo delírio não bate, apreensivo, em resposta ao
esquecimento. Mas o que ele esquecera? acelerado, foi do quarto ao refeitório
para pensar algo, pensou que esquecera, mas iria mesmo assim, não conseguia
lembrar do que esquecera antes no quarto, precisava pensar de novo, voltar pro
quarto, pensar tudo outra vez até achar algo que não sabia ainda. Foi ao
refeitório, a memória estava nele, precisava comer para ficar livre e voltar
para o quarto. a hora de comer era boa, ele sempre achava algo. assim andando
lembrou de um nome que não se vinculara a nada, mas anotou sobre outro na parte
de baixo de uma folha do caderno de notas. depois daquilo ele trançaria e
desmontaria a rede, faria de novo e poria outro nome.
II
Desconfiado de si mesmo, ele não se perdoava. Acreditava ser
o último de uma linha, mas ela era tão antiga que não se recordava a que tradição
se ligara. Decerto o tempo passara e agora se encontrava ali, sem saída, mas
também ser saber o que seria uma saída para alguém como ele.
Caminhava passeando pela areia da ampulheta, enquanto
esperava a recordação que perdera, ansioso para saber o que deveria acontecer
em seguida, sono contínuo, sua própria assombração no tempo congelado. De
repente percebera, ele não estava ali realmente, daí aquela palidez em todos,
(ele), estava no sonho de outro, em um lugar entre os tempos. Precisava sair
dali, ali não havia a massa do sonho, palpável como ele sabia, ir buscar seu
próprio sonho, sair daquela mesma cena que sempre se repetia. Mas imóvel
(sempre que concluía algo se sentia imóvel) ficou pasmo a esperar uma solução,
que não viria. A areia, ela sim era a
saída, seguir a areia e seu deslocamento era estar do lado da física, ao menos
era com certeza a única coisa que se movia por ali.
A poeira do movimento da ampulheta intoxicou o andante que
fatigado parou de caminhar, deitou e dormiu. Acordou longe dali, em um lugar
sem areia, sem nada. Impressionado com a vaziez do novo sonho em que caíra,
levantou-se e pôs-se a andar para ver se reconhecia alguma paisagem que não
fosse a escuridão. aturdido, pensante, atirou-se ao vazio e para sua surpresa
não caiu em parte alguma. É que cair em um sonho é como subir, ambos são
movimentos de voo, e prometem um espaço contínuo sem funduras ou completamente
fundo para todos os lados, um falteixo onde é impossível virar-se para baixo,
um espaço desejante e úmido, como o sorriso que se formara em seu rosto.
III
Por vezes sentia-se como se fosse revirar-se. isso mesmo,
revirar-se é ser do outro lado. Abrir-se, puxar a parte de dentro, como se
desvira uma camisa, e pôr em cima o que estava encoberto, o outro lado. Ser
assim, ficar desse jeito, seria mais fácil do que ter de se entregar todo o
tempo. Como não se continha na sua intuitiva forma de se revelar completamente
era melhor tomar uma atitude que o desgastasse menos. Sabia que revirado seria
um, digamos assim, estranho com suas veias e músculos aparentes, (ossos
ficariam no lugar) que as pessoas a princípio não saberiam como lidar com
aquilo, mas achava também que havia um certo charme em ser o primeiro a tomar
essa atitude. Sabia do seu temperamento e que as vezes exagerava, mas dessa vez
não, estava convicto, era assim que viveria. Isso talvez mudasse a forma de
lidarem com ele: tão completamente exposto, não haveria nada mais a explorar,
não seria mais espoliado nem iludido, não haveriam negociações. Se ficassem chocados,
não importava: melhor virado com o coração à mostra do que esconder os
sentimentos profundos que possuía. a sua certeza faria daquele ato uma
normalidade, isso é o que queria, viver sem dissimulação, mais do que nunca ser
ele mesmo e, salvo um ou outro problema, mostrar o homem lindo que sentia ser
por dentro e deixar de andar a esmo como fazia há séculos.
IV
A noite, ouvia aqueles sons e pensava: o que seria aquilo?
não sabia mais como proceder com o dom da audição que recebera. De que servia
ouvir aquilo tudo, se não podia separar e classificar cada um dos sons que
existiam? o que ele ouvia era um contínuo caos de multiplicidades, não era algo
linear, em sucessão. Para ele o mundo deveria ter outra sonoridade, onde as
coisas se sucedessem lentamente e não viessem ao mesmo tempo, para que
pudéssemos fazer uma escuta precisa de tudo. É claro que não importa o tempo
para que cada um de nós, cada um dos bilhões de humanos, tivesse de gastar,
isso não importa, mas sim o que viria depois disso, a capacidade de todos se
entenderem, assim diria ele, a língua universal é o entendimento que surgiria
do esforço de uma escuta total, interessada. Mas aquele zumbido múltiplo de
todos os lados, onipresente e ubíquo não deixava que isso acontecesse, e ainda
mais: aquela barulheira toda impedia que ele se concentrasse, daquela maneira
nunca chegariam lá! deveriam suspender esse som ruidoso universal. Fazê-lo
parar! até o som do big bang ainda estava lá vagando, não, isso não era
necessário, mas sim, se todos concordassem em se ouvir, o entendimento que
viria nos permitiria a arte do silêncio.
V
O mar selvagem o encantava. Suas vagas eram como lembranças
se espatifando contra o fundo da sua mente. Sua força gigantesca o
impressionava e ele se sentia renascer a cada vez que assistia uma tempestade.
O perigo da morte, que gelava o sangue do mais bravio dos marinheiros para ele
era um tônico estimulante. Esse era o momento em que mais (intensamente) vivia,
quando se percebia abandonado pela sorte, vagando em um navio à beira da
destruição. Os motivos para essa predileção pelo horror dos mares era simples.
Fora criado em um ambiente de extrema delicadeza e cedo desenvolveu o desejo
mórbido de uma vida perigosa. Sempre se viu enfrentando a morte, como forma de
libertar-se das amarras que o tornaram covarde. Por isso se engajara naquela
tripulação e embora não fosse absolutamente necessário, sempre o deixavam vir à
proa assistir as tormentas que se sucediam naquele lugar infernal. Não
tornara-se por isso mais valente, ainda congelava de medo, mas a sensação de
renascer era mais forte, e agora que estava há tanto tempo no mar, aquilo o
alimentava de esperança. Nunca pensou em chegar até o gelo, e nunca estivera
tão seguro desde o dia em que se engajara no barco. Esperava pela sensação
derradeira, pela hora em que se ajoelharia de pavor, certo do seu final. Qual
seria a onda que devoraria a todos? o Kraken que daria fim a sua jornada?
Esperava ansioso por esse encontro, sem o menor desejo de voltar. Pensava
longamente sobre as profundezas e sentia o seu peito agitar-se como o mar,
desejava-o mesmo tanto que não imaginava outra forma de viver que não aquela. A
imagem do mar refletia profundamente na sua alma, e digamos assim, ele se
sentia grato por isso.
VI
Andava e pensava, andava e pensava, precisava envelhecer,
esse era o problema, o tempo não passava para ela, e portanto nunca sentira o
medo de morrer como os outros. Não que reclamasse, no começo até gostava da
sensação de eternidade. Era bastante bela e sabia disso, mas logo foi se
cansando, por não ter com quem dividir o seu segredo. Afinal que importância
havia em ver a todos cansados pela velhice e ela inteira e viçosa, com um vigor
supreendente? Teria de começar a vida de novo, para sempre buscando uma geração
que a acompanhasse, até que estes também se fossem, e então recomeçar. Os
amores que tivera, deixara-os para trás, a desigualdade da convivência não
permitia, também seus amigos mais fiéis, esses eram os mais difíceis de deixar,
terminaram por perder a confiança nela até que por fim decidiu se afastar de
todos, não para sempre, mas porque precisava dedicar um pouco do seu tempo a
encontrar novos amigos que a amparassem com sua ingenuidade, que compreendessem
seus anseios, que dessem a ela de novo a sensação de inexperiência, a coragem
que só os jovens possuem. Sair pela estrada, perder-se no mundo, ela fingia tão
bem que não conhecia essa sensação que parecia mesmo cheia de dúvidas, apenas
uma hora do dia ela se traía, quando o sol se punha e seus olhos demonstravam sua melancolia.
VII
Correndo, correndo e voltando, indo e voltando, era assim
que sonhava. Sempre e sempre o mesmo. A bola vinha, fiel aos seus pés e ele
arrancava com ela até o limite da grande área, via a expressão de pavor, se
lembrava do pavor do zagueiro na hora em que passava, isso já conhecia, quando
arrancava já estava a esperar pelo desmoronar da zaga, o goleiro, este era o
último, via a sombra do goleiro, ele já sabia, bastava tocar a bola do outro
lado, bola em um canto o goleiro no outro,
mas isso sempre passava, sempre acordava antes, nunca conseguia
encerrar, nunca tocava nela, era tão dócil e agora lhe fugia, seu pé esquerdo
chegava cada vez mais perto, estava a menos de milímetro e então acordava.
Lembrava da última imagem do seu sonho, todos no chão, a defesa vencida, o seu
pé a buscar a bola, ele era o jogador, daria o toque final, ele era o canhoto,
imprevisível, surpreendente, impulsivo, ia fazer o gol, sentia a velocidade do
seu corpo driblando outro corpo, o suor na camisa, era o jogador, e então
acordava como se dormisse, sem saber o porque, nem se era o real, apenas sabia
que estava preso em um eterno despertar daquele sonho.
Floriano Romano
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