quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Textos de Floriano Romano


I

Esse homem que não acerta, "que não tem que" fazer nada,  escreve revive e repete os dados do seu inconsciente em um caderno de notas, sobrepondo nomes de pessoas, nomes de ruas, em pequenos espaços compartimentados (ele sempre escreve em cima de uma comoda de gavetas), esse louco lento produz teias de corda e monta quebra cabeças, assim como monta suas memorias; ele tece sua teia, sem saber se é real ou sonho o que vive, magnifico exemplo humano que não consegue ser desfigurado pelo tecnicismo heroico e superlativo. essa vida tosca, de andar a esmo em si, vivendo na revivência, só esse louco conhece; só ele relembra de que já passou por aquelas gavetas, buscando a saída, o estar aí dos loucos quando vem ao mundo, e que de tanto investimento já toma toda a sua vida, não sobra mais nada , na casa, no quarto, tudo é lembrança em movimento, calma nervosa, agitação. O coração distraído pelo delírio não bate, apreensivo, em resposta ao esquecimento. Mas o que ele esquecera? acelerado, foi do quarto ao refeitório para pensar algo, pensou que esquecera, mas iria mesmo assim, não conseguia lembrar do que esquecera antes no quarto, precisava pensar de novo, voltar pro quarto, pensar tudo outra vez até achar algo que não sabia ainda. Foi ao refeitório, a memória estava nele, precisava comer para ficar livre e voltar para o quarto. a hora de comer era boa, ele sempre achava algo. assim andando lembrou de um nome que não se vinculara a nada, mas anotou sobre outro na parte de baixo de uma folha do caderno de notas. depois daquilo ele trançaria e desmontaria a rede, faria de novo e poria outro nome.

II

Desconfiado de si mesmo, ele não se perdoava. Acreditava ser o último de uma linha, mas ela era tão antiga que não se recordava a que tradição se ligara. Decerto o tempo passara e agora se encontrava ali, sem saída, mas também ser saber o que seria uma saída para alguém como ele.
Caminhava passeando pela areia da ampulheta, enquanto esperava a recordação que perdera, ansioso para saber o que deveria acontecer em seguida, sono contínuo, sua própria assombração no tempo congelado. De repente percebera, ele não estava ali realmente, daí aquela palidez em todos, (ele), estava no sonho de outro, em um lugar entre os tempos. Precisava sair dali, ali não havia a massa do sonho, palpável como ele sabia, ir buscar seu próprio sonho, sair daquela mesma cena que sempre se repetia. Mas imóvel (sempre que concluía algo se sentia imóvel) ficou pasmo a esperar uma solução, que não viria.  A areia, ela sim era a saída, seguir a areia e seu deslocamento era estar do lado da física, ao menos era com certeza a única coisa que se movia por ali.
A poeira do movimento da ampulheta intoxicou o andante que fatigado parou de caminhar, deitou e dormiu. Acordou longe dali, em um lugar sem areia, sem nada. Impressionado com a vaziez do novo sonho em que caíra, levantou-se e pôs-se a andar para ver se reconhecia alguma paisagem que não fosse a escuridão. aturdido, pensante, atirou-se ao vazio e para sua surpresa não caiu em parte alguma. É que cair em um sonho é como subir, ambos são movimentos de voo, e prometem um espaço contínuo sem funduras ou completamente fundo para todos os lados, um falteixo onde é impossível virar-se para baixo, um espaço desejante e úmido, como o sorriso que se formara em seu rosto.

III

Por vezes sentia-se como se fosse revirar-se. isso mesmo, revirar-se é ser do outro lado. Abrir-se, puxar a parte de dentro, como se desvira uma camisa, e pôr em cima o que estava encoberto, o outro lado. Ser assim, ficar desse jeito, seria mais fácil do que ter de se entregar todo o tempo. Como não se continha na sua intuitiva forma de se revelar completamente era melhor tomar uma atitude que o desgastasse menos. Sabia que revirado seria um, digamos assim, estranho com suas veias e músculos aparentes, (ossos ficariam no lugar) que as pessoas a princípio não saberiam como lidar com aquilo, mas achava também que havia um certo charme em ser o primeiro a tomar essa atitude. Sabia do seu temperamento e que as vezes exagerava, mas dessa vez não, estava convicto, era assim que viveria. Isso talvez mudasse a forma de lidarem com ele: tão completamente exposto, não haveria nada mais a explorar, não seria mais espoliado nem iludido, não haveriam negociações. Se ficassem chocados, não importava: melhor virado com o coração à mostra do que esconder os sentimentos profundos que possuía. a sua certeza faria daquele ato uma normalidade, isso é o que queria, viver sem dissimulação, mais do que nunca ser ele mesmo e, salvo um ou outro problema, mostrar o homem lindo que sentia ser por dentro e deixar de andar a esmo como fazia há séculos.

IV

A noite, ouvia aqueles sons e pensava: o que seria aquilo? não sabia mais como proceder com o dom da audição que recebera. De que servia ouvir aquilo tudo, se não podia separar e classificar cada um dos sons que existiam? o que ele ouvia era um contínuo caos de multiplicidades, não era algo linear, em sucessão. Para ele o mundo deveria ter outra sonoridade, onde as coisas se sucedessem lentamente e não viessem ao mesmo tempo, para que pudéssemos fazer uma escuta precisa de tudo. É claro que não importa o tempo para que cada um de nós, cada um dos bilhões de humanos, tivesse de gastar, isso não importa, mas sim o que viria depois disso, a capacidade de todos se entenderem, assim diria ele, a língua universal é o entendimento que surgiria do esforço de uma escuta total, interessada. Mas aquele zumbido múltiplo de todos os lados, onipresente e ubíquo não deixava que isso acontecesse, e ainda mais: aquela barulheira toda impedia que ele se concentrasse, daquela maneira nunca chegariam lá! deveriam suspender esse som ruidoso universal. Fazê-lo parar! até o som do big bang ainda estava lá vagando, não, isso não era necessário, mas sim, se todos concordassem em se ouvir, o entendimento que viria nos permitiria a arte do silêncio.

V

O mar selvagem o encantava. Suas vagas eram como lembranças se espatifando contra o fundo da sua mente. Sua força gigantesca o impressionava e ele se sentia renascer a cada vez que assistia uma tempestade. O perigo da morte, que gelava o sangue do mais bravio dos marinheiros para ele era um tônico estimulante. Esse era o momento em que mais (intensamente) vivia, quando se percebia abandonado pela sorte, vagando em um navio à beira da destruição. Os motivos para essa predileção pelo horror dos mares era simples. Fora criado em um ambiente de extrema delicadeza e cedo desenvolveu o desejo mórbido de uma vida perigosa. Sempre se viu enfrentando a morte, como forma de libertar-se das amarras que o tornaram covarde. Por isso se engajara naquela tripulação e embora não fosse absolutamente necessário, sempre o deixavam vir à proa assistir as tormentas que se sucediam naquele lugar infernal. Não tornara-se por isso mais valente, ainda congelava de medo, mas a sensação de renascer era mais forte, e agora que estava há tanto tempo no mar, aquilo o alimentava de esperança. Nunca pensou em chegar até o gelo, e nunca estivera tão seguro desde o dia em que se engajara no barco. Esperava pela sensação derradeira, pela hora em que se ajoelharia de pavor, certo do seu final. Qual seria a onda que devoraria a todos? o Kraken que daria fim a sua jornada? Esperava ansioso por esse encontro, sem o menor desejo de voltar. Pensava longamente sobre as profundezas e sentia o seu peito agitar-se como o mar, desejava-o mesmo tanto que não imaginava outra forma de viver que não aquela. A imagem do mar refletia profundamente na sua alma, e digamos assim, ele se sentia grato por isso.

VI
Andava e pensava, andava e pensava, precisava envelhecer, esse era o problema, o tempo não passava para ela, e portanto nunca sentira o medo de morrer como os outros. Não que reclamasse, no começo até gostava da sensação de eternidade. Era bastante bela e sabia disso, mas logo foi se cansando, por não ter com quem dividir o seu segredo. Afinal que importância havia em ver a todos cansados pela velhice e ela inteira e viçosa, com um vigor supreendente? Teria de começar a vida de novo, para sempre buscando uma geração que a acompanhasse, até que estes também se fossem, e então recomeçar. Os amores que tivera, deixara-os para trás, a desigualdade da convivência não permitia, também seus amigos mais fiéis, esses eram os mais difíceis de deixar, terminaram por perder a confiança nela até que por fim decidiu se afastar de todos, não para sempre, mas porque precisava dedicar um pouco do seu tempo a encontrar novos amigos que a amparassem com sua ingenuidade, que compreendessem seus anseios, que dessem a ela de novo a sensação de inexperiência, a coragem que só os jovens possuem. Sair pela estrada, perder-se no mundo, ela fingia tão bem que não conhecia essa sensação que parecia mesmo cheia de dúvidas, apenas uma hora do dia ela se traía, quando o sol se punha e  seus olhos demonstravam sua melancolia.

VII


Correndo, correndo e voltando, indo e voltando, era assim que sonhava. Sempre e sempre o mesmo. A bola vinha, fiel aos seus pés e ele arrancava com ela até o limite da grande área, via a expressão de pavor, se lembrava do pavor do zagueiro na hora em que passava, isso já conhecia, quando arrancava já estava a esperar pelo desmoronar da zaga, o goleiro, este era o último, via a sombra do goleiro, ele já sabia, bastava tocar a bola do outro lado, bola em um canto o goleiro no outro,  mas isso sempre passava, sempre acordava antes, nunca conseguia encerrar, nunca tocava nela, era tão dócil e agora lhe fugia, seu pé esquerdo chegava cada vez mais perto, estava a menos de milímetro e então acordava. Lembrava da última imagem do seu sonho, todos no chão, a defesa vencida, o seu pé a buscar a bola, ele era o jogador, daria o toque final, ele era o canhoto, imprevisível, surpreendente, impulsivo, ia fazer o gol, sentia a velocidade do seu corpo driblando outro corpo, o suor na camisa, era o jogador, e então acordava como se dormisse, sem saber o porque, nem se era o real, apenas sabia que estava preso em um eterno despertar daquele sonho.

Floriano Romano

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