.
Ele chegou atrasado. Muito atrasado. Olhou em volta, não reconheceu os prédios, os cenários. Buscou dentre os rostos dos passantes, o rosto que deixara de contemplar há tanto tempo. Lembrou de ávidos momentos passados, abandonados e mal aproveitados. Refletiu sobre sua escolha, refletiu sobre suas decisões. O sol queimava a pele de seu escalpo, antes repleto de cabelos, e agora exposto ao tempo e ao vento. Olhou o relógio sem muito interesse, pois relógios não marcavam anos, marcavam apenas horas. Caminhou lentamente desejando que o tempo parasse, que o tempo voltasse. Aquelas pedras portuguesas guardavam os passos que não haviam acontecido em um tempo distante, por medo. Por medo da felicidade, e do destino óbvio, entregue sem dificuldade a ele. Esse medo traçara a sua vida, e fizera dele, não um covarde, mas um infeliz. Um solitário infeliz, cercado de multidões. Multidões de mulheres, de filhos, de netos... multidões de genros e noras... multidões de personagens que não deveriam estar ali, naquele cenário, naquela vida, naquela encarnação. Ele sentou-se no roto banco da praça, no centro da cidade. Uma das poucas coisas que restara do que existira antes ali. Cruzou as pernas para descruza-las em seguida — para não dar a impressão errada a ninguém. Cruzou-as novamente, afinal não devia nada a estranhos, aliás, nem a conhecidos. Puxou um cigarro, escondido numa carteira falsa para enganar os filhos preocupados com sua saúde e acendeu. Deliciou-se com a fumaça, com os desenhos feitos no ar, com o cheiro, com o gosto. O gosto daquele beijo, um beijo boêmio repleto de fumaça, cigarro e álcool, veio à sua mente. O gosto daquela noite, daquele encontro. O gosto daquele beijo que fora uma promessa e tornara-se um adeus. O adeus não prometido, o adeus covarde e não avisado. Uma lágrima silenciosa e tímida escorreu em seu rosto, envergonhada e desconfiada. A lágrima guardada para aquele momento. O momento do confronto. Passado versus presente, em tempo real, sem intervalos. Decidiu-se: era hora de desculpar-se, era hora de admitir sua culpa. Levantou-se com dificuldade graças ao seu nervo ciático, inflamado e envelhecido, cansado. Deixou o automóvel estacionado e decidiu pegar o metrô, como nos velhos tempos. Seguiu calado, medindo as palavras que seriam ditas. Resolveu que levaria flores. E chocolates. Ajeitou o cabelo com as mãos, desajeitado, e seguiu decidido. Chegou aos pés da mulher que amara, e a quem prometera uma vida, e que não cumprira. Ajoelhou-se, olhou firme, e desabou. Desabou corpo, ombros, cabeça... desabou uma vida inteira não vivida, não compartilhada. E chorou, gritou, até cansar e desabafar tudo, tudo que ficara guardado por tantos anos. Tocou a lápide gelada, envelhecida, tão fria, tão diferente da linda e quente jovem que um dia estivera em seus braços e a quem prometera tanto e não cumprira. Chorou mais, chorou mais, envergonhado, arrependido. Não teve coragem de fazer declarações, nem de dar explicações. Decidiu fazer apenas um carinho, decidiu apenas tocar "naquilo" que antes fora "aquela". Decidiu dar àquela lápide, o que não dera àquela linda jovem que acreditara em suas palavras e em suas promessas. E, dever cumprido, após pedir perdão pela vida não vivida entre os dois, decidiu que era hora de cumprir sua promessa, e deixou-se levar, deixou-se ficar ao lado de sua amada, sempre amada. Decidiu morrer a seu lado para realizar a vida que não vivera. E por um milésimo de segundo, antes de ir, foi feliz.
.
Tatah Gouveia
.
.
.
Tatah Gouveia (pseudônimo profissional de Tatiana da Silva Barboza) é formada em jornalismo pela PUC-Rio, quem quiser ler mais de seus textos pode entrar no seu blog aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário