Perdão por não obedecer ao categórico imperativo da honra e abusadamente me enfiar nas íntimas entranhas da vida particular de Immanuel. Poderia ser apenas mais um relato à la Big-Brother, uma mera narrativa descritiva, não fosse o fato, ou o pesado fardo, de que nosso objeto de investigação não é uma pessoa comum, mas o grande, o tradicionalíssimo, o sábio filósofo: Kant, o Imaculado Immanuel.
Ninguém escapa aos olhos dos outros e hoje, Kant estando vivo, seria personalidade garantida para a próxima edição da Casa dos Artistas. Que voyeur (eu não seria capaz de dar outro nome para o telespectador) não julgaria bela a experiência sublime de observar os meandros e as reticências do comportamento obsessivo daquele que tanto insistiu no conceito de sujeito transcendental, tornando-se quase que o teórico de um voyeurismo metafísico?
Dando, então, pirulito na boca de criança, palmas para o palhaço ou pão e circo para os cidadãos de Roma, contarei alguns a posterioris sobre a vida de Kant para que, a partir dessas brechas de subjetividade, possamos penetrar, com nossos olhos curiosos, em seus a prioris mais íntimos. Antes de começar a novela, uma pergunta sibila em minha mente cheia de galhofas: será que no detalhe de um comportamento está contida a chave de interpretação de um gênio? Fica a pergunta em off, como se ocupasse o espaço das charges de cartunista antes do programa, ou fosse o comercial de geladeira na hora do intervalo.
Uma curta biografia de Kant certamente seria uma caricatura de sua filosofia, fazendo ver exemplos práticos de sua atitude teórica. Nascido na Prússia, ganhou condições de ter uma educação abrangente por receber auxílio financeiro de um parente próximo. Entrou na Universidade com 16 anos e, aos 22, escreveu sua primeira obra, intitulada “A Avaliação das Forças Vivas” acerca de uma questão levantada por Leibniz. Os últimos dias de sua vida foram relatados por Wasianski, um ex-aluno que se tornou fiel companheiro na velhice, fase mais angustiante da vida de Kant. Thomas de Quincey, no livro Os últimos dias de Immanuel Kant, lançado pela Editora Forense Universitária, relata os depoimentos daqueles que permaneceram ao lado do filósofo e puderam observar suas manias e hábitos tão peculiares.
É bem verdade que a vida de Kant era um pouco irritante: acordava todo dia abrindo o olho esquerdo antes do direito e pisando com os dois pés ao mesmo tempo do lado de fora da cama porque não era muito dado a superstições. Vestia-se rapidamente para estar, pontualmente, às cinco da manhã, sentado à mesa para o desjejum. Nessa hora procurava manter-se em silêncio para capturar toda a potência contemplativa contida em sua xícara de chá. Quando uma não o saciava, contemplava mais e bebia duas, três, várias, até que seu momento estivesse pleno. Dirigia-se então ao escritório para planejar sua aula com a ajuda de um cachimbo e um pouco de fumo.
O aspecto mais interessante de sua rotina era a organização da mesa para o almoço. Kant nunca almoçava sozinho. Era um adepto rigoroso da regra de Lord Chesterfield – de que os convivas em sua mesa, incluindo ele próprio, não fossem em número inferior ao das Graças nem excedessem o das Musas. Então convidava, diariamente, uns poucos amigos para o almoço, de modo a formar um grupo de no mínimo três e no máximo nove convivas, e, por ocasião de algum festejo, de cinco a oito pessoas. Tomava aquilo que ele próprio chamava de “tônico”, um vinho da Hungria ou do Reno e, na falta deste, uma bebida inglesa chamada Bishop. O copo ficava servido, mas não bebia até todos estarem a postos e confortáveis. Para que a bebida não se evolasse, cobria-a com um papel. Após o pequeno ritual de arrumação de seu vinho, ia vestir-se para receber seus convidados em trajes de cerimônia.
A mesa era composta de um número suficiente de iguarias para atender à variedade dos gostos. Kant mostrava desprazer ao perceber espírito cerimonioso em seus convidados e tinha horror a ter que esperar o último convidado. Antes de chegarem à mesa de almoço, Kant fazia comentários sobre as condições climáticas e o assunto era desenvolvido durante a parte inicial da refeição. Questões mais graves, como eventos políticos, jamais eram introduzidas antes do almoço. Raramente dirigia a discussão para algum aspecto de sua própria filosofia. Os temas de discussão eram relativos à filosofia da ciência, da química, da meteorologia, da história natural e da política.
Além do cuidado com os temas para conversas e da variedade de comidas, o filósofo buscava convidar pessoas que formassem um grupo heterogêneo para garantir uma variedade suficiente na conversa: desde um número adequado de jovens a representantes de todos os tipos profissionais. Como verdadeiro anfitrião que era, nunca deixou de cumprir normas do bom trato social, e acabou ficando conhecido como um verdadeiro artista na composição de almoços.
Encerrado o almoço, Kant ia, sozinho, fazer seu famoso passeio de três da tarde. Passeio cumprido em hora tão precisa que, diz o mito, toda a cidade de Koningsberg acertava seus relógios quando Kant passava. Esse passeio era feito sem companhia porque queria preservar os outros de suas longas falas e também porque desejava respirar apenas pelas narinas ao caminhar. Dizia que assim preservava-se da rouquidão, de tosses e de indisposições pulmonares.
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Quando voltava, ia para a biblioteca e lia até o anoitecer. Quinze minutos antes de ir se deitar parava de ler e de pensar para não ficar com insônia. Como era de se esperar, também ia dormir com uma ordem solene, cumprindo formas rotineiras de aninhar-se e envolver-se nas cobertas.
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Para Kant a monotonia da sucessão de formas postuladas por ele para organizar seu dia não era fatigante e acabou contribuindo, juntamente com a uniformidade de sua dieta e outros hábitos regulares, para prolongar sua vida. Kant era comparado por seus conhecidos a um ginasta porque conseguiu equilibrar-se sobre a corda tensa da vida durante quase oitenta anos, sem jamais se inclinar para a direita ou para a esquerda. Kant acreditava que sua saúde era a melhor que um ser humano poderia ter. Sua rotina, estritamente vinculada a hábitos e regras de vida, o permitia viver com a segurança de uma rigidez imóvel. Rotina de um filósofo que pensou a mais dura das leis morais. Sua vida era organizada e cumprida como sugere seu próprio imperativo categórico: “aja como se suas ações pudessem servir de espelho, por toda eternidade, para todos os homens”. Alguém se habilita?
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Nastassja Saramago de A. Pugliese, aluna da pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio, é a autora que mais publicou na coluna Puzzles, sempre desvendando a biografia dos pensadores mais consagrados. Escolhi este texto emblemático em que ela fala sobre a vida de Kant, mas quem quiser conferir no site pode encontrar Nastassja falando de Spinoza, Leibniz e até Santo Agostinho! No momento ela desvenda a vida de Sartre em um Puzzles duplo, cuja segunda parte sai agora, na edição 26 de Fevereiro/Março.
Um comentário:
Não era à toa que Kant era Kant. O cara era simplesmente foda. Ainda que achem esquisito. No mínimo, originalíssimo em seu jeito de levar a vida. Pelo menos no Ocidente... Mil vezes Kant!
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