quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Carta ao vento — de Patrícia Schwingel Dias

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Meu tempo acabou. Sinto muito lhe deixar. Mas realmente preciso partir. E, cá entre nós, você já deve estar cansada de só ter uma pessoa. Ficamos aqui a noite toda somente eu e você, e uma intrusa. Ah, como poderia eu esquecer essa noite estrelada que não dorme? Que não nos abandona, pra finalmente termos a quietude de que tanto queremos.
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Vim lhe ver pelo silêncio, mas encontrei um barulho que não me acalma a alma. Você sussurra constantemente em meus ouvidos. Sopra um vento molhado que me tira a razão. Tenta me convencer a qualquer custo de ficar.
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Você joga comigo. Você joga aos meus pés o ir e vir de suas curvas. Me seduz. Tenta me hipnotizar com sua dança, seu cheiro, com seus beijos salgados. Tenta me dar provas de que há vida nesta vastidão do nosso eu.
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Preciso confessar. Você quase me convenceu de ficar. Ficar, até ficaria, mas só se fosse aqui a vida inteira, a te olhar. Adoraria te ter pra sempre. Mas você não pertence a mim. Pertence a vida, ao mundo, aos outros homens. De resto, nada mais quero, nada mais me restou.
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E, vai, admite! Você não iria me aguentar. Afinal, não é esse o seu costume: ficar com um só. Sempre que lhe encontro, você está rodeada por belas pessoas, sorridentes, felizes. E elas fazem o que querem de você. Se aproveitam de tudo o que você tem para oferecer. E, pior é que você deixa. Gosta, até. Pede pela badalação, pelo agito, clama pra ser o centro das atenções.
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Mas, pensa que me engana? Eu conheço o que está por trás desse seu jeito manso, calmo, conciliador. Você tem seus altos e baixos, como todos nós. Fica mal humorada e joga tudo pra cima. Quebra o que vê pela frente, toma espaços que não lhe pertencem. Destrói o que tiver que destruir para impor o seu lugar no mundo.
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Eu sei que você também sabe o que é sofrer. Mesmo assim, tenta me convencer de que há ainda beleza na vida. Me mostra coisas bonitas, narra as suas conquistas, fala de suas jóias, umas tais pedras portuguesas. Conta sobre os seus inúmeros namorados, sobre as suas amigas, visitantes de quase todo o dia, companheiras na diversão e confidentes de problemas.
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Oh, problemas são tantos, que como confidente nem saberia por onde começar. E sinceramente, não vim aqui para falar. Desisto. Vim aqui para terminar o que não começou bem. Terminar talvez seja uma boa forma de recomeçar, não acha? Vou embora agora, vou para os braços da sua mãe Yemanjá. E pedir a ela que me leve ao encontro do Tânatos.
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Patrícia Schwingel Dias
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